Opinião|O lobo e vetos urgentes no zoneamento em SP


Que o prefeito tenha bom senso nos vetos. E que a memória paulistana resista aos que preferem instrumentalizá-la

Por Gabriel Rostey

É regra em parte da sociedade paulistana, especialmente na suposta elite intelectual, a repulsa à verticalização e ao que chama de “especulação imobiliária” (termo utilizado como sinônimo de “setor imobiliário”). A cada revisão de Plano Diretor ou zoneamento, repete-se grita panfletária de entidades e universidades, passando por professores, ativistas e cidadãos engajados, na linha “a cidade será destruída por interesses mesquinhos que farão tudo virar prédio”.

Segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, cerca de 60% dos imóveis brasileiros apresentam irregularidade formal, e nesse ambiente a autoconstrução e a informalidade predominam. Levantamento do Datafolha para o CAU/BR estima que 82% das obras de moradia no País não contam com serviços de arquiteto ou engenheiro. O panorama das cidades brasileiras é de precariedade, e são urgentes os estímulos à produção imobiliária formal.

Entretanto ainda prevalece uma visão urbana modernista, baseada numa austeridade tecnicista de capacidade de carga, como se “vias fossem colapsar” com mais densidade. Não à toa, produzimos cidades formais com ruas mortas e, mesmo passando a impressão de tantos prédios altos, baixa densidade populacional. As exceções são bairros como Copacabana e República, verticalizados antes da hegemonia do urbanismo modernista na legislação, nos anos 1970. Enquanto nossa pseudointelligentsia exalta Paris e Barcelona, constituídas quase inteiramente por prédios em uma grande região central, lamenta que nossas cidades sigam nessa direção (já que o uso misto voltou após décadas de proibição).

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O principal ponto válido contra a verticalização em São Paulo é a devastação da memória, porém isso não é responsabilidade do setor imobiliário, mas sim da Prefeitura, que até hoje não realizou um óbvio e urgente inventário. Quase todo o município jamais passou por avaliação do Departamento do Patrimônio Histórico, que se manifesta só quando provocado em casos pontuais. É isso que permite a destruição de bens de valor cultural em uma cidade com pouco mais de 4 mil construções protegidas, menos do que Porto Alegre – 218 anos mais nova e com cerca de 1/9 da população – e insignificante frente aos mais de 30 mil do Rio de Janeiro e 37 mil de Nova York. Assim a história é varrida, e enquanto ativistas gritam contra a “especulação imobiliária” como causa de todos males, imóveis centenários dão lugar não apenas a espigões, como também a estacionamentos, novas construções baixas ou descaracterizadas à toa, como no caso do Barnaldo Lucrécia.

Fora a insegurança jurídica: repetem-se casos de patrimônios estabelecidos, como o anexo do Espaço Itaú de Cinema e o Bar Balcão, consagrados há tempos, que ao correrem risco de fechar as portas após investimentos privados para novos empreendimentos que os substituiriam, subitamente se tornam alvo de pedido de tombamento e campanhas comunitárias de preservação. Isso seria evitado se os bens já tivessem sido avaliados a priori pelo Conpresp – órgão municipal de patrimônio.

Um inventário do patrimônio cultural é previsto desde o Plano Diretor de 2014, mas em vez de a Câmara enfrentar essa omissão, preferiu inventar na revisão da Lei de Zoneamento uma subordinação das decisões do Conpresp sobre tombamento aos vereadores. Em tempos nos quais se discute crise entre os Poderes e se o Judiciário invade atribuições legislativas, é um disparate que os legisladores paulistanos tentem usurpar deliberações de área técnica do Poder Executivo.

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A revisão também gera polêmica pelo aumento da altura máxima permitida para prédios nos miolos de bairro. Há equivocada fixação no debate público pela altura: a permissão para prédios mais altos não altera o principal fator de definição de uma edificação, que é o potencial construtivo, a metragem que é possível construir num terreno. Aumentar o limite de altura não fará nenhum prédio ser “maior”, apenas permitirá outra disposição, com mais andares e menor ocupação do lote, ou seja, maior espaço livre no térreo.

Ponto problemático aprovado pela Câmara é a liberação para habitação de baixa renda nas Zonas Especiais de Proteção Ambiental. Não é a primeira vez que se propõe algo do tipo, mesmo sendo ilógico: se uma área recebeu tal classificação, é porque qualquer intervenção deve ser analisada pelo impacto ambiental que trará, pouco importando se a finalidade é social ou outra qualquer. Por que se propõe algo nocivo – a ocupação de áreas ambientais – às custas de suposta boa intenção? Meio ambiente, mananciais e áreas alagáveis não se importam se quem lhes faz mal são os mais ou menos necessitados.

