Opinião|Nossa soberania não está à venda


Estrangeiros não podem controlar terras rurais no Brasil. É uma exigência, um comando institucionalizado pela Constituição de 1988

Por Lenio Streck

Muito se fala que a pós-modernidade redefiniu a clássica noção de soberania cunhada por Jean Bodin. Em certa medida, isso até pode ser verdade. A globalização, as novas tecnologias da informação e a digitalização da vida social efetivamente romperam fronteiras e afetaram “esse poder absoluto e perpétuo que é próprio da República”. Hoje em dia estamos em todos os lugares. Contudo, há um elemento concreto que ainda escapa do alcance dessa nova regulação, dos algoritmos e dos softwares: o território dos Estados. A terra. O chão. As árvores.

Há um movimento internacional de proteção das riquezas e recursos naturais das nações. O mundo entende que a soberania sobre o território é poder e dominância. De países liberais como os EUA a potências nacionalistas como a Rússia, passando por vizinhos como a Argentina e por economias relevantes como México, Canadá e Austrália, vários são os países que impõem restrições à aquisição de terras por estrangeiros.

Digo isso porque a questão fundiária atualmente é objeto de importante discussão no Supremo Tribunal Federal (STF). O ponto é: podem empresas estrangeiras controlar grandes propriedades rurais no Brasil?

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Para responder à questão, basta ler o que diz o artigo 190 da Constituição: “A lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira”. Não há margem de dúvida. Afinal, a Constituição não é um oxímoro: ela não pode ser e ao mesmo tempo não ser. No Direito não há espaço para “contentamentos descontentes”, como escreveu uma vez um poeta lusíada. A interpretação constitucional, diferentemente da poesia, não flerta com contradições.

Estrangeiros não podem controlar terras rurais no Brasil. É uma exigência, um comando institucionalizado pela Constituição de 1988. E essa exigência deve ser lida à luz do princípio da soberania nacional.

Nunca a soberania sobre o território do País foi tão importante. Excetuada a garantia do Tribunal do Júri, a atual Constituição possui sete vezes a expressão “soberania”. É o fundamento primeiro da República e arquétipo da ordem econômica. Trata-se da própria essência de um Estado soberano: a preservação de seu território.

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Mas, para além disso, o controle da terra também é pressuposto da concretização de diversos direitos individuais e sociais, já que possui repercussão direta e imediata na segurança nacional, na segurança alimentar, na reforma agrária, na distribuição de recursos e na redução das desigualdades, bem como na preservação do meio ambiente do País.

Portanto, não é desarrazoado sustentar que a Lei n.º 5.709/1971, que restringe a aquisição e o arrendamento de terras por estrangeiros, apesar de ter sido promulgada durante o regime militar, talvez seja a lei mais recepcionada pela nova Constituição, exprimindo um verdadeiro “sentimento de soberania nacional”.

Porém, apesar da clareza do texto constitucional e da importância da proteção do território, esses limites constitucionais vêm sendo cada vez mais tensionados. Sobretudo a partir de 2008, diante da confluência de crises financeira, alimentar, energética e ambiental, estamos vivenciando uma verdadeira corrida global por terras, com agentes estrangeiros lançando mão de uma série de manobras jurídicas para driblar as restrições ao controle das propriedades rurais.

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A mais conhecida delas é o controle acionário – empresas brasileiras são criadas ou adquiridas por empresas e fundos estrangeiros com o intuito de camuflar a aquisição e exploração ilimitada de imóveis. No entanto, há uma série de outros artifícios que vêm sendo empregados para ocultar o controle da terra, como cessão de direito de superfície e arrendamentos rurais dissimulados de parcerias florestais.

Está em jogo a soberania do Brasil e os compromissos assumidos com o povo brasileiro. A bola está com a Suprema Corte. O STF – no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 342/DF e da Ação Cível Originária n.º 2.463/DF –, soberanamente, terá de tratar desse tema e decidir se estrangeiros poderão driblar a Constituição e controlar propriedades rurais em território brasileiro por meios indiretos.

Em tese, seria um easy case. No entanto, a depender do resultado, a decisão pode transformar-se em um tragic case. Ou seja, se for declarada a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei n.º 5.709/1971 que vedam o controle indireto de terras por estrangeiros, o Brasil corre o risco de cair no paradoxo de, em pleno regime democrático, regido pela Constituição mais compromissória e garantidora do mundo, proteger menos a soberania do território do que o fazia sob a égide de uma Constituição autoritária como a de 1967-1969, na qual nem sequer a palavra soberania (a não ser a do júri) aparecia no texto constitucional.

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Por isso, insisto: a soberania é condição de possibilidade da própria República. É o poder político e de decisão de um país dentro do seu território. Logo, não há dúvida de que vender terras para estrangeiros sem qualquer controle é renunciar a parte da soberania. É permitir enclaves. E isso não é moderno. Tampouco constitucional.

