Opinião|O Supremo depois da virtude


Juízes devem fazer o que devem e estão naquilo que fazem. Por isso, também importa aquilo que eles são

Por Gilberto Morbach

Neste Espaço Aberto, em 10/11, afirmei que a crise de autoridade do Supremo Tribunal Federal (STF) é uma crise teórica. Não sabemos o que nossos ministros pensam sobre Direito e legalidade: sobre a ideia mesma de autoridade, sobre quando e como juízes podem errar, sobre o significado do Estado de Direito, sobre a melhor justificação da prática jurídica.

Meu ponto era o de que essa lacuna não permite sequer que cobremos coerência de nossos juízes para com eles mesmos: um mesmo juiz pode ser textualista num caso e, em outro, reivindicar valores abstratos fora do texto legal, quando a única diferença é a capa do processo. A legalidade, assim, que envolve quase que por definição um compromisso, é reduzida a um juízo de conveniência.

Há, porém, uma segunda camada nesta crise de autoridade do STF: uma crise de virtude.

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Segundo o filósofo britânico H. L. A. Hart, três eram as clássicas virtudes judiciais: imparcialidade na análise das alternativas; consideração dos interesses de todos os afetados; preocupação no sentido de que a decisão seja fundamentada e tenha como base um princípio geral aceitável como tal.

Isso não é sem razão.

Um juiz é definido por sua função – e quando falamos em conceitos funcionais, falamos em conceitos que têm um padrão normativo que, como tal, constitui um critério a partir do qual determinamos seu melhor significado. Um relógio que não marca a hora de forma acurada não é um bom relógio, como não é um bom hospital aquele que não cuida de seus doentes.

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Por isso, a lista das virtudes apontadas por Hart não é estipulação arbitrária. Imparcialidade, consideração, fundamentação: isso faz parte da própria ideia de ser um juiz. São imperativos hipotéticos. Se você é juiz, há certos deveres a serem seguidos. Para que você seja propriamente um juiz.

A função institucional de um juiz é a de decidir casos que lhe são apresentados com base na melhor interpretação dos padrões aceitos e reconhecidos como normas de um sistema comum. E para que seja um sistema distintivo de governança, mais do que um sistema bruto de coerção pura, um sistema jurídico deve ter normas que vinculam cidadãos e autoridades igualmente.

Daí a importância das virtudes judiciais apontadas por Hart. Lembrá-las, em nosso contexto, constitui um primeiro passo importante. Num cenário em que critérios extrajurídicos têm sido adotados com frequência, as clássicas virtudes hartianas já seriam um avanço. Juízes imparciais julgam de maneira impessoal e desengajada. Quem decide com consideração pela perspectiva dos envolvidos renuncia ao arbítrio. Fundamentar a decisão em um princípio aceito como tal significa demonstrar por que a decisão é, afinal, jurídica.

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Mesmo assim, é preciso ir além.

É certo, a exigência de juízes virtuosos não significa clamar por uma tirania da virtude, como se coubesse a ministros do Supremo uma tarefa iluminista de empurrar a História. Ao contrário: é exatamente porque as virtudes judiciais definem-se a partir da função de juiz corretamente compreendida, tal como explicitado acima, que entendemos quais elas são. A função do Judiciário não é a de nos iluminar e a história não leva letra maiúscula.

Por outro lado, sem que isso signifique moralizar indevidamente a discussão jurídica, o ponto é que a crise de autoridade do STF não é apenas uma crise teórica ou mesmo de respeito à lei.

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Aquilo que juízes fazem em suas vidas pessoais não nos diz respeito. Aquilo que fazem enquanto juízes, sim. Além de imparcialidade, consideração e fundamentação, portanto, outras virtudes – frequentemente esquecidas no debate jurídico contemporâneo –, são indispensáveis: responsabilidade política, prudência, coragem cívica. Rigor, honestidade. Discrição e autocontenção.

