Opinião|O STF e o assédio judicial contra jornalistas


Ao menos no que toca ao uso abusivo de ações indenizatórias dispersas e coordenadas, a Corte poderá desde logo pôr freio nessa prática

Por Rafael Mafei

Em meio a tantos temas urgentes, o Supremo Tribunal Federal (STF) passará a julgar, a partir de hoje, um assunto crucial para a democracia brasileira. Ao decidir ações ajuizadas, entre outros, pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o Supremo firmará posicionamento sobre o chamado assédio judicial contra jornalistas.

“Assédio judicial”, expressão cunhada pela advogada Taís Gasparian, designa o uso abusivo do direito de acesso à justiça – um direito fundamental à cidadania –, porém visando a um fim ilegítimo: trazer apavorantes ônus jurídicos, que implicam reveses financeiros, profissionais e emocionais, a profissionais de imprensa que reportam e opinam sobre assuntos de interesse público, mas que pessoas poderosas desejam silenciar.

Ao contrário de ações ajuizadas de boa-fé, que buscam reparação proporcional por um dano que se julga ter sofrido (por, digamos, um grave erro de reportagem), o assédio judicial caracteriza-se pelo objetivo precípuo de, por meio de estratégia de litígio calculada para levar à exaustão, criar ônus insuportáveis para quem tem de responder às ações, mesmo que as demandas sejam desprovidas de fundamento razoável.

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Um caso seminal de assédio judicial foi promovido contra a jornalista Elvira Lobato, em 2008, por reportagens publicadas sobre o poderoso império político e empresarial, com muitas práticas suspeitas, no qual a Igreja Universal havia se transformado. A reação foi brutal: aproveitando-se das vantagens conferidas pela Lei dos Juizados Especiais, importante diploma que facilita aos cidadãos acionar o Judiciário contra grandes corporações, foram ajuizadas ações indenizatórias coordenadas contra ela.

Petições idênticas chegaram ao mesmo tempo em foros de todo o País. Sob ameaça de revelia, a jornalista teve de comparecer a audiências a centenas de quilômetros umas das outras, às vezes marcadas com horas de diferença. A lei pensada para dar voz judicial aos desempoderados foi usada como ferramenta de assédio em benefício de uma organização de imenso poder religioso, econômico e político, contra o interesse público. O caso ficou amplamente conhecido, espalhando medo e convidando à autocensura da imprensa.

O caso de Elvira Lobato não foi isolado. Em 2016, um grupo de jornalistas da Gazeta do Povo passou meses rodando o Paraná para responder a processos indenizatórios. Motivo: uma reportagem sobre supersalários de juízes e promotores paranaenses, na qual se questionava, com base em dados públicos, a moralidade dos pagamentos. Somadas, as indenizações pedidas chegavam à casa do milhão. Não pouparam sequer o infografista do jornal, que apenas ilustrara a matéria. A angústia dos jornalistas há de ter sido enorme, pois eles fatalmente seriam julgados, especialmente em primeiro e segundo graus, por membros da mesma classe que os perseguia.

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Este segundo caso, que também será julgado pelo Supremo na mesma oportunidade, mostra o tamanho do perigo que o assédio judicial representa. Membros de qualquer grupo social podem valer-se dele: filiados de um partido, por exemplo, podem dizer-se ofendidos e dispersar ações coordenadas País afora contra uma colunista que critique duramente sua agremiação. Seria tão simples quanto compartilhar um modelo de petição em grupo de mensagens. E ela deverá responder a todas individualmente, do Oiapoque ao Chuí, por mais infundadas que sejam.

Por analogia ao argumento de que democracias hoje morrem de formas sutis, o Supremo deveria reconhecer que também o silenciamento de jornalistas pode ser buscado por meios outros que não os censores estatais e as torturas de outrora. O assédio judicial faz uso deturpado de ferramentas que a democracia garante aos cidadãos, para prejudicar o direito à informação relativo a temas de interesse público, em violação à Constituição.

Os casos a serem julgados pelo STF cuidam apenas de uma forma de uso impróprio do direito para calar jornalistas. Há outras, especialmente no Direito Penal: é fácil usar crimes velhos, como os delitos contra a honra, e novos, como tipos pensados para as redes sociais, para ameaçar comunicadores com multas, restrições de direitos e até prisão, caso não silenciem ao primeiro alerta. Quem maneja essas ferramentas com sucesso são invariavelmente pessoas política e economicamente poderosas, sobre as quais o escrutínio da opinião pública deveria ser proporcionalmente maior.

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Mas, ao menos no que toca ao uso abusivo de ações indenizatórias dispersas e coordenadas, o Supremo poderá desde logo colocar freio nessa prática. Basta determinar que, nestes casos, as ações sejam reunidas no foro de domicílio do réu, para que sejam decididas mais pelos méritos e deméritos jurídicos dos pedidos, e não pela capacidade física e mental de sobrevivência a um desumano ordálio forense.

