Opinião|Não à nova eugenia


O PL n.º 5.769/2023 é inconvencional, inconstitucional e deve ser repelido pelo Congresso

Por Guilherme Guimarães Feliciano e Pablo Coutinho

A incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (a CDPCD, também conhecida como Convenção de Nova York) ao ordenamento jurídico brasileiro, por meio do Decreto n.º 6.949/2009, representou um marco definitivo na consolidação desses direitos. Com status equivalente ao de emenda constitucional, nos termos do artigo 5º, §3º, da CF, a convenção adotou o modelo biopsicosocial da deficiência, superando a abordagem médica que a encarava como um problema individual a ser corrigido. Esse novo paradigma impõe a eliminação de barreiras sociais, culturais e físicas que limitam a participação plena das Pessoas com Deficiência (PcD), reafirmando sua cidadania e autonomia, consagrando as garantias de acessibilidade, não discriminação, acesso à justiça, participação política e inclusão social, entre outras.

Em um ponto crítico, porém, o Brasil tem frustrado o seu compromisso convencional, agredindo potencialmente direitos humanos fundamentais e se expondo a reprimendas internacionais. Em seu artigo 23, 1, “c”, a CDPCD estatui ser dever dos Estados signatários tomar medidas efetivas e apropriadas para eliminar qualquer forma de discriminação contra PcD, em todos os aspectos relativos a casamento, família, paternidade e relacionamentos, em igualdade de condições com as demais pessoais, assegurando, entre outros direitos humanos inalienáveis, que “as pessoas com deficiência, inclusive crianças, conservem sua fertilidade”. Eis, pois, o direito universalmente consagrado: não se admite, à luz da Convenção de Nova York e da Constituição da República, a eugenia capacitista.

Não obstante, a Lei n.º 9.263/1996, a pretexto de regular o parágrafo 7º do artigo 226 da Constituição (planejamento familiar), dispôs, no seu artigo 10, §6º, que pessoas absolutamente incapazes podem ser submetidas à esterilização cirúrgica – laqueadura tubária, vasectomia – como método contraceptivo, desde que haja autorização judicial prévia. Esse preceito claramente viola a regra antieugênica da CDPCD, se compreendermos, em má interpretação, que seja possível requerer em juízo a esterilização de crianças com deficiência. Pendores dessa natureza são particularmente resilientes em casos de deficiência intelectual, não raro a reboque de estigmas negacionistas (como por exemplo, em relação às crianças com síndrome de Down, as ideias de assexualidade – ou hipersexualidade –, eterno infantilismo etc.). A violação, porém, torna-se flagrante quando se coteja a convenção com o Projeto de Lei n.º 5.769/2023, que pretende alterar a Lei n.º 9.263/1996 (art. 10, §6º) e dispor que “a esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes ou com deficiência mental ou intelectual que não possam exprimir sua vontade, somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, com oitiva obrigatória do Ministério Público e terá prioridade de realização dentro dos procedimentos de esterilização cirúrgica eletiva”. A capa ilusória das “garantias” – autorização judicial, intervenção ministerial – apenas oculta o inadmissível: a possibilidade de que os pais ou responsáveis promovam a esterilização de crianças e adolescentes com deficiência mental ou intelectual, ao arrepio da norma proibitiva introduzida em nosso sistema jurídico pela Convenção de Nova York, com plena força constitucional.

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Tudo a apontar, portanto, para algo que deveria ser óbvio: o PL n.º 5.769/2023 é inconvencional, inconstitucional e deve ser repelido pelo Congresso Nacional. Caso seja aprovado – e surpreendentemente a Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara dos Deputados o abonou em julho do ano passado –, espera-se que a Presidência da República ofereça o seu veto, seja técnico-jurídico, pelas razões acima, seja político, ante as obrigações internacionais do Estado brasileiro.

Tratando dos processos de eliminação de barreiras sociais para pessoas com deficiência, o sociólogo britânico Tom Shakespeare (2018) – ele próprio uma PcD – tem apontado três vias de demandas: as de autodeterminação (dos corpos, sentimentos e relações), de acesso (representações, espaços e serviços públicos) e de eleição (identidades, estilos de vida). O PL n.º 5.769/2023 consegue, a um só tempo, negá-las todas à população que supostamente quer “proteger”.

A incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (a CDPCD, também conhecida como Convenção de Nova York) ao ordenamento jurídico brasileiro, por meio do Decreto n.º 6.949/2009, representou um marco definitivo na consolidação desses direitos. Com status equivalente ao de emenda constitucional, nos termos do artigo 5º, §3º, da CF, a convenção adotou o modelo biopsicosocial da deficiência, superando a abordagem médica que a encarava como um problema individual a ser corrigido. Esse novo paradigma impõe a eliminação de barreiras sociais, culturais e físicas que limitam a participação plena das Pessoas com Deficiência (PcD), reafirmando sua cidadania e autonomia, consagrando as garantias de acessibilidade, não discriminação, acesso à justiça, participação política e inclusão social, entre outras.

Em um ponto crítico, porém, o Brasil tem frustrado o seu compromisso convencional, agredindo potencialmente direitos humanos fundamentais e se expondo a reprimendas internacionais. Em seu artigo 23, 1, “c”, a CDPCD estatui ser dever dos Estados signatários tomar medidas efetivas e apropriadas para eliminar qualquer forma de discriminação contra PcD, em todos os aspectos relativos a casamento, família, paternidade e relacionamentos, em igualdade de condições com as demais pessoais, assegurando, entre outros direitos humanos inalienáveis, que “as pessoas com deficiência, inclusive crianças, conservem sua fertilidade”. Eis, pois, o direito universalmente consagrado: não se admite, à luz da Convenção de Nova York e da Constituição da República, a eugenia capacitista.

Não obstante, a Lei n.º 9.263/1996, a pretexto de regular o parágrafo 7º do artigo 226 da Constituição (planejamento familiar), dispôs, no seu artigo 10, §6º, que pessoas absolutamente incapazes podem ser submetidas à esterilização cirúrgica – laqueadura tubária, vasectomia – como método contraceptivo, desde que haja autorização judicial prévia. Esse preceito claramente viola a regra antieugênica da CDPCD, se compreendermos, em má interpretação, que seja possível requerer em juízo a esterilização de crianças com deficiência. Pendores dessa natureza são particularmente resilientes em casos de deficiência intelectual, não raro a reboque de estigmas negacionistas (como por exemplo, em relação às crianças com síndrome de Down, as ideias de assexualidade – ou hipersexualidade –, eterno infantilismo etc.). A violação, porém, torna-se flagrante quando se coteja a convenção com o Projeto de Lei n.º 5.769/2023, que pretende alterar a Lei n.º 9.263/1996 (art. 10, §6º) e dispor que “a esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes ou com deficiência mental ou intelectual que não possam exprimir sua vontade, somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, com oitiva obrigatória do Ministério Público e terá prioridade de realização dentro dos procedimentos de esterilização cirúrgica eletiva”. A capa ilusória das “garantias” – autorização judicial, intervenção ministerial – apenas oculta o inadmissível: a possibilidade de que os pais ou responsáveis promovam a esterilização de crianças e adolescentes com deficiência mental ou intelectual, ao arrepio da norma proibitiva introduzida em nosso sistema jurídico pela Convenção de Nova York, com plena força constitucional.

Tudo a apontar, portanto, para algo que deveria ser óbvio: o PL n.º 5.769/2023 é inconvencional, inconstitucional e deve ser repelido pelo Congresso Nacional. Caso seja aprovado – e surpreendentemente a Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara dos Deputados o abonou em julho do ano passado –, espera-se que a Presidência da República ofereça o seu veto, seja técnico-jurídico, pelas razões acima, seja político, ante as obrigações internacionais do Estado brasileiro.

Tratando dos processos de eliminação de barreiras sociais para pessoas com deficiência, o sociólogo britânico Tom Shakespeare (2018) – ele próprio uma PcD – tem apontado três vias de demandas: as de autodeterminação (dos corpos, sentimentos e relações), de acesso (representações, espaços e serviços públicos) e de eleição (identidades, estilos de vida). O PL n.º 5.769/2023 consegue, a um só tempo, negá-las todas à população que supostamente quer “proteger”.

A incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (a CDPCD, também conhecida como Convenção de Nova York) ao ordenamento jurídico brasileiro, por meio do Decreto n.º 6.949/2009, representou um marco definitivo na consolidação desses direitos. Com status equivalente ao de emenda constitucional, nos termos do artigo 5º, §3º, da CF, a convenção adotou o modelo biopsicosocial da deficiência, superando a abordagem médica que a encarava como um problema individual a ser corrigido. Esse novo paradigma impõe a eliminação de barreiras sociais, culturais e físicas que limitam a participação plena das Pessoas com Deficiência (PcD), reafirmando sua cidadania e autonomia, consagrando as garantias de acessibilidade, não discriminação, acesso à justiça, participação política e inclusão social, entre outras.

Em um ponto crítico, porém, o Brasil tem frustrado o seu compromisso convencional, agredindo potencialmente direitos humanos fundamentais e se expondo a reprimendas internacionais. Em seu artigo 23, 1, “c”, a CDPCD estatui ser dever dos Estados signatários tomar medidas efetivas e apropriadas para eliminar qualquer forma de discriminação contra PcD, em todos os aspectos relativos a casamento, família, paternidade e relacionamentos, em igualdade de condições com as demais pessoais, assegurando, entre outros direitos humanos inalienáveis, que “as pessoas com deficiência, inclusive crianças, conservem sua fertilidade”. Eis, pois, o direito universalmente consagrado: não se admite, à luz da Convenção de Nova York e da Constituição da República, a eugenia capacitista.

Não obstante, a Lei n.º 9.263/1996, a pretexto de regular o parágrafo 7º do artigo 226 da Constituição (planejamento familiar), dispôs, no seu artigo 10, §6º, que pessoas absolutamente incapazes podem ser submetidas à esterilização cirúrgica – laqueadura tubária, vasectomia – como método contraceptivo, desde que haja autorização judicial prévia. Esse preceito claramente viola a regra antieugênica da CDPCD, se compreendermos, em má interpretação, que seja possível requerer em juízo a esterilização de crianças com deficiência. Pendores dessa natureza são particularmente resilientes em casos de deficiência intelectual, não raro a reboque de estigmas negacionistas (como por exemplo, em relação às crianças com síndrome de Down, as ideias de assexualidade – ou hipersexualidade –, eterno infantilismo etc.). A violação, porém, torna-se flagrante quando se coteja a convenção com o Projeto de Lei n.º 5.769/2023, que pretende alterar a Lei n.º 9.263/1996 (art. 10, §6º) e dispor que “a esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes ou com deficiência mental ou intelectual que não possam exprimir sua vontade, somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, com oitiva obrigatória do Ministério Público e terá prioridade de realização dentro dos procedimentos de esterilização cirúrgica eletiva”. A capa ilusória das “garantias” – autorização judicial, intervenção ministerial – apenas oculta o inadmissível: a possibilidade de que os pais ou responsáveis promovam a esterilização de crianças e adolescentes com deficiência mental ou intelectual, ao arrepio da norma proibitiva introduzida em nosso sistema jurídico pela Convenção de Nova York, com plena força constitucional.

Tudo a apontar, portanto, para algo que deveria ser óbvio: o PL n.º 5.769/2023 é inconvencional, inconstitucional e deve ser repelido pelo Congresso Nacional. Caso seja aprovado – e surpreendentemente a Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara dos Deputados o abonou em julho do ano passado –, espera-se que a Presidência da República ofereça o seu veto, seja técnico-jurídico, pelas razões acima, seja político, ante as obrigações internacionais do Estado brasileiro.

Tratando dos processos de eliminação de barreiras sociais para pessoas com deficiência, o sociólogo britânico Tom Shakespeare (2018) – ele próprio uma PcD – tem apontado três vias de demandas: as de autodeterminação (dos corpos, sentimentos e relações), de acesso (representações, espaços e serviços públicos) e de eleição (identidades, estilos de vida). O PL n.º 5.769/2023 consegue, a um só tempo, negá-las todas à população que supostamente quer “proteger”.

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Opinião por Guilherme Guimarães Feliciano

Juiz do Trabalho do TRT-15, é professor associado da Faculdade de Direito da USP e conselheiro do CNJ

Pablo Coutinho

Procurador Regional da República, é mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente e conselheiro do CNJ