Falo também de coisas que se revelam na atitude cotidiana e que não se encerram apenas na má interpretação do Direito ou em decisões baseadas em critérios não jurídicos.

Confusão de interesses, relações fora dos autos, falta de transparência, flexibilização indevida de regras de impedimento, participação em eventos com a presença de empresários com ações no STF, defesa pública de supersalários. Se não são exemplos diretos de ilegalidades, essas são contrapartes concretas de virtudes que, mais do que disposições importantes, estão amparadas na própria ideia do Direito como prática.

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Decoro, afinal. Até um pouco de vergonha. Também essas são virtudes da função do juiz. Afinal, ao decidirem em nome do Direito, juízes reivindicam autoridade legítima para fazê-lo. Por isso, o Direito deve oferecer razões que o cidadão é capaz de reconhecer como suas. Quando a percepção é de ausência completa de integridade, os atores institucionais que compõem a prática jurídica não atendem ao mínimo necessário para que o Direito possa exercer bem sua função, pública, comum, de coordenação social.

O Direito, se é mais do que um sistema de comando e controle, reivindica respeito. Cabe a nossas autoridades o cultivo dessa condição.

Juízes devem fazer o que devem e estão naquilo que fazem. Por isso, também importa aquilo que eles são.

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PESQUISADOR DE PÓS-DOUTORADO NA FACULDADE DE DIREITO DA USP, É MEMBRO COFUNDADOR DO NÚCLEO DIREITO & JUSTIÇA

Neste Espaço Aberto, em 10/11, afirmei que a crise de autoridade do Supremo Tribunal Federal (STF) é uma crise teórica. Não sabemos o que nossos ministros pensam sobre Direito e legalidade: sobre a ideia mesma de autoridade, sobre quando e como juízes podem errar, sobre o significado do Estado de Direito, sobre a melhor justificação da prática jurídica.

Meu ponto era o de que essa lacuna não permite sequer que cobremos coerência de nossos juízes para com eles mesmos: um mesmo juiz pode ser textualista num caso e, em outro, reivindicar valores abstratos fora do texto legal, quando a única diferença é a capa do processo. A legalidade, assim, que envolve quase que por definição um compromisso, é reduzida a um juízo de conveniência.

Há, porém, uma segunda camada nesta crise de autoridade do STF: uma crise de virtude.

Segundo o filósofo britânico H. L. A. Hart, três eram as clássicas virtudes judiciais: imparcialidade na análise das alternativas; consideração dos interesses de todos os afetados; preocupação no sentido de que a decisão seja fundamentada e tenha como base um princípio geral aceitável como tal.

Isso não é sem razão.

Um juiz é definido por sua função – e quando falamos em conceitos funcionais, falamos em conceitos que têm um padrão normativo que, como tal, constitui um critério a partir do qual determinamos seu melhor significado. Um relógio que não marca a hora de forma acurada não é um bom relógio, como não é um bom hospital aquele que não cuida de seus doentes.

Por isso, a lista das virtudes apontadas por Hart não é estipulação arbitrária. Imparcialidade, consideração, fundamentação: isso faz parte da própria ideia de ser um juiz. São imperativos hipotéticos. Se você é juiz, há certos deveres a serem seguidos. Para que você seja propriamente um juiz.

A função institucional de um juiz é a de decidir casos que lhe são apresentados com base na melhor interpretação dos padrões aceitos e reconhecidos como normas de um sistema comum. E para que seja um sistema distintivo de governança, mais do que um sistema bruto de coerção pura, um sistema jurídico deve ter normas que vinculam cidadãos e autoridades igualmente.

Daí a importância das virtudes judiciais apontadas por Hart. Lembrá-las, em nosso contexto, constitui um primeiro passo importante. Num cenário em que critérios extrajurídicos têm sido adotados com frequência, as clássicas virtudes hartianas já seriam um avanço. Juízes imparciais julgam de maneira impessoal e desengajada. Quem decide com consideração pela perspectiva dos envolvidos renuncia ao arbítrio. Fundamentar a decisão em um princípio aceito como tal significa demonstrar por que a decisão é, afinal, jurídica.

