Opinião|O difícil e lento triunfo da educação técnica


Só uma política que a fomente e lhe garanta status será capaz de resistir ao enfeitiçamento do modelo educacional que privilegiou o saber verborrágico como atributo da elite social e cultural

Por Isaías Pascoal

Poucas instituições são mais representativas da estrutura social d0 que as educacionais. Elas refletem o estado da sociedade no plano da cultura, política, economia, mentalidade e das hierarquias sociais. São uma espécie de microcosmo da sociedade. A História ensina que elas são muito resistentes à mudança. São apegadas a padrões que só muito lentamente cedem.

A formação profissional, organizada regularmente num sistema educacional coeso, só há muito pouco tempo triunfou. No século 19, há experimentos crescentes dela nos Estados Unidos e em vários países europeus, tendo à frente o que veio a ser a Alemanha após 1871. A sua consolidação é uma conquista do século 20. Embora tenha avançado no Brasil, o processo é ainda lento.

Hoje, a média de estudantes matriculados na educação técnica nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) está em torno de 44% em relação ao montante geral de alunos no ensino secundário (que corresponde ao nosso ensino médio). Em alguns países, o porcentual é bem mais alto que a média: Luxemburgo, Suíça, Finlândia, Eslováquia, República Checa, Áustria, Holanda, Croácia e Eslovênia estão na faixa de 61% a 70%.

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Olhando apenas a “fotografia” de hoje, parece que foi fácil. Engano. Por milênios, a formação profissional foi ignorada pelas instituições privadas e públicas que trabalhavam com educação. Era um processo que ocorria na família, informalmente, ou uma atividade situada fora dos rudimentos do que poderia ser concebido como um sistema educacional. É o caso das “corporações de ofício” surgidas por volta do século 12 e que persistiram em vários países até o século 18.

As corporações talvez sejam o caso mais exitoso de formação profissional da História. Elas cumpriram uma função social importante por longo tempo. Só deixaram de existir em razão do avanço das relações capitalistas, que, em certo momento, se viram limitadas pelas práticas inadequadas das corporações em relação às necessidades capitalistas de livre concorrência, competição ou, como dizia Joseph Schumpeter, destruição criativa incessante.

As corporações, no entanto, surgiram à margem das instituições educacionais medievais mais importantes: as escolas episcopais e as universidades. Elas eram próprias do ambiente urbano em expansão, com grande número de comerciantes e artesãos organizados na regulamentação e defesa das suas atividades. Nelas foi constituído um sistema de ensino prático de formação profissional que durava vários anos e era escalonado. Começava com o aprendiz, cuja formação durava de dois a sete anos, evoluía para o oficial, que, já sabedor dos segredos do ofício, era remunerado, e alcançava o auge quando ele apresentava uma obra própria para ser avaliada por mestres que a aprovavam ou não. Aprovado, o oficial se tornava um mestre, dono da própria oficina, e daí tirava o seu sustento e usufruía o status social correspondente.

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O mundo onde as instituições educacionais surgiram e se estabilizaram, embora sem formar um sistema, foi o grego da era clássica e, sobretudo, o helenístico (348-146 a.C.). Quando Roma se tornou hegemônica no Mediterrâneo, suas instituições educacionais se inspiravam no que fora construído durante a era helenística. A educação nesses períodos era essencialmente literária, gramatical e filosófica. Destinava-se a formar o homem ético, humanístico, perscrutador dos sentidos da História, apto a atuar politicamente e capaz de proferir discursos que revelavam sua formação sofisticada e superior. A oratória foi o grande produto educacional daqueles tempos, ensinada e glorificada por ícones culturais como Isócrates, Cícero e Quintiliano.

Henri Marrou, grande historiador da educação no período clássico, afirmava que, “acima de tudo, a pedagogia clássica interessava-se pelo homem em si, não pelo técnico apto a desempenhar tarefa particular. O pensamento antigo desdenha a orientação técnica”. Segundo ele, o mestre que ensinava a ler e escrever era um técnico, menor que o pedagogo responsável por acompanhar a criança e cuidar da sua formação moral.

Essa mentalidade perdurou por séculos. Na Idade Média, ela recebeu a roupagem dos estudos de gramática e literatura nas escolas episcopais e do trivium (gramática, retórica e dialética) e quadrivium nas universidades medievais.

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Foi só com o avanço do capitalismo, da divisão mais acentuada do trabalho que ele produziu e da insuficiência da preparação profissional em ambiente doméstico e informal que emergiu a necessidade de uma estrutura educacional focada na formação técnica. Ela, no entanto, é ainda ofuscada pela tradição escolar acadêmica e bacharelesca.

Somente uma política de Estado que a fomente e lhe garanta status será capaz de resistir ao enfeitiçamento do modelo educacional, que, por longo tempo, privilegiou o saber enciclopédico, literário e verborrágico como atributo da elite social e cultural. Não à toa, ser chamado de “doutor” teve no passado, e continua tendo no presente, um significado de distinção social que enaltece e envaidece.

