Opinião|Nuvens políticas carregadas em 2024 (e depois)


Os cordões sanitários que permitiram isolar o extremismo de direita por 70 anos estão se esgarçando ou já se romperam. No Brasil, os ‘companheiros’ não parecem saber em que mundo estão vivendo

Por Sergio Fausto

Desde a eleição de Donald Trump em novembro de 2016, as democracias têm sido submetidas a constantes testes de estresse. Não será diferente em 2024, quando o ex-presidente, muito provavelmente, voltará a disputar com chances de vitória a Casa Branca. Se vencer, o risco para a democracia será maior do que da primeira vez. Embora seja a mais importante, a eleição presidencial nos Estados Unidos não é a única frente na batalha em defesa da democracia.

Os sinais de ascensão da extrema direita estão quase por toda parte. A vitória do partido nacionalista xenófobo nas eleições parlamentares na Holanda, em novembro, é presságio de avanços de partidos do mesmo naipe nas eleições para o Parlamento Europeu em junho de 2024. Na Espanha, os socialistas se viram na contingência de fazer um grande acordo político, que pode lhes custar caro no futuro, para evitar um governo com a presença da extrema direita. O que foi possível evitar na Espanha ao final deste ano é provável que ocorra em Portugal, onde eleições antecipadas para o início de 2024 podem levar ao governo uma coalizão integrada pelo Chega, irmão siamês do Vox. Em nenhum desses casos, a extrema direita alcança votos e cadeiras suficientes para liderar a maioria no Parlamento, mas se afirma como força incontornável para a direita chegar ao poder. Os cordões sanitários que permitiram isolar o extremismo de direita por 70 anos estão se esgarçando ou já se romperam.

Na Itália, onde o governo é liderado pelo partido de extrema direita Fratelli d’Italia, a primeira-ministra Giorgia Meloni adota uma política mais moderada do que faziam crer o seu programa e sua retórica de campanha. Recuo tático, provavelmente. A verdade é que as forças democráticas, da centro-direita a centro-esquerda, estão na defensiva em quase toda a Europa. A centro-esquerda europeia encontra dificuldade para responder às “promessas não cumpridas da democracia” em meio a tendências estruturais de concentração do capital, da renda e do poder e a tensões crescentes sobre a distribuição dos custos da transição para uma economia de baixo carbono. À insegurança econômica se somam e se associam temores em relação à imigração. Nesse contexto, o populismo nacionalista xenófobo e negacionista tem produzido respostas equivocadas, mas com crescente apelo eleitoral.

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Também na América Latina, as forças democráticas de centro e centro-esquerda estão na defensiva. É o que se vê no Chile, por exemplo, onde o governo de Gabriel Boric, que se abriu à social-democracia depois de muitos tropeços iniciais, se encontra com popularidade em baixa, enquanto a direita pura e dura ganha terreno na sociedade e na política. Na região, a insegurança econômica também está presente, embora não exatamente nos mesmos termos. À diferença da Europa, porém, a insegurança em relação à vida e à propriedade, provocada pela criminalidade endêmica e organizada, tem peso muito maior.

No Brasil, o governo Lula busca se equilibrar entre forças contraditórias. De um lado, vê-se obrigado a construir maioria parlamentar num Congresso conservador no qual o espaço da política local baseado em emendas parlamentares ocupa a maior parte da barganha política e do já exíguo espaço orçamentário não carimbado por despesas obrigatórias. De outro, tem de lidar com o próprio partido do presidente, em que predominam uma visão míope de curto prazo e ideias gastas sobre as virtudes intrínsecas – não importando onde, como e quando – de maior gasto público e intervenção estatal. Consideradas essas dificuldades, que estreitam o raio de manobra para programas e reformas de maior fôlego e abrangência, penso que o governo Lula não vai mal.

Ainda assim, os riscos de insucesso e suas graves consequências políticas não devem ser minimizados. A alternativa provável a um governo heterogêneo e contraditório como o atual não é o dos sonhos dos liberais progressistas e social-democratas tupiniquins, entre os quais me incluo. Como mostram Felipe Nunes e Thomas Traumann no recém-lançado Biografia do Abismo: como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil, livro publicado pela Harper Collins, a polarização entre o “lulismo” e o “bolsonarismo”, mesmo sem Bolsonaro, dá sinais de se ossificar.

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Essa ossificação impõe dois desafios. De um lado, trabalhar politicamente para construir uma alternativa à polarização mesmo que seja, no nível nacional, para depois de 2026. De outro, aprofundar o aprendizado de fazer política no interior de frentes amplas, sob pena de ver avançar uma direita sem escrúpulos democráticos e civilizatórios. Não é fácil fazer as duas coisas, mas é necessário.

A presença no governo Lula de políticos não petistas de expressão nacional, como o vice-presidente Geraldo Alckmin e as ministras Simone Tebet e Marina Silva, indica que o aprendizado está sendo feito do lado de fora do partido. Mas e dentro do PT? Voltados para o seu próprio umbigo, velhas crenças e interesses de curto prazo, os “companheiros” não parecem saber em que mundo estão vivendo, a julgar pela esdrúxula manifestação de sua mais recente “conferência eleitoral”.