Mesmo assim, é preciso ir além.

É certo, a exigência de juízes virtuosos não significa clamar por uma tirania da virtude, como se coubesse a ministros do Supremo uma tarefa iluminista de empurrar a História. Ao contrário: é exatamente porque as virtudes judiciais definem-se a partir da função de juiz corretamente compreendida, tal como explicitado acima, que entendemos quais elas são. A função do Judiciário não é a de nos iluminar e a história não leva letra maiúscula.

Por outro lado, sem que isso signifique moralizar indevidamente a discussão jurídica, o ponto é que a crise de autoridade do STF não é apenas uma crise teórica ou mesmo de respeito à lei.

Aquilo que juízes fazem em suas vidas pessoais não nos diz respeito. Aquilo que fazem enquanto juízes, sim. Além de imparcialidade, consideração e fundamentação, portanto, outras virtudes – frequentemente esquecidas no debate jurídico contemporâneo –, são indispensáveis: responsabilidade política, prudência, coragem cívica. Rigor, honestidade. Discrição e autocontenção.

Falo também de coisas que se revelam na atitude cotidiana e que não se encerram apenas na má interpretação do Direito ou em decisões baseadas em critérios não jurídicos.

Confusão de interesses, relações fora dos autos, falta de transparência, flexibilização indevida de regras de impedimento, participação em eventos com a presença de empresários com ações no STF, defesa pública de supersalários. Se não são exemplos diretos de ilegalidades, essas são contrapartes concretas de virtudes que, mais do que disposições importantes, estão amparadas na própria ideia do Direito como prática.

Decoro, afinal. Até um pouco de vergonha. Também essas são virtudes da função do juiz. Afinal, ao decidirem em nome do Direito, juízes reivindicam autoridade legítima para fazê-lo. Por isso, o Direito deve oferecer razões que o cidadão é capaz de reconhecer como suas. Quando a percepção é de ausência completa de integridade, os atores institucionais que compõem a prática jurídica não atendem ao mínimo necessário para que o Direito possa exercer bem sua função, pública, comum, de coordenação social.

O Direito, se é mais do que um sistema de comando e controle, reivindica respeito. Cabe a nossas autoridades o cultivo dessa condição.

Juízes devem fazer o que devem e estão naquilo que fazem. Por isso, também importa aquilo que eles são.

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PESQUISADOR DE PÓS-DOUTORADO NA FACULDADE DE DIREITO DA USP, É MEMBRO COFUNDADOR DO NÚCLEO DIREITO & JUSTIÇA

Neste Espaço Aberto, em 10/11, afirmei que a crise de autoridade do Supremo Tribunal Federal (STF) é uma crise teórica. Não sabemos o que nossos ministros pensam sobre Direito e legalidade: sobre a ideia mesma de autoridade, sobre quando e como juízes podem errar, sobre o significado do Estado de Direito, sobre a melhor justificação da prática jurídica.

Meu ponto era o de que essa lacuna não permite sequer que cobremos coerência de nossos juízes para com eles mesmos: um mesmo juiz pode ser textualista num caso e, em outro, reivindicar valores abstratos fora do texto legal, quando a única diferença é a capa do processo. A legalidade, assim, que envolve quase que por definição um compromisso, é reduzida a um juízo de conveniência.

Há, porém, uma segunda camada nesta crise de autoridade do STF: uma crise de virtude.

Segundo o filósofo britânico H. L. A. Hart, três eram as clássicas virtudes judiciais: imparcialidade na análise das alternativas; consideração dos interesses de todos os afetados; preocupação no sentido de que a decisão seja fundamentada e tenha como base um princípio geral aceitável como tal.

Isso não é sem razão.

Um juiz é definido por sua função – e quando falamos em conceitos funcionais, falamos em conceitos que têm um padrão normativo que, como tal, constitui um critério a partir do qual determinamos seu melhor significado. Um relógio que não marca a hora de forma acurada não é um bom relógio, como não é um bom hospital aquele que não cuida de seus doentes.