*

É PROFESSOR E ADVOGADO

Muito se fala que a pós-modernidade redefiniu a clássica noção de soberania cunhada por Jean Bodin. Em certa medida, isso até pode ser verdade. A globalização, as novas tecnologias da informação e a digitalização da vida social efetivamente romperam fronteiras e afetaram “esse poder absoluto e perpétuo que é próprio da República”. Hoje em dia estamos em todos os lugares. Contudo, há um elemento concreto que ainda escapa do alcance dessa nova regulação, dos algoritmos e dos softwares: o território dos Estados. A terra. O chão. As árvores.

Há um movimento internacional de proteção das riquezas e recursos naturais das nações. O mundo entende que a soberania sobre o território é poder e dominância. De países liberais como os EUA a potências nacionalistas como a Rússia, passando por vizinhos como a Argentina e por economias relevantes como México, Canadá e Austrália, vários são os países que impõem restrições à aquisição de terras por estrangeiros.

Digo isso porque a questão fundiária atualmente é objeto de importante discussão no Supremo Tribunal Federal (STF). O ponto é: podem empresas estrangeiras controlar grandes propriedades rurais no Brasil?

Para responder à questão, basta ler o que diz o artigo 190 da Constituição: “A lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira”. Não há margem de dúvida. Afinal, a Constituição não é um oxímoro: ela não pode ser e ao mesmo tempo não ser. No Direito não há espaço para “contentamentos descontentes”, como escreveu uma vez um poeta lusíada. A interpretação constitucional, diferentemente da poesia, não flerta com contradições.

Estrangeiros não podem controlar terras rurais no Brasil. É uma exigência, um comando institucionalizado pela Constituição de 1988. E essa exigência deve ser lida à luz do princípio da soberania nacional.

Nunca a soberania sobre o território do País foi tão importante. Excetuada a garantia do Tribunal do Júri, a atual Constituição possui sete vezes a expressão “soberania”. É o fundamento primeiro da República e arquétipo da ordem econômica. Trata-se da própria essência de um Estado soberano: a preservação de seu território.

Mas, para além disso, o controle da terra também é pressuposto da concretização de diversos direitos individuais e sociais, já que possui repercussão direta e imediata na segurança nacional, na segurança alimentar, na reforma agrária, na distribuição de recursos e na redução das desigualdades, bem como na preservação do meio ambiente do País.

Portanto, não é desarrazoado sustentar que a Lei n.º 5.709/1971, que restringe a aquisição e o arrendamento de terras por estrangeiros, apesar de ter sido promulgada durante o regime militar, talvez seja a lei mais recepcionada pela nova Constituição, exprimindo um verdadeiro “sentimento de soberania nacional”.

Porém, apesar da clareza do texto constitucional e da importância da proteção do território, esses limites constitucionais vêm sendo cada vez mais tensionados. Sobretudo a partir de 2008, diante da confluência de crises financeira, alimentar, energética e ambiental, estamos vivenciando uma verdadeira corrida global por terras, com agentes estrangeiros lançando mão de uma série de manobras jurídicas para driblar as restrições ao controle das propriedades rurais.

A mais conhecida delas é o controle acionário – empresas brasileiras são criadas ou adquiridas por empresas e fundos estrangeiros com o intuito de camuflar a aquisição e exploração ilimitada de imóveis. No entanto, há uma série de outros artifícios que vêm sendo empregados para ocultar o controle da terra, como cessão de direito de superfície e arrendamentos rurais dissimulados de parcerias florestais.

Está em jogo a soberania do Brasil e os compromissos assumidos com o povo brasileiro. A bola está com a Suprema Corte. O STF – no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 342/DF e da Ação Cível Originária n.º 2.463/DF –, soberanamente, terá de tratar desse tema e decidir se estrangeiros poderão driblar a Constituição e controlar propriedades rurais em território brasileiro por meios indiretos.

Em tese, seria um easy case. No entanto, a depender do resultado, a decisão pode transformar-se em um tragic case. Ou seja, se for declarada a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei n.º 5.709/1971 que vedam o controle indireto de terras por estrangeiros, o Brasil corre o risco de cair no paradoxo de, em pleno regime democrático, regido pela Constituição mais compromissória e garantidora do mundo, proteger menos a soberania do território do que o fazia sob a égide de uma Constituição autoritária como a de 1967-1969, na qual nem sequer a palavra soberania (a não ser a do júri) aparecia no texto constitucional.

Por isso, insisto: a soberania é condição de possibilidade da própria República. É o poder político e de decisão de um país dentro do seu território. Logo, não há dúvida de que vender terras para estrangeiros sem qualquer controle é renunciar a parte da soberania. É permitir enclaves. E isso não é moderno. Tampouco constitucional.