*

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DOUTOR EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Poucas instituições são mais representativas da estrutura social d0 que as educacionais. Elas refletem o estado da sociedade no plano da cultura, política, economia, mentalidade e das hierarquias sociais. São uma espécie de microcosmo da sociedade. A História ensina que elas são muito resistentes à mudança. São apegadas a padrões que só muito lentamente cedem.

A formação profissional, organizada regularmente num sistema educacional coeso, só há muito pouco tempo triunfou. No século 19, há experimentos crescentes dela nos Estados Unidos e em vários países europeus, tendo à frente o que veio a ser a Alemanha após 1871. A sua consolidação é uma conquista do século 20. Embora tenha avançado no Brasil, o processo é ainda lento.

Hoje, a média de estudantes matriculados na educação técnica nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) está em torno de 44% em relação ao montante geral de alunos no ensino secundário (que corresponde ao nosso ensino médio). Em alguns países, o porcentual é bem mais alto que a média: Luxemburgo, Suíça, Finlândia, Eslováquia, República Checa, Áustria, Holanda, Croácia e Eslovênia estão na faixa de 61% a 70%.

Olhando apenas a “fotografia” de hoje, parece que foi fácil. Engano. Por milênios, a formação profissional foi ignorada pelas instituições privadas e públicas que trabalhavam com educação. Era um processo que ocorria na família, informalmente, ou uma atividade situada fora dos rudimentos do que poderia ser concebido como um sistema educacional. É o caso das “corporações de ofício” surgidas por volta do século 12 e que persistiram em vários países até o século 18.

As corporações talvez sejam o caso mais exitoso de formação profissional da História. Elas cumpriram uma função social importante por longo tempo. Só deixaram de existir em razão do avanço das relações capitalistas, que, em certo momento, se viram limitadas pelas práticas inadequadas das corporações em relação às necessidades capitalistas de livre concorrência, competição ou, como dizia Joseph Schumpeter, destruição criativa incessante.

As corporações, no entanto, surgiram à margem das instituições educacionais medievais mais importantes: as escolas episcopais e as universidades. Elas eram próprias do ambiente urbano em expansão, com grande número de comerciantes e artesãos organizados na regulamentação e defesa das suas atividades. Nelas foi constituído um sistema de ensino prático de formação profissional que durava vários anos e era escalonado. Começava com o aprendiz, cuja formação durava de dois a sete anos, evoluía para o oficial, que, já sabedor dos segredos do ofício, era remunerado, e alcançava o auge quando ele apresentava uma obra própria para ser avaliada por mestres que a aprovavam ou não. Aprovado, o oficial se tornava um mestre, dono da própria oficina, e daí tirava o seu sustento e usufruía o status social correspondente.

O mundo onde as instituições educacionais surgiram e se estabilizaram, embora sem formar um sistema, foi o grego da era clássica e, sobretudo, o helenístico (348-146 a.C.). Quando Roma se tornou hegemônica no Mediterrâneo, suas instituições educacionais se inspiravam no que fora construído durante a era helenística. A educação nesses períodos era essencialmente literária, gramatical e filosófica. Destinava-se a formar o homem ético, humanístico, perscrutador dos sentidos da História, apto a atuar politicamente e capaz de proferir discursos que revelavam sua formação sofisticada e superior. A oratória foi o grande produto educacional daqueles tempos, ensinada e glorificada por ícones culturais como Isócrates, Cícero e Quintiliano.

Henri Marrou, grande historiador da educação no período clássico, afirmava que, “acima de tudo, a pedagogia clássica interessava-se pelo homem em si, não pelo técnico apto a desempenhar tarefa particular. O pensamento antigo desdenha a orientação técnica”. Segundo ele, o mestre que ensinava a ler e escrever era um técnico, menor que o pedagogo responsável por acompanhar a criança e cuidar da sua formação moral.

Essa mentalidade perdurou por séculos. Na Idade Média, ela recebeu a roupagem dos estudos de gramática e literatura nas escolas episcopais e do trivium (gramática, retórica e dialética) e quadrivium nas universidades medievais.

Foi só com o avanço do capitalismo, da divisão mais acentuada do trabalho que ele produziu e da insuficiência da preparação profissional em ambiente doméstico e informal que emergiu a necessidade de uma estrutura educacional focada na formação técnica. Ela, no entanto, é ainda ofuscada pela tradição escolar acadêmica e bacharelesca.

Somente uma política de Estado que a fomente e lhe garanta status será capaz de resistir ao enfeitiçamento do modelo educacional, que, por longo tempo, privilegiou o saber enciclopédico, literário e verborrágico como atributo da elite social e cultural. Não à toa, ser chamado de “doutor” teve no passado, e continua tendo no presente, um significado de distinção social que enaltece e envaidece.