Que o prefeito tenha bom senso nos vetos. E que a memória paulistana resista aos que não se importam e aos que preferem instrumentalizá-la para luta político-partidária ou corporativismo de associações de bairro Nimby (not in my backyard, que significa “não no meu quintal”). É necessário um debate público menos histérico e ideologizado para reconhecer reais ameaças em meio ao surto de adultos gritando “lobo”.

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CRIADOR DO PODCAST ‘CONVERSAS URBANAS’, CONSULTOR EM POLÍTICA URBANA, PATRIMÔNIO CULTURAL E TURISMO, FOI MEMBRO DO CONSELHO MUNICIPAL DE POLÍTICA URBANA DE SÃO PAULO E SECRETÁRIO-GERAL DA ASSOCIAÇÃO PRESERVA SÃO PAULO

É regra em parte da sociedade paulistana, especialmente na suposta elite intelectual, a repulsa à verticalização e ao que chama de “especulação imobiliária” (termo utilizado como sinônimo de “setor imobiliário”). A cada revisão de Plano Diretor ou zoneamento, repete-se grita panfletária de entidades e universidades, passando por professores, ativistas e cidadãos engajados, na linha “a cidade será destruída por interesses mesquinhos que farão tudo virar prédio”.

Segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, cerca de 60% dos imóveis brasileiros apresentam irregularidade formal, e nesse ambiente a autoconstrução e a informalidade predominam. Levantamento do Datafolha para o CAU/BR estima que 82% das obras de moradia no País não contam com serviços de arquiteto ou engenheiro. O panorama das cidades brasileiras é de precariedade, e são urgentes os estímulos à produção imobiliária formal.

Entretanto ainda prevalece uma visão urbana modernista, baseada numa austeridade tecnicista de capacidade de carga, como se “vias fossem colapsar” com mais densidade. Não à toa, produzimos cidades formais com ruas mortas e, mesmo passando a impressão de tantos prédios altos, baixa densidade populacional. As exceções são bairros como Copacabana e República, verticalizados antes da hegemonia do urbanismo modernista na legislação, nos anos 1970. Enquanto nossa pseudointelligentsia exalta Paris e Barcelona, constituídas quase inteiramente por prédios em uma grande região central, lamenta que nossas cidades sigam nessa direção (já que o uso misto voltou após décadas de proibição).

O principal ponto válido contra a verticalização em São Paulo é a devastação da memória, porém isso não é responsabilidade do setor imobiliário, mas sim da Prefeitura, que até hoje não realizou um óbvio e urgente inventário. Quase todo o município jamais passou por avaliação do Departamento do Patrimônio Histórico, que se manifesta só quando provocado em casos pontuais. É isso que permite a destruição de bens de valor cultural em uma cidade com pouco mais de 4 mil construções protegidas, menos do que Porto Alegre – 218 anos mais nova e com cerca de 1/9 da população – e insignificante frente aos mais de 30 mil do Rio de Janeiro e 37 mil de Nova York. Assim a história é varrida, e enquanto ativistas gritam contra a “especulação imobiliária” como causa de todos males, imóveis centenários dão lugar não apenas a espigões, como também a estacionamentos, novas construções baixas ou descaracterizadas à toa, como no caso do Barnaldo Lucrécia.

Fora a insegurança jurídica: repetem-se casos de patrimônios estabelecidos, como o anexo do Espaço Itaú de Cinema e o Bar Balcão, consagrados há tempos, que ao correrem risco de fechar as portas após investimentos privados para novos empreendimentos que os substituiriam, subitamente se tornam alvo de pedido de tombamento e campanhas comunitárias de preservação. Isso seria evitado se os bens já tivessem sido avaliados a priori pelo Conpresp – órgão municipal de patrimônio.

Um inventário do patrimônio cultural é previsto desde o Plano Diretor de 2014, mas em vez de a Câmara enfrentar essa omissão, preferiu inventar na revisão da Lei de Zoneamento uma subordinação das decisões do Conpresp sobre tombamento aos vereadores. Em tempos nos quais se discute crise entre os Poderes e se o Judiciário invade atribuições legislativas, é um disparate que os legisladores paulistanos tentem usurpar deliberações de área técnica do Poder Executivo.