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DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO GACINT-USP

Desde a eleição de Donald Trump em novembro de 2016, as democracias têm sido submetidas a constantes testes de estresse. Não será diferente em 2024, quando o ex-presidente, muito provavelmente, voltará a disputar com chances de vitória a Casa Branca. Se vencer, o risco para a democracia será maior do que da primeira vez. Embora seja a mais importante, a eleição presidencial nos Estados Unidos não é a única frente na batalha em defesa da democracia.

Os sinais de ascensão da extrema direita estão quase por toda parte. A vitória do partido nacionalista xenófobo nas eleições parlamentares na Holanda, em novembro, é presságio de avanços de partidos do mesmo naipe nas eleições para o Parlamento Europeu em junho de 2024. Na Espanha, os socialistas se viram na contingência de fazer um grande acordo político, que pode lhes custar caro no futuro, para evitar um governo com a presença da extrema direita. O que foi possível evitar na Espanha ao final deste ano é provável que ocorra em Portugal, onde eleições antecipadas para o início de 2024 podem levar ao governo uma coalizão integrada pelo Chega, irmão siamês do Vox. Em nenhum desses casos, a extrema direita alcança votos e cadeiras suficientes para liderar a maioria no Parlamento, mas se afirma como força incontornável para a direita chegar ao poder. Os cordões sanitários que permitiram isolar o extremismo de direita por 70 anos estão se esgarçando ou já se romperam.

Na Itália, onde o governo é liderado pelo partido de extrema direita Fratelli d’Italia, a primeira-ministra Giorgia Meloni adota uma política mais moderada do que faziam crer o seu programa e sua retórica de campanha. Recuo tático, provavelmente. A verdade é que as forças democráticas, da centro-direita a centro-esquerda, estão na defensiva em quase toda a Europa. A centro-esquerda europeia encontra dificuldade para responder às “promessas não cumpridas da democracia” em meio a tendências estruturais de concentração do capital, da renda e do poder e a tensões crescentes sobre a distribuição dos custos da transição para uma economia de baixo carbono. À insegurança econômica se somam e se associam temores em relação à imigração. Nesse contexto, o populismo nacionalista xenófobo e negacionista tem produzido respostas equivocadas, mas com crescente apelo eleitoral.

Também na América Latina, as forças democráticas de centro e centro-esquerda estão na defensiva. É o que se vê no Chile, por exemplo, onde o governo de Gabriel Boric, que se abriu à social-democracia depois de muitos tropeços iniciais, se encontra com popularidade em baixa, enquanto a direita pura e dura ganha terreno na sociedade e na política. Na região, a insegurança econômica também está presente, embora não exatamente nos mesmos termos. À diferença da Europa, porém, a insegurança em relação à vida e à propriedade, provocada pela criminalidade endêmica e organizada, tem peso muito maior.

No Brasil, o governo Lula busca se equilibrar entre forças contraditórias. De um lado, vê-se obrigado a construir maioria parlamentar num Congresso conservador no qual o espaço da política local baseado em emendas parlamentares ocupa a maior parte da barganha política e do já exíguo espaço orçamentário não carimbado por despesas obrigatórias. De outro, tem de lidar com o próprio partido do presidente, em que predominam uma visão míope de curto prazo e ideias gastas sobre as virtudes intrínsecas – não importando onde, como e quando – de maior gasto público e intervenção estatal. Consideradas essas dificuldades, que estreitam o raio de manobra para programas e reformas de maior fôlego e abrangência, penso que o governo Lula não vai mal.

Ainda assim, os riscos de insucesso e suas graves consequências políticas não devem ser minimizados. A alternativa provável a um governo heterogêneo e contraditório como o atual não é o dos sonhos dos liberais progressistas e social-democratas tupiniquins, entre os quais me incluo. Como mostram Felipe Nunes e Thomas Traumann no recém-lançado Biografia do Abismo: como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil, livro publicado pela Harper Collins, a polarização entre o “lulismo” e o “bolsonarismo”, mesmo sem Bolsonaro, dá sinais de se ossificar.

Essa ossificação impõe dois desafios. De um lado, trabalhar politicamente para construir uma alternativa à polarização mesmo que seja, no nível nacional, para depois de 2026. De outro, aprofundar o aprendizado de fazer política no interior de frentes amplas, sob pena de ver avançar uma direita sem escrúpulos democráticos e civilizatórios. Não é fácil fazer as duas coisas, mas é necessário.

A presença no governo Lula de políticos não petistas de expressão nacional, como o vice-presidente Geraldo Alckmin e as ministras Simone Tebet e Marina Silva, indica que o aprendizado está sendo feito do lado de fora do partido. Mas e dentro do PT? Voltados para o seu próprio umbigo, velhas crenças e interesses de curto prazo, os “companheiros” não parecem saber em que mundo estão vivendo, a julgar pela esdrúxula manifestação de sua mais recente “conferência eleitoral”.

