Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o direito de recusa das Testemunhas de Jeová ao procedimento que envolva transfusão de sangue e, por desdobramento, reconheceu o direito a tratamentos alternativos disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS).
É muito importante deixarmos claro que a Suprema Corte atua quando é provocada. E dizemos isso porque com frequência tal questão é utilizada como justificativa para decisões exaradas quando estas desagradaram parcela importante da sociedade.
O equilíbrio da repartição dos Poderes está na maturidade que um Poder tenha no sentido de declinar análises de demandas ou matérias de competência de outro Poder.
Significa dizer que também caberia ao Judiciário dizer não e impor a si a autotutela no âmbito de certos debates e decisões. Quem sabe a temperança devesse ser introduzida como um novo e importante princípio da administração pública e dos Poderes constitucionais.
Se fizermos uma análise contextual, e, aqui, com críticas construtivas à decisão, o que temos são temas de debate nacional de primeiro momento: (a) o direito à liberdade religiosa; (b) a laicidade do Estado brasileiro; e (c) a interferência do Judiciário na execução de políticas públicas que cabem ao Executivo – sem a sua correspondente responsabilização pelos efeitos no âmbito da assistência à saúde.
A primeira questão a ser enfrentada é que o artigo 19 da Constituição federal do Brasil veda à União, aos Estados e ao Distrito Federal e municípios “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná́-los, embarcar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou suas representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
Significa dizer que o Estado é laico, pois permite que o cidadão escolha uma religião, ou escolha não ter uma religião – sem que isso imponha a ele qualquer desvantagem ou vantagem em relação aos outros cidadãos da sociedade brasileira.
Por outro lado, impõe ao Estado o dever de respeitar a opção individual do cidadão sem que a ele seja imputado benefício ou desvantagem em razão de sua escolha pessoal, como também sem que isso gere uma obrigação do Estado em atribuir ao cidadão vantagem ou desvantagem em decorrência dessa sua opinião.
A laicidade do Estado é uma proteção de mão dupla oferecida pela Constituição, para o Estado e para o cidadão.
Não é de hoje que há o debate de que convicções religiosas não devam se misturar com a política, com as decisões judiciais e com as políticas públicas – justamente para que essa proteção, que traduz o interesse originário da nossa Carta Constitucional, se mantenha preservada.
Mas é fato que hoje a religião se debruça e se mistura na política, no Judiciário e nas políticas públicas – tendo como sintoma um aumento de polarização, de intolerância, que impede discussões contemporâneas sobre modelos arcaicos e reacionários que ignoram qualquer base científica.
É importante pontuar que a Suprema Corte deu um passo importante contra o que determina a Constituição federal; não pelo reconhecimento do direito à recusa de tratamento por testemunha-de-jeová que queira optar pelo uso do procedimento que não envolva transfusão de sangue, mas, sim, por impor que o SUS seja obrigado a financiar tratamentos alternativos em função da liberdade religiosa de cada um – sem considerar os impactos assistenciais e financeiros que essa decisão impõe ao gestor público local que tem obrigação de fazer com que o atendimento público de saúde se materialize de maneira técnica, científica, igualitária e humanitária aos cidadãos.
Uma coisa é determinar que o SUS faça procedimentos alternativos e não disponíveis a pacientes cuja gravidade imponha tais tratamentos; outra coisa é obrigar que o SUS ofereça tratamentos alternativos quando já existem tratamentos ao usuário que, entenda-se, assinou um contrato social com um Estado laico, sobretudo onde instituições religiosas imunes mantêm hospitais que cobram de seus fiéis por tratamentos e cirurgias sem sangue.
Outro ponto importante é o de que decisões judiciais que adotam como métrica a prevalência da fé sobre questões científicas abrem um perigoso precedente para o retrocesso de pensamento e de respeito às liberdades que discutem hoje, por exemplo, o direito da mulher ao seu próprio corpo.
Sob o aspecto da política pública e financeira, não caberia ao Judiciário fixar uma norma geral cujos impactos não podem lhe ser imputados como desdobramentos diretos e indiretos de suas decisões – sem que se abra um debate técnico no campo da ciência, no campo financeiro e no campo organizacional das políticas públicas do Estado.
Sobretudo quando esses impactos são suportados por toda a sociedade, pelo gestor público do SUS, pelos profissionais da assistência que estão na ponta e que, não raro, têm de escolher quem vive ou quem morre por falta de recursos, materiais e profissionais, que deveriam estar disponíveis, mas não estão.
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ADVOGADO ESPECIALISTA EM DIREITO ADMINISTRATIVO PELA FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS, É DIRETOR JURÍDICO DO INSTITUTO BRASILEIRO DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DE SAÚDE (IBROSS)