Opinião|O Tribunal do Júri melhora a democracia


Devemos estudá-lo e aprimorar seus mecanismos de efetivação de justiça por meio da participação popular. E não acabar com ele

Por Luisa Moraes Abreu Ferreira e Leonardo Sica

“Já é chegada a hora de o Congresso Nacional extinguir o júri”, disse o ministro Dias Toffoli para a frente parlamentar feminina. Um dos argumentos para a extinção do júri é o uso da problemática tese da “legítima defesa da honra” para absolvição de homens acusados de feminicídio.

Mas o Tribunal do Júri não se resume a isso: trata-se de uma das raras instâncias de participação direta dos cidadãos numa decisão pública no Brasil. Sua extinção iria na contramão do aprimoramento democrático nacional.

Não há nenhum dado empírico que indique que cidadãos comuns decidam de forma pior que juízes profissionais – os quais, importante lembrar, também são influenciados pelos canais midiáticos, preconceitos, vieses, humores, simpatias e experiências pessoais.

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E a decisão não cai do céu. O processo de decisão dos jurados também é baseado em provas, como perícias, balística, DNA etc. Além disso, levam em conta os relatos de testemunhas e de especialistas – e são orientados pelo juiz. A decisão dos jurados é também baseada na lei.

O julgamento no júri é todo oral, com contraditório efetivo e em tempo real, a prova produzida diante do jurado, que tem sua atenção voltada para a solução daquele único caso. Lógica diferente dos gabinetes de juízes profissionais, assoberbados por processos e pressionados pelas estatísticas. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por exemplo, cada juiz solucionou uma média de 2.107 processos só em 2019.

Os jurados julgam pessoas que estão ali, em sua presença, expondo suas razões, suas explicações, sua conduta e sua história de vida. Os jurados ouvem a defesa e a promotoria contraporem seus argumentos de viva voz. Por sua vez, atualmente os juízes muitas vezes julgam pessoas que só viram pelo computador. Em geral, têm preferido julgar à distância.

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Juízes representam um recorte muito específico da população: em pesquisa realizada em 2018, o CNJ constatou que os juízes eram, em sua maioria, homens brancos (80%), casados ou em união estável (80%) e que tinham pai com ensino superior completo (51%). Permitir que pessoas que tenham experiências de vida diversas julguem seus pares é essencial para fortalecer a humanidade e a sensibilidade nos tribunais.

O júri faz parte dos sistemas jurídicos de diversas democracias do mundo atual: países como EUA, Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Irlanda, França, Alemanha, Itália, entre tantos outros. Japão, Coreia do Sul e Espanha, por exemplo, optaram pelo modelo mais recentemente, numa tentativa de fortalecer o Estado de Direito.

A ideia do júri popular, que nasceu em Atenas, na Grécia e há 2.500 anos, é dar ao julgamento a sustentação moral e ética na sociedade em que vivemos.

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O Tribunal do Júri tem, nesse sentido, caráter também pedagógico para os cidadãos, pois reforça a importância das normas, do devido processo legal e das garantias das pessoas acusadas de crimes.

Sustentar que os cidadãos são incapazes de julgar seus pares e participar de forma efetiva na administração da justiça é diminuir e rebaixar a população, num argumento elitista e que pode ser muito bem apropriado por regimes totalitários de governo.

Há um forte e importante debate na academia sobre como fortalecer o sistema democrático em sociedades complexas e diversificadas do mundo contemporâneo. Até a escolha aleatória de representantes da sociedade volta a ser cogitada como mecanismo de fazer política. São assembleias de cidadãos comuns que decidem diretamente políticas públicas.

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Na Irlanda há uma Assembleia dos Cidadãos – a An Tionól Saoránach – com 99 membros escolhidos aleatoriamente e de forma representativa, com base no censo populacional. As conclusões das assembleias são encaminhadas ao Congresso irlandês. Uma dessas assembleias decidiu pelo referendo que aprovou a legalização do aborto, numa nação fortemente católica. Também o casamento entre pessoas de mesmo sexo.

