Opinião|Na reforma, saneamento requer tributação especial


Falta do tratamento especial pode ter impacto catastrófico sobre os planos de investimento e os compromissos de universalizar serviços

Por Gesner Oliveira

O texto da reforma tributária, originado da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019 e aprovado pela Câmara dos Deputados, conferiu tratamento especial à saúde, mas deixou de fora um de seus mais importantes braços: o saneamento básico.

Trata-se de equívoco que precisa ser reparado no Senado Federal por pelo menos três razões. A primeira, por ser um segmento com enormes externalidades positivas. De acordo com o Instituto Trata Brasil, a universalização dos serviços de saneamento gera ganhos da ordem de R$ 1,4 trilhão, algo superior aos efeitos positivos calculados para a reforma da Previdência. Nestes casos, a boa teoria de finanças públicas recomenda subsídio e não taxação.

Os impactos do saneamento na saúde são eloquentes. Ranking do Instituto Trata Brasil mostra que os seis municípios com pior qualidade da amostra de cem maiores cidades pesquisadas têm mais de 5,2 internações por 10 mil habitantes em razão de doenças de veiculação hídrica; em contraste, os seis melhores têm 2,1 internações/10 mil habitantes. Não por acaso, estima-se que a cada R$ 1 gasto com saneamento poupam-se outros R$ 4 na saúde. Não é possível, portanto, apartar o saneamento de outros temas sanitários.

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A segunda razão é que o atraso do setor é vergonhoso. Mais de 30 milhões de brasileiros não acessam água tratada; outros 100 milhões vivem sem coleta de esgoto; e cerca de metade do esgoto gerado é devolvida in natura para o meio ambiente.

A universalização do saneamento, prevista desde 2013 e reiterada na Lei n.º 14.026/2020, constitui um compromisso moral de resgate dessa enorme dívida social. Estima-se que a grande maioria dos brasileiros sem coleta de esgoto ganha até dois salários mínimos. A renda média daqueles que têm saneamento supera em R$ 2.373,41 a daqueles sem este serviço – com renda mensal média de R$ 486,37, menos da metade do salário mínimo (R$ 1.320). É fácil entender que o compromisso de universalização dos serviços deste segmento constitui o maior programa socioambiental do País e um dos maiores do planeta.

Para eliminar esse déficit, o investimento no setor terá de mais do que dobrar relativamente ao patamar atual, algo sem precedentes na história brasileira. Mesmo numa projeção conservadora, a universalização requer pelos menos dobrar o aporte anual médio em água e esgoto, algo nunca verificado no País. Além disso, a carência de investimentos não está restrita à água e ao esgoto. Segundo estudo realizado para o Ministério do Desenvolvimento Regional em 2022, são necessários R$ 250 bilhões para a universalização da drenagem e do manejo das águas pluviais urbanas, e outros R$ 27 bilhões para resíduos sólidos urbanos entre 2021 e 2033.

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A terceira razão é que um tratamento diferenciado para o saneamento nada mais é do que manter a neutralidade tributária da reforma. Atualmente, o setor tem uma tributação peculiar na qual incide a cobrança de PIS/Cofins não cumulativo, com uma alíquota de 9,25%, estando isento dos atuais ICMS e ISS.

Embora não haja hoje uma cobrança direta de outros tributos estaduais e municipais, o segmento já carrega diversos resíduos tributários. Com a expectativa de um novo IVA entre 25% e 27%, a carga tributária aumentaria fortemente. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis) de 2022, com base em 2021, apontam uma carga tributária estimada de 9,74%, sendo 5,47% de PIS/Cofins e 4,27% de resíduos tributários.

A incidência do ISS sobre o saneamento foi vetada em 2003 sob o entendimento de que a cobrança comprometeria a universalização. Esse veto visava justamente a evitar um aumento nas despesas para a população carente.