*

ADVOGADO, É PROFESSOR DE DIREITO DA USP E DA ESPM

Em meio a tantos temas urgentes, o Supremo Tribunal Federal (STF) passará a julgar, a partir de hoje, um assunto crucial para a democracia brasileira. Ao decidir ações ajuizadas, entre outros, pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o Supremo firmará posicionamento sobre o chamado assédio judicial contra jornalistas.

“Assédio judicial”, expressão cunhada pela advogada Taís Gasparian, designa o uso abusivo do direito de acesso à justiça – um direito fundamental à cidadania –, porém visando a um fim ilegítimo: trazer apavorantes ônus jurídicos, que implicam reveses financeiros, profissionais e emocionais, a profissionais de imprensa que reportam e opinam sobre assuntos de interesse público, mas que pessoas poderosas desejam silenciar.

Ao contrário de ações ajuizadas de boa-fé, que buscam reparação proporcional por um dano que se julga ter sofrido (por, digamos, um grave erro de reportagem), o assédio judicial caracteriza-se pelo objetivo precípuo de, por meio de estratégia de litígio calculada para levar à exaustão, criar ônus insuportáveis para quem tem de responder às ações, mesmo que as demandas sejam desprovidas de fundamento razoável.

Um caso seminal de assédio judicial foi promovido contra a jornalista Elvira Lobato, em 2008, por reportagens publicadas sobre o poderoso império político e empresarial, com muitas práticas suspeitas, no qual a Igreja Universal havia se transformado. A reação foi brutal: aproveitando-se das vantagens conferidas pela Lei dos Juizados Especiais, importante diploma que facilita aos cidadãos acionar o Judiciário contra grandes corporações, foram ajuizadas ações indenizatórias coordenadas contra ela.

Petições idênticas chegaram ao mesmo tempo em foros de todo o País. Sob ameaça de revelia, a jornalista teve de comparecer a audiências a centenas de quilômetros umas das outras, às vezes marcadas com horas de diferença. A lei pensada para dar voz judicial aos desempoderados foi usada como ferramenta de assédio em benefício de uma organização de imenso poder religioso, econômico e político, contra o interesse público. O caso ficou amplamente conhecido, espalhando medo e convidando à autocensura da imprensa.

O caso de Elvira Lobato não foi isolado. Em 2016, um grupo de jornalistas da Gazeta do Povo passou meses rodando o Paraná para responder a processos indenizatórios. Motivo: uma reportagem sobre supersalários de juízes e promotores paranaenses, na qual se questionava, com base em dados públicos, a moralidade dos pagamentos. Somadas, as indenizações pedidas chegavam à casa do milhão. Não pouparam sequer o infografista do jornal, que apenas ilustrara a matéria. A angústia dos jornalistas há de ter sido enorme, pois eles fatalmente seriam julgados, especialmente em primeiro e segundo graus, por membros da mesma classe que os perseguia.

Este segundo caso, que também será julgado pelo Supremo na mesma oportunidade, mostra o tamanho do perigo que o assédio judicial representa. Membros de qualquer grupo social podem valer-se dele: filiados de um partido, por exemplo, podem dizer-se ofendidos e dispersar ações coordenadas País afora contra uma colunista que critique duramente sua agremiação. Seria tão simples quanto compartilhar um modelo de petição em grupo de mensagens. E ela deverá responder a todas individualmente, do Oiapoque ao Chuí, por mais infundadas que sejam.

Por analogia ao argumento de que democracias hoje morrem de formas sutis, o Supremo deveria reconhecer que também o silenciamento de jornalistas pode ser buscado por meios outros que não os censores estatais e as torturas de outrora. O assédio judicial faz uso deturpado de ferramentas que a democracia garante aos cidadãos, para prejudicar o direito à informação relativo a temas de interesse público, em violação à Constituição.

Os casos a serem julgados pelo STF cuidam apenas de uma forma de uso impróprio do direito para calar jornalistas. Há outras, especialmente no Direito Penal: é fácil usar crimes velhos, como os delitos contra a honra, e novos, como tipos pensados para as redes sociais, para ameaçar comunicadores com multas, restrições de direitos e até prisão, caso não silenciem ao primeiro alerta. Quem maneja essas ferramentas com sucesso são invariavelmente pessoas política e economicamente poderosas, sobre as quais o escrutínio da opinião pública deveria ser proporcionalmente maior.

Mas, ao menos no que toca ao uso abusivo de ações indenizatórias dispersas e coordenadas, o Supremo poderá desde logo colocar freio nessa prática. Basta determinar que, nestes casos, as ações sejam reunidas no foro de domicílio do réu, para que sejam decididas mais pelos méritos e deméritos jurídicos dos pedidos, e não pela capacidade física e mental de sobrevivência a um desumano ordálio forense.