Por isso, a lista das virtudes apontadas por Hart não é estipulação arbitrária. Imparcialidade, consideração, fundamentação: isso faz parte da própria ideia de ser um juiz. São imperativos hipotéticos. Se você é juiz, há certos deveres a serem seguidos. Para que você seja propriamente um juiz.

A função institucional de um juiz é a de decidir casos que lhe são apresentados com base na melhor interpretação dos padrões aceitos e reconhecidos como normas de um sistema comum. E para que seja um sistema distintivo de governança, mais do que um sistema bruto de coerção pura, um sistema jurídico deve ter normas que vinculam cidadãos e autoridades igualmente.

Daí a importância das virtudes judiciais apontadas por Hart. Lembrá-las, em nosso contexto, constitui um primeiro passo importante. Num cenário em que critérios extrajurídicos têm sido adotados com frequência, as clássicas virtudes hartianas já seriam um avanço. Juízes imparciais julgam de maneira impessoal e desengajada. Quem decide com consideração pela perspectiva dos envolvidos renuncia ao arbítrio. Fundamentar a decisão em um princípio aceito como tal significa demonstrar por que a decisão é, afinal, jurídica.

Mesmo assim, é preciso ir além.

É certo, a exigência de juízes virtuosos não significa clamar por uma tirania da virtude, como se coubesse a ministros do Supremo uma tarefa iluminista de empurrar a História. Ao contrário: é exatamente porque as virtudes judiciais definem-se a partir da função de juiz corretamente compreendida, tal como explicitado acima, que entendemos quais elas são. A função do Judiciário não é a de nos iluminar e a história não leva letra maiúscula.

Por outro lado, sem que isso signifique moralizar indevidamente a discussão jurídica, o ponto é que a crise de autoridade do STF não é apenas uma crise teórica ou mesmo de respeito à lei.

Aquilo que juízes fazem em suas vidas pessoais não nos diz respeito. Aquilo que fazem enquanto juízes, sim. Além de imparcialidade, consideração e fundamentação, portanto, outras virtudes – frequentemente esquecidas no debate jurídico contemporâneo –, são indispensáveis: responsabilidade política, prudência, coragem cívica. Rigor, honestidade. Discrição e autocontenção.

Falo também de coisas que se revelam na atitude cotidiana e que não se encerram apenas na má interpretação do Direito ou em decisões baseadas em critérios não jurídicos.

Confusão de interesses, relações fora dos autos, falta de transparência, flexibilização indevida de regras de impedimento, participação em eventos com a presença de empresários com ações no STF, defesa pública de supersalários. Se não são exemplos diretos de ilegalidades, essas são contrapartes concretas de virtudes que, mais do que disposições importantes, estão amparadas na própria ideia do Direito como prática.

Decoro, afinal. Até um pouco de vergonha. Também essas são virtudes da função do juiz. Afinal, ao decidirem em nome do Direito, juízes reivindicam autoridade legítima para fazê-lo. Por isso, o Direito deve oferecer razões que o cidadão é capaz de reconhecer como suas. Quando a percepção é de ausência completa de integridade, os atores institucionais que compõem a prática jurídica não atendem ao mínimo necessário para que o Direito possa exercer bem sua função, pública, comum, de coordenação social.

O Direito, se é mais do que um sistema de comando e controle, reivindica respeito. Cabe a nossas autoridades o cultivo dessa condição.

Juízes devem fazer o que devem e estão naquilo que fazem. Por isso, também importa aquilo que eles são.

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PESQUISADOR DE PÓS-DOUTORADO NA FACULDADE DE DIREITO DA USP, É MEMBRO COFUNDADOR DO NÚCLEO DIREITO & JUSTIÇA

Opinião por Gilberto Morbach

Pesquisador de pós-doutorado na Faculdade de Direito da USP, é membro cofundador do Núcleo Direito & Justiça

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