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Além da diminuição de receita para investimentos no setor, a população mais vulnerável sentiria também os resultados no próprio bolso. Estudo realizado pela GO Associados demonstra que o aumento das alíquotas e dos impostos sobre o setor resultaria num acréscimo de até 18% na tarifa dos serviços de água e esgoto.

O texto aprovado na Câmara e que está em discussão no Senado retira o tratamento especial destinado ao saneamento, podendo resultar num impacto catastrófico sobre os planos de investimento e sobre os compromissos de universalização do acesso aos serviços básicos de água e esgotamento sanitário.

Além de socialmente injusto e regressivo – na direção oposta que se deseja para a reforma –, um aumento de tarifa dessa ordem geraria um desequilíbrio generalizado de contratos num setor regulado por quase uma centena de agências estaduais, regionais e municipais.

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Há uma forma de corrigir o equívoco da proposta atual. Estudo da GO Associados mostra que um tratamento diferenciado para o saneamento, equivalente àquele conferido para a saúde, poderia praticamente eliminar o aumento na tarifa, garantindo a desejada neutralidade tarifária. Eis a solução: tratar o saneamento como a saúde.

*

PROFESSOR DA FGV, ONDE COORDENA O CENTRO DE ESTUDOS DE INFRAESTRUTURA E SOLUÇÕES AMBIENTAIS, PRESIDIU A SABESP E O CADE E FOI SECRETÁRIO DE ACOMPANHAMENTO ECONÔMICO NO GOVERNO FHC, ATUANDO NA IMPLANTAÇÃO DO PLANO REAL

O texto da reforma tributária, originado da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019 e aprovado pela Câmara dos Deputados, conferiu tratamento especial à saúde, mas deixou de fora um de seus mais importantes braços: o saneamento básico.

Trata-se de equívoco que precisa ser reparado no Senado Federal por pelo menos três razões. A primeira, por ser um segmento com enormes externalidades positivas. De acordo com o Instituto Trata Brasil, a universalização dos serviços de saneamento gera ganhos da ordem de R$ 1,4 trilhão, algo superior aos efeitos positivos calculados para a reforma da Previdência. Nestes casos, a boa teoria de finanças públicas recomenda subsídio e não taxação.

Os impactos do saneamento na saúde são eloquentes. Ranking do Instituto Trata Brasil mostra que os seis municípios com pior qualidade da amostra de cem maiores cidades pesquisadas têm mais de 5,2 internações por 10 mil habitantes em razão de doenças de veiculação hídrica; em contraste, os seis melhores têm 2,1 internações/10 mil habitantes. Não por acaso, estima-se que a cada R$ 1 gasto com saneamento poupam-se outros R$ 4 na saúde. Não é possível, portanto, apartar o saneamento de outros temas sanitários.

A segunda razão é que o atraso do setor é vergonhoso. Mais de 30 milhões de brasileiros não acessam água tratada; outros 100 milhões vivem sem coleta de esgoto; e cerca de metade do esgoto gerado é devolvida in natura para o meio ambiente.

A universalização do saneamento, prevista desde 2013 e reiterada na Lei n.º 14.026/2020, constitui um compromisso moral de resgate dessa enorme dívida social. Estima-se que a grande maioria dos brasileiros sem coleta de esgoto ganha até dois salários mínimos. A renda média daqueles que têm saneamento supera em R$ 2.373,41 a daqueles sem este serviço – com renda mensal média de R$ 486,37, menos da metade do salário mínimo (R$ 1.320). É fácil entender que o compromisso de universalização dos serviços deste segmento constitui o maior programa socioambiental do País e um dos maiores do planeta.

Para eliminar esse déficit, o investimento no setor terá de mais do que dobrar relativamente ao patamar atual, algo sem precedentes na história brasileira. Mesmo numa projeção conservadora, a universalização requer pelos menos dobrar o aporte anual médio em água e esgoto, algo nunca verificado no País. Além disso, a carência de investimentos não está restrita à água e ao esgoto. Segundo estudo realizado para o Ministério do Desenvolvimento Regional em 2022, são necessários R$ 250 bilhões para a universalização da drenagem e do manejo das águas pluviais urbanas, e outros R$ 27 bilhões para resíduos sólidos urbanos entre 2021 e 2033.