A revisão também gera polêmica pelo aumento da altura máxima permitida para prédios nos miolos de bairro. Há equivocada fixação no debate público pela altura: a permissão para prédios mais altos não altera o principal fator de definição de uma edificação, que é o potencial construtivo, a metragem que é possível construir num terreno. Aumentar o limite de altura não fará nenhum prédio ser “maior”, apenas permitirá outra disposição, com mais andares e menor ocupação do lote, ou seja, maior espaço livre no térreo.

Ponto problemático aprovado pela Câmara é a liberação para habitação de baixa renda nas Zonas Especiais de Proteção Ambiental. Não é a primeira vez que se propõe algo do tipo, mesmo sendo ilógico: se uma área recebeu tal classificação, é porque qualquer intervenção deve ser analisada pelo impacto ambiental que trará, pouco importando se a finalidade é social ou outra qualquer. Por que se propõe algo nocivo – a ocupação de áreas ambientais – às custas de suposta boa intenção? Meio ambiente, mananciais e áreas alagáveis não se importam se quem lhes faz mal são os mais ou menos necessitados.

Que o prefeito tenha bom senso nos vetos. E que a memória paulistana resista aos que não se importam e aos que preferem instrumentalizá-la para luta político-partidária ou corporativismo de associações de bairro Nimby (not in my backyard, que significa “não no meu quintal”). É necessário um debate público menos histérico e ideologizado para reconhecer reais ameaças em meio ao surto de adultos gritando “lobo”.

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CRIADOR DO PODCAST ‘CONVERSAS URBANAS’, CONSULTOR EM POLÍTICA URBANA, PATRIMÔNIO CULTURAL E TURISMO, FOI MEMBRO DO CONSELHO MUNICIPAL DE POLÍTICA URBANA DE SÃO PAULO E SECRETÁRIO-GERAL DA ASSOCIAÇÃO PRESERVA SÃO PAULO

É regra em parte da sociedade paulistana, especialmente na suposta elite intelectual, a repulsa à verticalização e ao que chama de “especulação imobiliária” (termo utilizado como sinônimo de “setor imobiliário”). A cada revisão de Plano Diretor ou zoneamento, repete-se grita panfletária de entidades e universidades, passando por professores, ativistas e cidadãos engajados, na linha “a cidade será destruída por interesses mesquinhos que farão tudo virar prédio”.

Segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, cerca de 60% dos imóveis brasileiros apresentam irregularidade formal, e nesse ambiente a autoconstrução e a informalidade predominam. Levantamento do Datafolha para o CAU/BR estima que 82% das obras de moradia no País não contam com serviços de arquiteto ou engenheiro. O panorama das cidades brasileiras é de precariedade, e são urgentes os estímulos à produção imobiliária formal.

Entretanto ainda prevalece uma visão urbana modernista, baseada numa austeridade tecnicista de capacidade de carga, como se “vias fossem colapsar” com mais densidade. Não à toa, produzimos cidades formais com ruas mortas e, mesmo passando a impressão de tantos prédios altos, baixa densidade populacional. As exceções são bairros como Copacabana e República, verticalizados antes da hegemonia do urbanismo modernista na legislação, nos anos 1970. Enquanto nossa pseudointelligentsia exalta Paris e Barcelona, constituídas quase inteiramente por prédios em uma grande região central, lamenta que nossas cidades sigam nessa direção (já que o uso misto voltou após décadas de proibição).

O principal ponto válido contra a verticalização em São Paulo é a devastação da memória, porém isso não é responsabilidade do setor imobiliário, mas sim da Prefeitura, que até hoje não realizou um óbvio e urgente inventário. Quase todo o município jamais passou por avaliação do Departamento do Patrimônio Histórico, que se manifesta só quando provocado em casos pontuais. É isso que permite a destruição de bens de valor cultural em uma cidade com pouco mais de 4 mil construções protegidas, menos do que Porto Alegre – 218 anos mais nova e com cerca de 1/9 da população – e insignificante frente aos mais de 30 mil do Rio de Janeiro e 37 mil de Nova York. Assim a história é varrida, e enquanto ativistas gritam contra a “especulação imobiliária” como causa de todos males, imóveis centenários dão lugar não apenas a espigões, como também a estacionamentos, novas construções baixas ou descaracterizadas à toa, como no caso do Barnaldo Lucrécia.

