Há quase 40 anos, no finalzinho dos anos 1970, os estudantes que frequentavam passeatas não gostavam de ser fotografados. Às vezes, no meio da massa em movimento, um cidadão se empertigava estático feito um poste, de objetiva em punho, e tentava enquadrar os passantes. Imediatamente os jovens cobriam o rosto e se deslocavam para fora da cena. Nisso seguiam a orientação expressa de seus líderes, que sempre alertavam para a presença de ratos (agentes da repressão disfarçados de gente normal) fantasiados de repórteres fotográficos para fichar o rosto dos militantes.
Identificar um rato de câmera na mão não era difícil. O cabelo mais ou menos aparado, a roupa de bancário “caxias” e a completa falta de intimidade no manuseio do equipamento bastavam para denunciá-lo. Eram ridículos, muito embora ameaçadores. Desagradáveis. Eram intrusos num tempo em que fotos e manifestações não combinavam. As primeiras trabalhavam para a polícia, as segundas queriam derrubar a ditadura. Logo, os estudantes não gostavam de ser fotografados.
Agora, fotos e manifestações se reconciliaram. Mais do que combinar umas com as outras, elas se desejam numa pulsão irrefreável. Elas se hipnotizam reciprocamente, devoram-se numa paixão escópica faiscante, num furor estroboscópico. Hoje os manifestantes são personagens: personas especialmente paramentadas para a ocasião.
Atuam diligentemente para os cinegrafistas, que se entregam a contorcionismos na busca do ângulo mais sensual da efeméride, como se clicassem (como dizem) um ensaio de moda para uma revista de estilo. Talvez seja disso mesmo que se trate. Moças ficam nuas, moças de direita e moças de esquerda. A nudez não tem ideologia, só tem fotogenia.
Há o figurino passeata. Executivos, milionários e autoridades fora do horário de expediente trajam a camiseta da seleção brasileira e levantam cartazes supostamente criativos, posando para os celulares em frenesi. Os protestos escorrem como uma encenação, uma novíssima modalidade de corso cívico-carnavalesco, que almeja o estrelato.
Consequentemente, falam a língua da imagem. As passeatas pelo impeachment são pura imagem, assim como a Parada do Orgulho Gay, a Marcha para Jesus e as tietes adolescentes que, no gargarejo, erguem os braços suados e os fazem ondular como um campo de trigo ao vento enquanto entoam de cor os refrões dos cantores de sertanejo universitário. Só a imagem conta. Só a forma.
O chamado “conteúdo” é o de menos. As palavras de ordem guardam incoerências entre si, as bandeiras e as propostas de uns e outros podem parecer esquizoides quando postas lado a lado. Apenas a imagem unifica as passeatas num bloco tão compacto quanto a massa asfáltica. Alguns manifestantes pedem “intervenção militar”, outros preferem “renúncia”. Suas bandeiras são antagônicas. O que eles têm em comum é o modo de se expressar por imagens e a vontade de aparecer. Como eles gostam de posar para o zoom, como gostam de ser fotografados, ainda que, aqui e ali, façam um certo ar de enfado.
Isso é interessante. Os manifestantes atuais se comprazem no vedetismo, mas insinuam algo de blasé. Uns até reclamam. Alegam que já marcharam mais do que deles se esperava (e de graça, ainda por cima) para despoltronar a presidente da República. Mesmo assim, como que convocados pelo picadeiro da Pátria, acabam se motivando outra vez, embriagados pela veleidade de que prestam um favor à História do Brasil. Lá vão eles, abnegados e exibicionistas, emprestar o semblante ao festival de imagens que se seguirá ao vespertino passeio dominical. Em seu estado de graça, desfilam munidos dessa entidade inconteste e soberana da cultura globalitária: o inquebrantável, o venerável, o inigualável pau de selfie.
Graças aos préstimos dessa nova ferramenta do olhar, o indefectível pau de selfie, o fotógrafo e o manifestante se fundem numa só persona. Clicar e posar se tornam um único verbo, um verbo de ligação. Olhar e ser olhado é a mesma coisa. Nunca antes na História deste País – e, de resto, nunca antes na História da humanidade – o narcisismo reinou tão pleno sobre todos os espaços. Nunca o narcisismo esteve tão no centro e, simultaneamente, nas fronteiras mais longínquas de tudo o que se pode ver. O narcisismo brilha como o Sol e também nos emoldura como a abóbada celeste. O narcisismo é a forma presente do ego – e o pau de selfie é sua tradução mais concentrada, a sua mais sintética projeção.
O pau de selfie transforma o mundo inteiro no espelho de seu dono. Uma passeata de paus de selfie – que parecem uma luta de espadas no meio da rua – é a apoteose do narcisismo. Governo Dilma, PT, Lula, petrolão, ora, isso é mero detalhe.
O pau de selfie se estira para contemplar o ego, como um retrovisor. O ego posa para si mesmo. Fotografa a si mesmo. Simula o olhar de um outro – onde não há outro – apenas para contemplar seu próprio deslumbramento. E tome pau de selfie. Existem paus de selfie telescópicos, que veem o ego de longe; existem paus de selfie mínimos, que veem o ego de pertinho. Com seus tamanhos virtualmente infinitos, o pau de selfie é o suprassumo de todos os símbolos fálicos que o precederam. Flechas, canetas, charutos, obeliscos, minaretes, foguetes, campanários, mísseis, obeliscos, arranha-céus, que nada. O pau de selfie é o falo que se olha no espetáculo do mundo.
O pau de selfie reduziu a contestação política a um roteiro turístico, um tour a pé, um pacote de aventura medida (e autorizada) que vai depois enfeitar uma tela de computador, como uma visita ao Louvre, uma pescaria, uma noitada vã. Com paus de selfie a dar com pau, as passeatas atingiram a condição de item de consumo, de entretenimento participativo, uma sessão narcísica de relaxamento asséptico. Talvez derrubem o governo, mas não quebrarão a redoma espelhada de que se tornaram prisioneiras.
*Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP