Estejamos no hospital em razão de uma internação, num laboratório para a realização de exames, ou, ainda, numa farmácia, sempre nos solicitam os dados pessoais, e, como regra geral, não nos preocupamos com as consequências disso, por considerá-lo um simples ato do cotidiano.
Da mesma forma, não nos causa desassossego como um hospital ou um laboratório armazena ou compartilha nossos dados relacionados à saúde, ou, ainda, de nossos filhos, e muito menos de que modo as farmácias e as indústrias farmacêuticas se inter-relacionam em termos de identificação dos nossos padrões de compras e comorbidades, assim como as operadoras de plano de saúde catalogam nossas doenças e as precificam.
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) – Lei n.º 13.709/18 – tem por objetivo tutelar essas informações e as classifica, respectivamente, em pessoais e sensíveis. As primeiras são quaisquer referências que permitem a sua identificação por intermédio do nome, RG ou CPF, geolocalização e outros elementos físicos, ou ainda suas preferências culturais ou sociais.
Já os dados sensíveis são aqueles concernentes à sua saúde, origem racial, étnica, convicção religiosa, filosófica, política, além dos aspectos genético ou biométrico.
Basicamente, não nos damos conta de que cada um de nós enquanto indivíduos somos literalmente um mundo de informações utilizadas para traçar nosso perfil, desde compras de bens e serviços, incluindo medicamentos, até tendências político-ideológicas, e no futuro breve servirão para a prevenção e redução de doenças e até influenciar no valor do prêmio (parcela mensal) do nosso plano de saúde.
Desde 2019, o Ministério da Saúde instituiu um Programa de Apoio à Informatização e Qualificação dos Dados da Atenção Primária à Saúde para implementar um sistema de prontuário eletrônico dos pacientes atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) com informações sobre a saúde.
Em 2020, este projeto foi ampliado por intermédio do ConecteSUS, com o objetivo de integrar a gestão da saúde dos cidadãos pelos estabelecimentos públicos e privados, de forma a consolidar num único sistema informações sobre atendimentos, exames realizados, diagnósticos, assim como medicamentos prescritos e dispensados a cada um de nós enquanto pacientes.
Até o momento, este sistema não foi concluído e tampouco traçado um planejamento estratégico sobre como os nossos dados serão administrados em termos de observância à LGPD, o que não retira o mérito e a importância da proposta inicial, mas demonstra um certo descompasso, a título de exemplo, com a União Europeia, que, por intermédio do MyHealth@EU, já opera serviços eletrônicos de saúde transfronteiriços, permitindo que um médico ou um farmacêutico em um país diverso da residência do paciente, mediante seu consentimento, tenha todas as informações traduzidas simultaneamente num sistema não conectado à internet.
Considerando esses aspectos, é necessário que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados e a sociedade iniciem as discussões sobre o prontuário nacional de saúde, visto que tais dados permitirão a hospitais, indústrias de medicamentos, clínicas e farmácias um dinâmico acesso ao nosso estado de saúde, possibilitando a otimização de diagnósticos e a racionalização dos gastos com exames, terapias e medicamentos.
Além disso, será possível que a administração pública melhore o monitoramento de surtos, endemias e epidemias, substituindo os inúmeros mecanismos brasileiros de controle, tais como o Sistema de Informação de Agravos de Notificação, o Sinan (doenças de notificação compulsória), e o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), por apenas um, de forma a reduzir os riscos de vazamento de dados e permitir uma melhor estruturação de políticas públicas, assim como a adequada mensuração em termos de resultados, que deverão ser amplamente divulgados para fins de controle.
Outro aspecto de índole econômica e sanitária que não consta da agenda do governo é a interoperabilidade de dados com o mercado das operadoras de seguro-saúde, que, a despeito da vedação do uso para a prática de seleção de riscos na contratação ou exclusão de beneficiários, será um importante meio de racionalização da qualidade em atenção à saúde.
Ainda sob essa ótica, o segundo ponto a ser enfatizado é a possibilidade de utilização dos dados para avanços no campo da saúde a partir do acesso por pesquisadores e empresas, mediante a observância de rígidas regras de acesso, que deverão ser disciplinadas pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados.
Trata-se de assunto de extrema importância, tendo em vista que durante a pandemia (entre 2020 e 2021) mais de 7,5 milhões de atendimentos virtuais foram realizados por 52,2 mil médicos, de acordo com a associação que representa os operadores de telemedicina do País, mas a preocupação com a proteção dos dados de saúde não evoluiu na mesma proporção.
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PROCURADOR AUTÁRQUICO, ADVOGADO, DATA PROTECTION OFFICER, PÓS-GRADUADO EM DIREITO PÚBLICO, É MESTRE EM DIREITO PELA PUC-SP