Fora a insegurança jurídica: repetem-se casos de patrimônios estabelecidos, como o anexo do Espaço Itaú de Cinema e o Bar Balcão, consagrados há tempos, que ao correrem risco de fechar as portas após investimentos privados para novos empreendimentos que os substituiriam, subitamente se tornam alvo de pedido de tombamento e campanhas comunitárias de preservação. Isso seria evitado se os bens já tivessem sido avaliados a priori pelo Conpresp – órgão municipal de patrimônio.

Um inventário do patrimônio cultural é previsto desde o Plano Diretor de 2014, mas em vez de a Câmara enfrentar essa omissão, preferiu inventar na revisão da Lei de Zoneamento uma subordinação das decisões do Conpresp sobre tombamento aos vereadores. Em tempos nos quais se discute crise entre os Poderes e se o Judiciário invade atribuições legislativas, é um disparate que os legisladores paulistanos tentem usurpar deliberações de área técnica do Poder Executivo.

A revisão também gera polêmica pelo aumento da altura máxima permitida para prédios nos miolos de bairro. Há equivocada fixação no debate público pela altura: a permissão para prédios mais altos não altera o principal fator de definição de uma edificação, que é o potencial construtivo, a metragem que é possível construir num terreno. Aumentar o limite de altura não fará nenhum prédio ser “maior”, apenas permitirá outra disposição, com mais andares e menor ocupação do lote, ou seja, maior espaço livre no térreo.

Ponto problemático aprovado pela Câmara é a liberação para habitação de baixa renda nas Zonas Especiais de Proteção Ambiental. Não é a primeira vez que se propõe algo do tipo, mesmo sendo ilógico: se uma área recebeu tal classificação, é porque qualquer intervenção deve ser analisada pelo impacto ambiental que trará, pouco importando se a finalidade é social ou outra qualquer. Por que se propõe algo nocivo – a ocupação de áreas ambientais – às custas de suposta boa intenção? Meio ambiente, mananciais e áreas alagáveis não se importam se quem lhes faz mal são os mais ou menos necessitados.

Que o prefeito tenha bom senso nos vetos. E que a memória paulistana resista aos que não se importam e aos que preferem instrumentalizá-la para luta político-partidária ou corporativismo de associações de bairro Nimby (not in my backyard, que significa “não no meu quintal”). É necessário um debate público menos histérico e ideologizado para reconhecer reais ameaças em meio ao surto de adultos gritando “lobo”.

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CRIADOR DO PODCAST ‘CONVERSAS URBANAS’, CONSULTOR EM POLÍTICA URBANA, PATRIMÔNIO CULTURAL E TURISMO, FOI MEMBRO DO CONSELHO MUNICIPAL DE POLÍTICA URBANA DE SÃO PAULO E SECRETÁRIO-GERAL DA ASSOCIAÇÃO PRESERVA SÃO PAULO

É regra em parte da sociedade paulistana, especialmente na suposta elite intelectual, a repulsa à verticalização e ao que chama de “especulação imobiliária” (termo utilizado como sinônimo de “setor imobiliário”). A cada revisão de Plano Diretor ou zoneamento, repete-se grita panfletária de entidades e universidades, passando por professores, ativistas e cidadãos engajados, na linha “a cidade será destruída por interesses mesquinhos que farão tudo virar prédio”.

Segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, cerca de 60% dos imóveis brasileiros apresentam irregularidade formal, e nesse ambiente a autoconstrução e a informalidade predominam. Levantamento do Datafolha para o CAU/BR estima que 82% das obras de moradia no País não contam com serviços de arquiteto ou engenheiro. O panorama das cidades brasileiras é de precariedade, e são urgentes os estímulos à produção imobiliária formal.

Entretanto ainda prevalece uma visão urbana modernista, baseada numa austeridade tecnicista de capacidade de carga, como se “vias fossem colapsar” com mais densidade. Não à toa, produzimos cidades formais com ruas mortas e, mesmo passando a impressão de tantos prédios altos, baixa densidade populacional. As exceções são bairros como Copacabana e República, verticalizados antes da hegemonia do urbanismo modernista na legislação, nos anos 1970. Enquanto nossa pseudointelligentsia exalta Paris e Barcelona, constituídas quase inteiramente por prédios em uma grande região central, lamenta que nossas cidades sigam nessa direção (já que o uso misto voltou após décadas de proibição).