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É PROFESSOR E ADVOGADO

Muito se fala que a pós-modernidade redefiniu a clássica noção de soberania cunhada por Jean Bodin. Em certa medida, isso até pode ser verdade. A globalização, as novas tecnologias da informação e a digitalização da vida social efetivamente romperam fronteiras e afetaram “esse poder absoluto e perpétuo que é próprio da República”. Hoje em dia estamos em todos os lugares. Contudo, há um elemento concreto que ainda escapa do alcance dessa nova regulação, dos algoritmos e dos softwares: o território dos Estados. A terra. O chão. As árvores.

Há um movimento internacional de proteção das riquezas e recursos naturais das nações. O mundo entende que a soberania sobre o território é poder e dominância. De países liberais como os EUA a potências nacionalistas como a Rússia, passando por vizinhos como a Argentina e por economias relevantes como México, Canadá e Austrália, vários são os países que impõem restrições à aquisição de terras por estrangeiros.

Digo isso porque a questão fundiária atualmente é objeto de importante discussão no Supremo Tribunal Federal (STF). O ponto é: podem empresas estrangeiras controlar grandes propriedades rurais no Brasil?

Para responder à questão, basta ler o que diz o artigo 190 da Constituição: “A lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira”. Não há margem de dúvida. Afinal, a Constituição não é um oxímoro: ela não pode ser e ao mesmo tempo não ser. No Direito não há espaço para “contentamentos descontentes”, como escreveu uma vez um poeta lusíada. A interpretação constitucional, diferentemente da poesia, não flerta com contradições.

Estrangeiros não podem controlar terras rurais no Brasil. É uma exigência, um comando institucionalizado pela Constituição de 1988. E essa exigência deve ser lida à luz do princípio da soberania nacional.

Nunca a soberania sobre o território do País foi tão importante. Excetuada a garantia do Tribunal do Júri, a atual Constituição possui sete vezes a expressão “soberania”. É o fundamento primeiro da República e arquétipo da ordem econômica. Trata-se da própria essência de um Estado soberano: a preservação de seu território.

Mas, para além disso, o controle da terra também é pressuposto da concretização de diversos direitos individuais e sociais, já que possui repercussão direta e imediata na segurança nacional, na segurança alimentar, na reforma agrária, na distribuição de recursos e na redução das desigualdades, bem como na preservação do meio ambiente do País.

Portanto, não é desarrazoado sustentar que a Lei n.º 5.709/1971, que restringe a aquisição e o arrendamento de terras por estrangeiros, apesar de ter sido promulgada durante o regime militar, talvez seja a lei mais recepcionada pela nova Constituição, exprimindo um verdadeiro “sentimento de soberania nacional”.

Porém, apesar da clareza do texto constitucional e da importância da proteção do território, esses limites constitucionais vêm sendo cada vez mais tensionados. Sobretudo a partir de 2008, diante da confluência de crises financeira, alimentar, energética e ambiental, estamos vivenciando uma verdadeira corrida global por terras, com agentes estrangeiros lançando mão de uma série de manobras jurídicas para driblar as restrições ao controle das propriedades rurais.

A mais conhecida delas é o controle acionário – empresas brasileiras são criadas ou adquiridas por empresas e fundos estrangeiros com o intuito de camuflar a aquisição e exploração ilimitada de imóveis. No entanto, há uma série de outros artifícios que vêm sendo empregados para ocultar o controle da terra, como cessão de direito de superfície e arrendamentos rurais dissimulados de parcerias florestais.

Está em jogo a soberania do Brasil e os compromissos assumidos com o povo brasileiro. A bola está com a Suprema Corte. O STF – no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 342/DF e da Ação Cível Originária n.º 2.463/DF –, soberanamente, terá de tratar desse tema e decidir se estrangeiros poderão driblar a Constituição e controlar propriedades rurais em território brasileiro por meios indiretos.

Em tese, seria um easy case. No entanto, a depender do resultado, a decisão pode transformar-se em um tragic case. Ou seja, se for declarada a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei n.º 5.709/1971 que vedam o controle indireto de terras por estrangeiros, o Brasil corre o risco de cair no paradoxo de, em pleno regime democrático, regido pela Constituição mais compromissória e garantidora do mundo, proteger menos a soberania do território do que o fazia sob a égide de uma Constituição autoritária como a de 1967-1969, na qual nem sequer a palavra soberania (a não ser a do júri) aparecia no texto constitucional.

Por isso, insisto: a soberania é condição de possibilidade da própria República. É o poder político e de decisão de um país dentro do seu território. Logo, não há dúvida de que vender terras para estrangeiros sem qualquer controle é renunciar a parte da soberania. É permitir enclaves. E isso não é moderno. Tampouco constitucional.

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