A terceira razão é que um tratamento diferenciado para o saneamento nada mais é do que manter a neutralidade tributária da reforma. Atualmente, o setor tem uma tributação peculiar na qual incide a cobrança de PIS/Cofins não cumulativo, com uma alíquota de 9,25%, estando isento dos atuais ICMS e ISS.

Embora não haja hoje uma cobrança direta de outros tributos estaduais e municipais, o segmento já carrega diversos resíduos tributários. Com a expectativa de um novo IVA entre 25% e 27%, a carga tributária aumentaria fortemente. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis) de 2022, com base em 2021, apontam uma carga tributária estimada de 9,74%, sendo 5,47% de PIS/Cofins e 4,27% de resíduos tributários.

A incidência do ISS sobre o saneamento foi vetada em 2003 sob o entendimento de que a cobrança comprometeria a universalização. Esse veto visava justamente a evitar um aumento nas despesas para a população carente.

Além da diminuição de receita para investimentos no setor, a população mais vulnerável sentiria também os resultados no próprio bolso. Estudo realizado pela GO Associados demonstra que o aumento das alíquotas e dos impostos sobre o setor resultaria num acréscimo de até 18% na tarifa dos serviços de água e esgoto.

O texto aprovado na Câmara e que está em discussão no Senado retira o tratamento especial destinado ao saneamento, podendo resultar num impacto catastrófico sobre os planos de investimento e sobre os compromissos de universalização do acesso aos serviços básicos de água e esgotamento sanitário.

Além de socialmente injusto e regressivo – na direção oposta que se deseja para a reforma –, um aumento de tarifa dessa ordem geraria um desequilíbrio generalizado de contratos num setor regulado por quase uma centena de agências estaduais, regionais e municipais.

Há uma forma de corrigir o equívoco da proposta atual. Estudo da GO Associados mostra que um tratamento diferenciado para o saneamento, equivalente àquele conferido para a saúde, poderia praticamente eliminar o aumento na tarifa, garantindo a desejada neutralidade tarifária. Eis a solução: tratar o saneamento como a saúde.

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PROFESSOR DA FGV, ONDE COORDENA O CENTRO DE ESTUDOS DE INFRAESTRUTURA E SOLUÇÕES AMBIENTAIS, PRESIDIU A SABESP E O CADE E FOI SECRETÁRIO DE ACOMPANHAMENTO ECONÔMICO NO GOVERNO FHC, ATUANDO NA IMPLANTAÇÃO DO PLANO REAL

O texto da reforma tributária, originado da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019 e aprovado pela Câmara dos Deputados, conferiu tratamento especial à saúde, mas deixou de fora um de seus mais importantes braços: o saneamento básico.

Trata-se de equívoco que precisa ser reparado no Senado Federal por pelo menos três razões. A primeira, por ser um segmento com enormes externalidades positivas. De acordo com o Instituto Trata Brasil, a universalização dos serviços de saneamento gera ganhos da ordem de R$ 1,4 trilhão, algo superior aos efeitos positivos calculados para a reforma da Previdência. Nestes casos, a boa teoria de finanças públicas recomenda subsídio e não taxação.

Os impactos do saneamento na saúde são eloquentes. Ranking do Instituto Trata Brasil mostra que os seis municípios com pior qualidade da amostra de cem maiores cidades pesquisadas têm mais de 5,2 internações por 10 mil habitantes em razão de doenças de veiculação hídrica; em contraste, os seis melhores têm 2,1 internações/10 mil habitantes. Não por acaso, estima-se que a cada R$ 1 gasto com saneamento poupam-se outros R$ 4 na saúde. Não é possível, portanto, apartar o saneamento de outros temas sanitários.