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ADVOGADO, É PROFESSOR DE DIREITO DA USP E DA ESPM

Em meio a tantos temas urgentes, o Supremo Tribunal Federal (STF) passará a julgar, a partir de hoje, um assunto crucial para a democracia brasileira. Ao decidir ações ajuizadas, entre outros, pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o Supremo firmará posicionamento sobre o chamado assédio judicial contra jornalistas.

“Assédio judicial”, expressão cunhada pela advogada Taís Gasparian, designa o uso abusivo do direito de acesso à justiça – um direito fundamental à cidadania –, porém visando a um fim ilegítimo: trazer apavorantes ônus jurídicos, que implicam reveses financeiros, profissionais e emocionais, a profissionais de imprensa que reportam e opinam sobre assuntos de interesse público, mas que pessoas poderosas desejam silenciar.

Ao contrário de ações ajuizadas de boa-fé, que buscam reparação proporcional por um dano que se julga ter sofrido (por, digamos, um grave erro de reportagem), o assédio judicial caracteriza-se pelo objetivo precípuo de, por meio de estratégia de litígio calculada para levar à exaustão, criar ônus insuportáveis para quem tem de responder às ações, mesmo que as demandas sejam desprovidas de fundamento razoável.

Um caso seminal de assédio judicial foi promovido contra a jornalista Elvira Lobato, em 2008, por reportagens publicadas sobre o poderoso império político e empresarial, com muitas práticas suspeitas, no qual a Igreja Universal havia se transformado. A reação foi brutal: aproveitando-se das vantagens conferidas pela Lei dos Juizados Especiais, importante diploma que facilita aos cidadãos acionar o Judiciário contra grandes corporações, foram ajuizadas ações indenizatórias coordenadas contra ela.

Petições idênticas chegaram ao mesmo tempo em foros de todo o País. Sob ameaça de revelia, a jornalista teve de comparecer a audiências a centenas de quilômetros umas das outras, às vezes marcadas com horas de diferença. A lei pensada para dar voz judicial aos desempoderados foi usada como ferramenta de assédio em benefício de uma organização de imenso poder religioso, econômico e político, contra o interesse público. O caso ficou amplamente conhecido, espalhando medo e convidando à autocensura da imprensa.

O caso de Elvira Lobato não foi isolado. Em 2016, um grupo de jornalistas da Gazeta do Povo passou meses rodando o Paraná para responder a processos indenizatórios. Motivo: uma reportagem sobre supersalários de juízes e promotores paranaenses, na qual se questionava, com base em dados públicos, a moralidade dos pagamentos. Somadas, as indenizações pedidas chegavam à casa do milhão. Não pouparam sequer o infografista do jornal, que apenas ilustrara a matéria. A angústia dos jornalistas há de ter sido enorme, pois eles fatalmente seriam julgados, especialmente em primeiro e segundo graus, por membros da mesma classe que os perseguia.

Este segundo caso, que também será julgado pelo Supremo na mesma oportunidade, mostra o tamanho do perigo que o assédio judicial representa. Membros de qualquer grupo social podem valer-se dele: filiados de um partido, por exemplo, podem dizer-se ofendidos e dispersar ações coordenadas País afora contra uma colunista que critique duramente sua agremiação. Seria tão simples quanto compartilhar um modelo de petição em grupo de mensagens. E ela deverá responder a todas individualmente, do Oiapoque ao Chuí, por mais infundadas que sejam.

Por analogia ao argumento de que democracias hoje morrem de formas sutis, o Supremo deveria reconhecer que também o silenciamento de jornalistas pode ser buscado por meios outros que não os censores estatais e as torturas de outrora. O assédio judicial faz uso deturpado de ferramentas que a democracia garante aos cidadãos, para prejudicar o direito à informação relativo a temas de interesse público, em violação à Constituição.

Os casos a serem julgados pelo STF cuidam apenas de uma forma de uso impróprio do direito para calar jornalistas. Há outras, especialmente no Direito Penal: é fácil usar crimes velhos, como os delitos contra a honra, e novos, como tipos pensados para as redes sociais, para ameaçar comunicadores com multas, restrições de direitos e até prisão, caso não silenciem ao primeiro alerta. Quem maneja essas ferramentas com sucesso são invariavelmente pessoas política e economicamente poderosas, sobre as quais o escrutínio da opinião pública deveria ser proporcionalmente maior.

Mas, ao menos no que toca ao uso abusivo de ações indenizatórias dispersas e coordenadas, o Supremo poderá desde logo colocar freio nessa prática. Basta determinar que, nestes casos, as ações sejam reunidas no foro de domicílio do réu, para que sejam decididas mais pelos méritos e deméritos jurídicos dos pedidos, e não pela capacidade física e mental de sobrevivência a um desumano ordálio forense.

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