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DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO GACINT-USP

Desde a eleição de Donald Trump em novembro de 2016, as democracias têm sido submetidas a constantes testes de estresse. Não será diferente em 2024, quando o ex-presidente, muito provavelmente, voltará a disputar com chances de vitória a Casa Branca. Se vencer, o risco para a democracia será maior do que da primeira vez. Embora seja a mais importante, a eleição presidencial nos Estados Unidos não é a única frente na batalha em defesa da democracia.

Os sinais de ascensão da extrema direita estão quase por toda parte. A vitória do partido nacionalista xenófobo nas eleições parlamentares na Holanda, em novembro, é presságio de avanços de partidos do mesmo naipe nas eleições para o Parlamento Europeu em junho de 2024. Na Espanha, os socialistas se viram na contingência de fazer um grande acordo político, que pode lhes custar caro no futuro, para evitar um governo com a presença da extrema direita. O que foi possível evitar na Espanha ao final deste ano é provável que ocorra em Portugal, onde eleições antecipadas para o início de 2024 podem levar ao governo uma coalizão integrada pelo Chega, irmão siamês do Vox. Em nenhum desses casos, a extrema direita alcança votos e cadeiras suficientes para liderar a maioria no Parlamento, mas se afirma como força incontornável para a direita chegar ao poder. Os cordões sanitários que permitiram isolar o extremismo de direita por 70 anos estão se esgarçando ou já se romperam.

Na Itália, onde o governo é liderado pelo partido de extrema direita Fratelli d’Italia, a primeira-ministra Giorgia Meloni adota uma política mais moderada do que faziam crer o seu programa e sua retórica de campanha. Recuo tático, provavelmente. A verdade é que as forças democráticas, da centro-direita a centro-esquerda, estão na defensiva em quase toda a Europa. A centro-esquerda europeia encontra dificuldade para responder às “promessas não cumpridas da democracia” em meio a tendências estruturais de concentração do capital, da renda e do poder e a tensões crescentes sobre a distribuição dos custos da transição para uma economia de baixo carbono. À insegurança econômica se somam e se associam temores em relação à imigração. Nesse contexto, o populismo nacionalista xenófobo e negacionista tem produzido respostas equivocadas, mas com crescente apelo eleitoral.

Também na América Latina, as forças democráticas de centro e centro-esquerda estão na defensiva. É o que se vê no Chile, por exemplo, onde o governo de Gabriel Boric, que se abriu à social-democracia depois de muitos tropeços iniciais, se encontra com popularidade em baixa, enquanto a direita pura e dura ganha terreno na sociedade e na política. Na região, a insegurança econômica também está presente, embora não exatamente nos mesmos termos. À diferença da Europa, porém, a insegurança em relação à vida e à propriedade, provocada pela criminalidade endêmica e organizada, tem peso muito maior.

No Brasil, o governo Lula busca se equilibrar entre forças contraditórias. De um lado, vê-se obrigado a construir maioria parlamentar num Congresso conservador no qual o espaço da política local baseado em emendas parlamentares ocupa a maior parte da barganha política e do já exíguo espaço orçamentário não carimbado por despesas obrigatórias. De outro, tem de lidar com o próprio partido do presidente, em que predominam uma visão míope de curto prazo e ideias gastas sobre as virtudes intrínsecas – não importando onde, como e quando – de maior gasto público e intervenção estatal. Consideradas essas dificuldades, que estreitam o raio de manobra para programas e reformas de maior fôlego e abrangência, penso que o governo Lula não vai mal.

Ainda assim, os riscos de insucesso e suas graves consequências políticas não devem ser minimizados. A alternativa provável a um governo heterogêneo e contraditório como o atual não é o dos sonhos dos liberais progressistas e social-democratas tupiniquins, entre os quais me incluo. Como mostram Felipe Nunes e Thomas Traumann no recém-lançado Biografia do Abismo: como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil, livro publicado pela Harper Collins, a polarização entre o “lulismo” e o “bolsonarismo”, mesmo sem Bolsonaro, dá sinais de se ossificar.

Essa ossificação impõe dois desafios. De um lado, trabalhar politicamente para construir uma alternativa à polarização mesmo que seja, no nível nacional, para depois de 2026. De outro, aprofundar o aprendizado de fazer política no interior de frentes amplas, sob pena de ver avançar uma direita sem escrúpulos democráticos e civilizatórios. Não é fácil fazer as duas coisas, mas é necessário.

A presença no governo Lula de políticos não petistas de expressão nacional, como o vice-presidente Geraldo Alckmin e as ministras Simone Tebet e Marina Silva, indica que o aprendizado está sendo feito do lado de fora do partido. Mas e dentro do PT? Voltados para o seu próprio umbigo, velhas crenças e interesses de curto prazo, os “companheiros” não parecem saber em que mundo estão vivendo, a julgar pela esdrúxula manifestação de sua mais recente “conferência eleitoral”.

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