Desde 2019 o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) é a pioneira entidade brasileira admitida como membro associado do comitê de concorrência da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que aceitou nossa agência antitruste após profundo exame pelos pares, que é a maneira como é identificada a avaliação da instituição.
O ingresso veio acompanhado de recomendações daquele órgão, sendo algumas voltadas para questões relacionadas a critérios de aplicação de multas, outras a critérios gerais de avaliação de conduta das empresas e, destaque-se o que parece ser a principal delas: a de incrementar o número de investigações de práticas de abuso de poder econômico, as chamadas condutas unilaterais (não confundir com cartéis ou com infrações da propriedade industrial, como concorrência desleal, por exemplo).
A recomendação foi provocada pela histórica inércia do Cade em atentar para as práticas adotadas por agentes que dominam dado mercado e afetam o ambiente que deveria ser de saudável concorrência entre todos.
O motivo de tal comportamento inerte reside na tendência dos estudiosos brasileiros de se perfilarem à Escola de Harvard, movimento que desde o início do século passado afirmava ser o tamanho das empresas um mal em si, e propunha a vedação ao crescimento desenfreado culminando até mesmo com o desmembramento daquelas que se colocassem como alvo. Em contraposição a tal escola, a de Chicago, em meados daquele século, elegia a eficiência como um valor mais relevante que o tamanho da firma.
A escolha entre ambas obedece mais a critérios ideológicos do que técnicos ou científicos. Isso porque há acadêmicos de renome defendendo cada uma delas (por exemplo, Frederic Scherer, por Harvard; ou o Nobel Milton Friedman, por Chicago), o que traduz a existência de suficiente base argumentativa para uma ou outra opção.
A evolução de nossa legislação sutilmente seguiu a tendência de Harvard e o resultado é que o Cade sempre demonstrou uma preocupação maior com o controle de concentração de mercado do que propriamente com a fiscalização dos abusos cometidos por agentes dominantes – exceção feita à persecução dos cartéis.
Mas o que a Constituição determina é que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico” e, não obstante, o legislador preferiu se render à escola que privilegia o controle do crescimento das empresas, mesmo que a própria lei admita o crescimento por eficiência e não vede o monopólio, como em outras jurisdições.
A própria atualização da lei de concorrência (da anterior Lei n.º 8.884 para a nova, Lei n.º 12.529) teve como modificação mais notável a modernização do controle de concentração, que passou de a posteriori para o antecipado, seguindo o exemplo da maioria de outras jurisdições. O que se busca controlar, com o modelo anterior ou o atual, é o crescimento da empresa a ponto de assumir tal poder econômico que dele possa abusar.
Tal opção passa por uma visão ideológica do papel do Estado e sua intervenção na economia. Mas será a mais adequada? Tome-se, por exemplo, a fabricação de automóveis. Não são raros os veículos que conseguem atingir mais de 200 km por hora. Isso significa um potencial de infração da lei nas mãos de todos os motoristas. Deveria o Estado coibir a produção de veículos com tal potencial, ou dotar as estradas de fiscalização eficiente para punir o abuso daquele que detém tal poder?
O Estado totalitário chinês providenciou um bom exemplo, como noticiado há poucos dias. Limitou, por decreto, a velocidade máxima de scooters elétricas (controle preventivo, tal como o de concentração econômica). O resultado? Uma enxurrada de fraudes, seguindo tutoriais na internet, dos usuários para contornar o limitador eletrônico. É de indagar: não seria mais eficiente a fiscalização do excesso de velocidade praticado pelos usuários?
Transpondo o raciocínio para o controle da concorrência, pode-se repetir a pergunta: qual o papel mais eficiente da parte do Estado? Controlar o crescimento por fusões e aquisições ou implantar um sistema rigoroso de controle de condutas? De qualquer modo, ainda que a opção não se coloque de maneira bipolar – como se fosse a política tupiniquim –, parece necessário um equilíbrio entre as duas atividades.
E o Cade parece, finalmente, caminhar nessa direção. Recentemente, a superintendência-geral criou uma coordenação com a competência de cuidar de processos de conduta unilateral. Apesar da boa nova, deve-se ter em mente que o Cade rarissimamente age por iniciativa própria, ou de ofício. O motivo é que inexiste estrutura fiscalizadora para tanto. Depende, portanto, de representação de interessados, o que transporta para os agentes econômicos, principalmente, a função de movimentar a máquina estatal naquilo que, repita-se, parece ser sua função primordial: a de identificar, julgar e reprimir o abuso do poder econômico. Tal como manda a Constituição e tal como recomenda a OCDE.
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ADVOGADO