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DOUTOR EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Poucas instituições são mais representativas da estrutura social d0 que as educacionais. Elas refletem o estado da sociedade no plano da cultura, política, economia, mentalidade e das hierarquias sociais. São uma espécie de microcosmo da sociedade. A História ensina que elas são muito resistentes à mudança. São apegadas a padrões que só muito lentamente cedem.

A formação profissional, organizada regularmente num sistema educacional coeso, só há muito pouco tempo triunfou. No século 19, há experimentos crescentes dela nos Estados Unidos e em vários países europeus, tendo à frente o que veio a ser a Alemanha após 1871. A sua consolidação é uma conquista do século 20. Embora tenha avançado no Brasil, o processo é ainda lento.

Hoje, a média de estudantes matriculados na educação técnica nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) está em torno de 44% em relação ao montante geral de alunos no ensino secundário (que corresponde ao nosso ensino médio). Em alguns países, o porcentual é bem mais alto que a média: Luxemburgo, Suíça, Finlândia, Eslováquia, República Checa, Áustria, Holanda, Croácia e Eslovênia estão na faixa de 61% a 70%.

Olhando apenas a “fotografia” de hoje, parece que foi fácil. Engano. Por milênios, a formação profissional foi ignorada pelas instituições privadas e públicas que trabalhavam com educação. Era um processo que ocorria na família, informalmente, ou uma atividade situada fora dos rudimentos do que poderia ser concebido como um sistema educacional. É o caso das “corporações de ofício” surgidas por volta do século 12 e que persistiram em vários países até o século 18.

As corporações talvez sejam o caso mais exitoso de formação profissional da História. Elas cumpriram uma função social importante por longo tempo. Só deixaram de existir em razão do avanço das relações capitalistas, que, em certo momento, se viram limitadas pelas práticas inadequadas das corporações em relação às necessidades capitalistas de livre concorrência, competição ou, como dizia Joseph Schumpeter, destruição criativa incessante.

As corporações, no entanto, surgiram à margem das instituições educacionais medievais mais importantes: as escolas episcopais e as universidades. Elas eram próprias do ambiente urbano em expansão, com grande número de comerciantes e artesãos organizados na regulamentação e defesa das suas atividades. Nelas foi constituído um sistema de ensino prático de formação profissional que durava vários anos e era escalonado. Começava com o aprendiz, cuja formação durava de dois a sete anos, evoluía para o oficial, que, já sabedor dos segredos do ofício, era remunerado, e alcançava o auge quando ele apresentava uma obra própria para ser avaliada por mestres que a aprovavam ou não. Aprovado, o oficial se tornava um mestre, dono da própria oficina, e daí tirava o seu sustento e usufruía o status social correspondente.

O mundo onde as instituições educacionais surgiram e se estabilizaram, embora sem formar um sistema, foi o grego da era clássica e, sobretudo, o helenístico (348-146 a.C.). Quando Roma se tornou hegemônica no Mediterrâneo, suas instituições educacionais se inspiravam no que fora construído durante a era helenística. A educação nesses períodos era essencialmente literária, gramatical e filosófica. Destinava-se a formar o homem ético, humanístico, perscrutador dos sentidos da História, apto a atuar politicamente e capaz de proferir discursos que revelavam sua formação sofisticada e superior. A oratória foi o grande produto educacional daqueles tempos, ensinada e glorificada por ícones culturais como Isócrates, Cícero e Quintiliano.

Henri Marrou, grande historiador da educação no período clássico, afirmava que, “acima de tudo, a pedagogia clássica interessava-se pelo homem em si, não pelo técnico apto a desempenhar tarefa particular. O pensamento antigo desdenha a orientação técnica”. Segundo ele, o mestre que ensinava a ler e escrever era um técnico, menor que o pedagogo responsável por acompanhar a criança e cuidar da sua formação moral.

Essa mentalidade perdurou por séculos. Na Idade Média, ela recebeu a roupagem dos estudos de gramática e literatura nas escolas episcopais e do trivium (gramática, retórica e dialética) e quadrivium nas universidades medievais.

Foi só com o avanço do capitalismo, da divisão mais acentuada do trabalho que ele produziu e da insuficiência da preparação profissional em ambiente doméstico e informal que emergiu a necessidade de uma estrutura educacional focada na formação técnica. Ela, no entanto, é ainda ofuscada pela tradição escolar acadêmica e bacharelesca.

Somente uma política de Estado que a fomente e lhe garanta status será capaz de resistir ao enfeitiçamento do modelo educacional, que, por longo tempo, privilegiou o saber enciclopédico, literário e verborrágico como atributo da elite social e cultural. Não à toa, ser chamado de “doutor” teve no passado, e continua tendo no presente, um significado de distinção social que enaltece e envaidece.

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Opinião por Isaías Pascoal

Doutor em Ciências Sociais

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