O principal ponto válido contra a verticalização em São Paulo é a devastação da memória, porém isso não é responsabilidade do setor imobiliário, mas sim da Prefeitura, que até hoje não realizou um óbvio e urgente inventário. Quase todo o município jamais passou por avaliação do Departamento do Patrimônio Histórico, que se manifesta só quando provocado em casos pontuais. É isso que permite a destruição de bens de valor cultural em uma cidade com pouco mais de 4 mil construções protegidas, menos do que Porto Alegre – 218 anos mais nova e com cerca de 1/9 da população – e insignificante frente aos mais de 30 mil do Rio de Janeiro e 37 mil de Nova York. Assim a história é varrida, e enquanto ativistas gritam contra a “especulação imobiliária” como causa de todos males, imóveis centenários dão lugar não apenas a espigões, como também a estacionamentos, novas construções baixas ou descaracterizadas à toa, como no caso do Barnaldo Lucrécia.

Fora a insegurança jurídica: repetem-se casos de patrimônios estabelecidos, como o anexo do Espaço Itaú de Cinema e o Bar Balcão, consagrados há tempos, que ao correrem risco de fechar as portas após investimentos privados para novos empreendimentos que os substituiriam, subitamente se tornam alvo de pedido de tombamento e campanhas comunitárias de preservação. Isso seria evitado se os bens já tivessem sido avaliados a priori pelo Conpresp – órgão municipal de patrimônio.

Um inventário do patrimônio cultural é previsto desde o Plano Diretor de 2014, mas em vez de a Câmara enfrentar essa omissão, preferiu inventar na revisão da Lei de Zoneamento uma subordinação das decisões do Conpresp sobre tombamento aos vereadores. Em tempos nos quais se discute crise entre os Poderes e se o Judiciário invade atribuições legislativas, é um disparate que os legisladores paulistanos tentem usurpar deliberações de área técnica do Poder Executivo.

A revisão também gera polêmica pelo aumento da altura máxima permitida para prédios nos miolos de bairro. Há equivocada fixação no debate público pela altura: a permissão para prédios mais altos não altera o principal fator de definição de uma edificação, que é o potencial construtivo, a metragem que é possível construir num terreno. Aumentar o limite de altura não fará nenhum prédio ser “maior”, apenas permitirá outra disposição, com mais andares e menor ocupação do lote, ou seja, maior espaço livre no térreo.

Ponto problemático aprovado pela Câmara é a liberação para habitação de baixa renda nas Zonas Especiais de Proteção Ambiental. Não é a primeira vez que se propõe algo do tipo, mesmo sendo ilógico: se uma área recebeu tal classificação, é porque qualquer intervenção deve ser analisada pelo impacto ambiental que trará, pouco importando se a finalidade é social ou outra qualquer. Por que se propõe algo nocivo – a ocupação de áreas ambientais – às custas de suposta boa intenção? Meio ambiente, mananciais e áreas alagáveis não se importam se quem lhes faz mal são os mais ou menos necessitados.

Que o prefeito tenha bom senso nos vetos. E que a memória paulistana resista aos que não se importam e aos que preferem instrumentalizá-la para luta político-partidária ou corporativismo de associações de bairro Nimby (not in my backyard, que significa “não no meu quintal”). É necessário um debate público menos histérico e ideologizado para reconhecer reais ameaças em meio ao surto de adultos gritando “lobo”.

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CRIADOR DO PODCAST ‘CONVERSAS URBANAS’, CONSULTOR EM POLÍTICA URBANA, PATRIMÔNIO CULTURAL E TURISMO, FOI MEMBRO DO CONSELHO MUNICIPAL DE POLÍTICA URBANA DE SÃO PAULO E SECRETÁRIO-GERAL DA ASSOCIAÇÃO PRESERVA SÃO PAULO

É regra em parte da sociedade paulistana, especialmente na suposta elite intelectual, a repulsa à verticalização e ao que chama de “especulação imobiliária” (termo utilizado como sinônimo de “setor imobiliário”). A cada revisão de Plano Diretor ou zoneamento, repete-se grita panfletária de entidades e universidades, passando por professores, ativistas e cidadãos engajados, na linha “a cidade será destruída por interesses mesquinhos que farão tudo virar prédio”.

Segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, cerca de 60% dos imóveis brasileiros apresentam irregularidade formal, e nesse ambiente a autoconstrução e a informalidade predominam. Levantamento do Datafolha para o CAU/BR estima que 82% das obras de moradia no País não contam com serviços de arquiteto ou engenheiro. O panorama das cidades brasileiras é de precariedade, e são urgentes os estímulos à produção imobiliária formal.