A segunda razão é que o atraso do setor é vergonhoso. Mais de 30 milhões de brasileiros não acessam água tratada; outros 100 milhões vivem sem coleta de esgoto; e cerca de metade do esgoto gerado é devolvida in natura para o meio ambiente.

A universalização do saneamento, prevista desde 2013 e reiterada na Lei n.º 14.026/2020, constitui um compromisso moral de resgate dessa enorme dívida social. Estima-se que a grande maioria dos brasileiros sem coleta de esgoto ganha até dois salários mínimos. A renda média daqueles que têm saneamento supera em R$ 2.373,41 a daqueles sem este serviço – com renda mensal média de R$ 486,37, menos da metade do salário mínimo (R$ 1.320). É fácil entender que o compromisso de universalização dos serviços deste segmento constitui o maior programa socioambiental do País e um dos maiores do planeta.

Para eliminar esse déficit, o investimento no setor terá de mais do que dobrar relativamente ao patamar atual, algo sem precedentes na história brasileira. Mesmo numa projeção conservadora, a universalização requer pelos menos dobrar o aporte anual médio em água e esgoto, algo nunca verificado no País. Além disso, a carência de investimentos não está restrita à água e ao esgoto. Segundo estudo realizado para o Ministério do Desenvolvimento Regional em 2022, são necessários R$ 250 bilhões para a universalização da drenagem e do manejo das águas pluviais urbanas, e outros R$ 27 bilhões para resíduos sólidos urbanos entre 2021 e 2033.

A terceira razão é que um tratamento diferenciado para o saneamento nada mais é do que manter a neutralidade tributária da reforma. Atualmente, o setor tem uma tributação peculiar na qual incide a cobrança de PIS/Cofins não cumulativo, com uma alíquota de 9,25%, estando isento dos atuais ICMS e ISS.

Embora não haja hoje uma cobrança direta de outros tributos estaduais e municipais, o segmento já carrega diversos resíduos tributários. Com a expectativa de um novo IVA entre 25% e 27%, a carga tributária aumentaria fortemente. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis) de 2022, com base em 2021, apontam uma carga tributária estimada de 9,74%, sendo 5,47% de PIS/Cofins e 4,27% de resíduos tributários.

A incidência do ISS sobre o saneamento foi vetada em 2003 sob o entendimento de que a cobrança comprometeria a universalização. Esse veto visava justamente a evitar um aumento nas despesas para a população carente.

Além da diminuição de receita para investimentos no setor, a população mais vulnerável sentiria também os resultados no próprio bolso. Estudo realizado pela GO Associados demonstra que o aumento das alíquotas e dos impostos sobre o setor resultaria num acréscimo de até 18% na tarifa dos serviços de água e esgoto.

O texto aprovado na Câmara e que está em discussão no Senado retira o tratamento especial destinado ao saneamento, podendo resultar num impacto catastrófico sobre os planos de investimento e sobre os compromissos de universalização do acesso aos serviços básicos de água e esgotamento sanitário.

Além de socialmente injusto e regressivo – na direção oposta que se deseja para a reforma –, um aumento de tarifa dessa ordem geraria um desequilíbrio generalizado de contratos num setor regulado por quase uma centena de agências estaduais, regionais e municipais.

Há uma forma de corrigir o equívoco da proposta atual. Estudo da GO Associados mostra que um tratamento diferenciado para o saneamento, equivalente àquele conferido para a saúde, poderia praticamente eliminar o aumento na tarifa, garantindo a desejada neutralidade tarifária. Eis a solução: tratar o saneamento como a saúde.

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PROFESSOR DA FGV, ONDE COORDENA O CENTRO DE ESTUDOS DE INFRAESTRUTURA E SOLUÇÕES AMBIENTAIS, PRESIDIU A SABESP E O CADE E FOI SECRETÁRIO DE ACOMPANHAMENTO ECONÔMICO NO GOVERNO FHC, ATUANDO NA IMPLANTAÇÃO DO PLANO REAL

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