E os feminicídios? Em novembro de 2019, o CNJ analisou 3.775 casos julgados pelo júri no Brasil. As sessões de tribunal do júri em processos de feminicídio apresentaram o maior porcentual de condenação entre todos os tipos penais analisados, tendo sido condenados aproximadamente nove a cada dez réus julgados (88%), em comparação com taxa geral de condenação de 66,5% dos réus. Quem atua frequentemente no júri sabe que, hoje, os feminicídios são os casos mais difíceis de serem defendidos.

Propor políticas públicas baseadas no senso comum não costuma ser o melhor caminho, especialmente num tema tão contaminado por paralogismos, como a justiça criminal.

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Por fim, é importante lembrar que o júri, previsto no artigo 5.º, inciso XXXVIII, da Constituição da República Federativa do Brasil, configura cláusula pétrea e não pode ser extinto por emenda constitucional.

Instituído no Brasil há 200 anos, o Tribunal do Júri pode ter um dos seus pilares modificados pelo Supremo Tribunal Federal, diante de questionamentos trazidos pelos ministros em julgamentos recentes.

Devemos estudar o Tribunal do Júri e aprimorar seus mecanismos de efetivação de justiça por meio da participação popular. E não acabar com ele.

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ADVOGADOS CRIMINALISTAS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSORA DA FGV DIREITO SP, MESTRE EM DIREITO PENAL PELA USP; E VICE-PRESIDENTE DA OAB/SP, DOUTOR EM DIREITO PENAL PELA USP

“Já é chegada a hora de o Congresso Nacional extinguir o júri”, disse o ministro Dias Toffoli para a frente parlamentar feminina. Um dos argumentos para a extinção do júri é o uso da problemática tese da “legítima defesa da honra” para absolvição de homens acusados de feminicídio.

Mas o Tribunal do Júri não se resume a isso: trata-se de uma das raras instâncias de participação direta dos cidadãos numa decisão pública no Brasil. Sua extinção iria na contramão do aprimoramento democrático nacional.

Não há nenhum dado empírico que indique que cidadãos comuns decidam de forma pior que juízes profissionais – os quais, importante lembrar, também são influenciados pelos canais midiáticos, preconceitos, vieses, humores, simpatias e experiências pessoais.

E a decisão não cai do céu. O processo de decisão dos jurados também é baseado em provas, como perícias, balística, DNA etc. Além disso, levam em conta os relatos de testemunhas e de especialistas – e são orientados pelo juiz. A decisão dos jurados é também baseada na lei.

O julgamento no júri é todo oral, com contraditório efetivo e em tempo real, a prova produzida diante do jurado, que tem sua atenção voltada para a solução daquele único caso. Lógica diferente dos gabinetes de juízes profissionais, assoberbados por processos e pressionados pelas estatísticas. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por exemplo, cada juiz solucionou uma média de 2.107 processos só em 2019.

Os jurados julgam pessoas que estão ali, em sua presença, expondo suas razões, suas explicações, sua conduta e sua história de vida. Os jurados ouvem a defesa e a promotoria contraporem seus argumentos de viva voz. Por sua vez, atualmente os juízes muitas vezes julgam pessoas que só viram pelo computador. Em geral, têm preferido julgar à distância.

Juízes representam um recorte muito específico da população: em pesquisa realizada em 2018, o CNJ constatou que os juízes eram, em sua maioria, homens brancos (80%), casados ou em união estável (80%) e que tinham pai com ensino superior completo (51%). Permitir que pessoas que tenham experiências de vida diversas julguem seus pares é essencial para fortalecer a humanidade e a sensibilidade nos tribunais.

O júri faz parte dos sistemas jurídicos de diversas democracias do mundo atual: países como EUA, Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Irlanda, França, Alemanha, Itália, entre tantos outros. Japão, Coreia do Sul e Espanha, por exemplo, optaram pelo modelo mais recentemente, numa tentativa de fortalecer o Estado de Direito.

A ideia do júri popular, que nasceu em Atenas, na Grécia e há 2.500 anos, é dar ao julgamento a sustentação moral e ética na sociedade em que vivemos.

O Tribunal do Júri tem, nesse sentido, caráter também pedagógico para os cidadãos, pois reforça a importância das normas, do devido processo legal e das garantias das pessoas acusadas de crimes.

Sustentar que os cidadãos são incapazes de julgar seus pares e participar de forma efetiva na administração da justiça é diminuir e rebaixar a população, num argumento elitista e que pode ser muito bem apropriado por regimes totalitários de governo.

Há um forte e importante debate na academia sobre como fortalecer o sistema democrático em sociedades complexas e diversificadas do mundo contemporâneo. Até a escolha aleatória de representantes da sociedade volta a ser cogitada como mecanismo de fazer política. São assembleias de cidadãos comuns que decidem diretamente políticas públicas.

Na Irlanda há uma Assembleia dos Cidadãos – a An Tionól Saoránach – com 99 membros escolhidos aleatoriamente e de forma representativa, com base no censo populacional. As conclusões das assembleias são encaminhadas ao Congresso irlandês. Uma dessas assembleias decidiu pelo referendo que aprovou a legalização do aborto, numa nação fortemente católica. Também o casamento entre pessoas de mesmo sexo.

E os feminicídios? Em novembro de 2019, o CNJ analisou 3.775 casos julgados pelo júri no Brasil. As sessões de tribunal do júri em processos de feminicídio apresentaram o maior porcentual de condenação entre todos os tipos penais analisados, tendo sido condenados aproximadamente nove a cada dez réus julgados (88%), em comparação com taxa geral de condenação de 66,5% dos réus. Quem atua frequentemente no júri sabe que, hoje, os feminicídios são os casos mais difíceis de serem defendidos.

Propor políticas públicas baseadas no senso comum não costuma ser o melhor caminho, especialmente num tema tão contaminado por paralogismos, como a justiça criminal.

Por fim, é importante lembrar que o júri, previsto no artigo 5.º, inciso XXXVIII, da Constituição da República Federativa do Brasil, configura cláusula pétrea e não pode ser extinto por emenda constitucional.

Instituído no Brasil há 200 anos, o Tribunal do Júri pode ter um dos seus pilares modificados pelo Supremo Tribunal Federal, diante de questionamentos trazidos pelos ministros em julgamentos recentes.

Devemos estudar o Tribunal do Júri e aprimorar seus mecanismos de efetivação de justiça por meio da participação popular. E não acabar com ele.

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ADVOGADOS CRIMINALISTAS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSORA DA FGV DIREITO SP, MESTRE EM DIREITO PENAL PELA USP; E VICE-PRESIDENTE DA OAB/SP, DOUTOR EM DIREITO PENAL PELA USP

“Já é chegada a hora de o Congresso Nacional extinguir o júri”, disse o ministro Dias Toffoli para a frente parlamentar feminina. Um dos argumentos para a extinção do júri é o uso da problemática tese da “legítima defesa da honra” para absolvição de homens acusados de feminicídio.

Mas o Tribunal do Júri não se resume a isso: trata-se de uma das raras instâncias de participação direta dos cidadãos numa decisão pública no Brasil. Sua extinção iria na contramão do aprimoramento democrático nacional.

Não há nenhum dado empírico que indique que cidadãos comuns decidam de forma pior que juízes profissionais – os quais, importante lembrar, também são influenciados pelos canais midiáticos, preconceitos, vieses, humores, simpatias e experiências pessoais.

E a decisão não cai do céu. O processo de decisão dos jurados também é baseado em provas, como perícias, balística, DNA etc. Além disso, levam em conta os relatos de testemunhas e de especialistas – e são orientados pelo juiz. A decisão dos jurados é também baseada na lei.

O julgamento no júri é todo oral, com contraditório efetivo e em tempo real, a prova produzida diante do jurado, que tem sua atenção voltada para a solução daquele único caso. Lógica diferente dos gabinetes de juízes profissionais, assoberbados por processos e pressionados pelas estatísticas. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por exemplo, cada juiz solucionou uma média de 2.107 processos só em 2019.