Entretanto ainda prevalece uma visão urbana modernista, baseada numa austeridade tecnicista de capacidade de carga, como se “vias fossem colapsar” com mais densidade. Não à toa, produzimos cidades formais com ruas mortas e, mesmo passando a impressão de tantos prédios altos, baixa densidade populacional. As exceções são bairros como Copacabana e República, verticalizados antes da hegemonia do urbanismo modernista na legislação, nos anos 1970. Enquanto nossa pseudointelligentsia exalta Paris e Barcelona, constituídas quase inteiramente por prédios em uma grande região central, lamenta que nossas cidades sigam nessa direção (já que o uso misto voltou após décadas de proibição).

O principal ponto válido contra a verticalização em São Paulo é a devastação da memória, porém isso não é responsabilidade do setor imobiliário, mas sim da Prefeitura, que até hoje não realizou um óbvio e urgente inventário. Quase todo o município jamais passou por avaliação do Departamento do Patrimônio Histórico, que se manifesta só quando provocado em casos pontuais. É isso que permite a destruição de bens de valor cultural em uma cidade com pouco mais de 4 mil construções protegidas, menos do que Porto Alegre – 218 anos mais nova e com cerca de 1/9 da população – e insignificante frente aos mais de 30 mil do Rio de Janeiro e 37 mil de Nova York. Assim a história é varrida, e enquanto ativistas gritam contra a “especulação imobiliária” como causa de todos males, imóveis centenários dão lugar não apenas a espigões, como também a estacionamentos, novas construções baixas ou descaracterizadas à toa, como no caso do Barnaldo Lucrécia.

Fora a insegurança jurídica: repetem-se casos de patrimônios estabelecidos, como o anexo do Espaço Itaú de Cinema e o Bar Balcão, consagrados há tempos, que ao correrem risco de fechar as portas após investimentos privados para novos empreendimentos que os substituiriam, subitamente se tornam alvo de pedido de tombamento e campanhas comunitárias de preservação. Isso seria evitado se os bens já tivessem sido avaliados a priori pelo Conpresp – órgão municipal de patrimônio.

Um inventário do patrimônio cultural é previsto desde o Plano Diretor de 2014, mas em vez de a Câmara enfrentar essa omissão, preferiu inventar na revisão da Lei de Zoneamento uma subordinação das decisões do Conpresp sobre tombamento aos vereadores. Em tempos nos quais se discute crise entre os Poderes e se o Judiciário invade atribuições legislativas, é um disparate que os legisladores paulistanos tentem usurpar deliberações de área técnica do Poder Executivo.

A revisão também gera polêmica pelo aumento da altura máxima permitida para prédios nos miolos de bairro. Há equivocada fixação no debate público pela altura: a permissão para prédios mais altos não altera o principal fator de definição de uma edificação, que é o potencial construtivo, a metragem que é possível construir num terreno. Aumentar o limite de altura não fará nenhum prédio ser “maior”, apenas permitirá outra disposição, com mais andares e menor ocupação do lote, ou seja, maior espaço livre no térreo.

Ponto problemático aprovado pela Câmara é a liberação para habitação de baixa renda nas Zonas Especiais de Proteção Ambiental. Não é a primeira vez que se propõe algo do tipo, mesmo sendo ilógico: se uma área recebeu tal classificação, é porque qualquer intervenção deve ser analisada pelo impacto ambiental que trará, pouco importando se a finalidade é social ou outra qualquer. Por que se propõe algo nocivo – a ocupação de áreas ambientais – às custas de suposta boa intenção? Meio ambiente, mananciais e áreas alagáveis não se importam se quem lhes faz mal são os mais ou menos necessitados.

Que o prefeito tenha bom senso nos vetos. E que a memória paulistana resista aos que não se importam e aos que preferem instrumentalizá-la para luta político-partidária ou corporativismo de associações de bairro Nimby (not in my backyard, que significa “não no meu quintal”). É necessário um debate público menos histérico e ideologizado para reconhecer reais ameaças em meio ao surto de adultos gritando “lobo”.

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Criador do podcast 'Conversas Urbanas', consultor em política urbana, patrimônio cultural e turismo, foi membro do Conselho Municipal de Política Urbana de São Paulo e secretário-geral da Associação Preserva São Paulo

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