Os jurados julgam pessoas que estão ali, em sua presença, expondo suas razões, suas explicações, sua conduta e sua história de vida. Os jurados ouvem a defesa e a promotoria contraporem seus argumentos de viva voz. Por sua vez, atualmente os juízes muitas vezes julgam pessoas que só viram pelo computador. Em geral, têm preferido julgar à distância.

Juízes representam um recorte muito específico da população: em pesquisa realizada em 2018, o CNJ constatou que os juízes eram, em sua maioria, homens brancos (80%), casados ou em união estável (80%) e que tinham pai com ensino superior completo (51%). Permitir que pessoas que tenham experiências de vida diversas julguem seus pares é essencial para fortalecer a humanidade e a sensibilidade nos tribunais.

O júri faz parte dos sistemas jurídicos de diversas democracias do mundo atual: países como EUA, Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Irlanda, França, Alemanha, Itália, entre tantos outros. Japão, Coreia do Sul e Espanha, por exemplo, optaram pelo modelo mais recentemente, numa tentativa de fortalecer o Estado de Direito.

A ideia do júri popular, que nasceu em Atenas, na Grécia e há 2.500 anos, é dar ao julgamento a sustentação moral e ética na sociedade em que vivemos.

O Tribunal do Júri tem, nesse sentido, caráter também pedagógico para os cidadãos, pois reforça a importância das normas, do devido processo legal e das garantias das pessoas acusadas de crimes.

Sustentar que os cidadãos são incapazes de julgar seus pares e participar de forma efetiva na administração da justiça é diminuir e rebaixar a população, num argumento elitista e que pode ser muito bem apropriado por regimes totalitários de governo.

Há um forte e importante debate na academia sobre como fortalecer o sistema democrático em sociedades complexas e diversificadas do mundo contemporâneo. Até a escolha aleatória de representantes da sociedade volta a ser cogitada como mecanismo de fazer política. São assembleias de cidadãos comuns que decidem diretamente políticas públicas.

Na Irlanda há uma Assembleia dos Cidadãos – a An Tionól Saoránach – com 99 membros escolhidos aleatoriamente e de forma representativa, com base no censo populacional. As conclusões das assembleias são encaminhadas ao Congresso irlandês. Uma dessas assembleias decidiu pelo referendo que aprovou a legalização do aborto, numa nação fortemente católica. Também o casamento entre pessoas de mesmo sexo.

E os feminicídios? Em novembro de 2019, o CNJ analisou 3.775 casos julgados pelo júri no Brasil. As sessões de tribunal do júri em processos de feminicídio apresentaram o maior porcentual de condenação entre todos os tipos penais analisados, tendo sido condenados aproximadamente nove a cada dez réus julgados (88%), em comparação com taxa geral de condenação de 66,5% dos réus. Quem atua frequentemente no júri sabe que, hoje, os feminicídios são os casos mais difíceis de serem defendidos.

Propor políticas públicas baseadas no senso comum não costuma ser o melhor caminho, especialmente num tema tão contaminado por paralogismos, como a justiça criminal.

Por fim, é importante lembrar que o júri, previsto no artigo 5.º, inciso XXXVIII, da Constituição da República Federativa do Brasil, configura cláusula pétrea e não pode ser extinto por emenda constitucional.

Instituído no Brasil há 200 anos, o Tribunal do Júri pode ter um dos seus pilares modificados pelo Supremo Tribunal Federal, diante de questionamentos trazidos pelos ministros em julgamentos recentes.

Devemos estudar o Tribunal do Júri e aprimorar seus mecanismos de efetivação de justiça por meio da participação popular. E não acabar com ele.

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ADVOGADOS CRIMINALISTAS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSORA DA FGV DIREITO SP, MESTRE EM DIREITO PENAL PELA USP; E VICE-PRESIDENTE DA OAB/SP, DOUTOR EM DIREITO PENAL PELA USP

“Já é chegada a hora de o Congresso Nacional extinguir o júri”, disse o ministro Dias Toffoli para a frente parlamentar feminina. Um dos argumentos para a extinção do júri é o uso da problemática tese da “legítima defesa da honra” para absolvição de homens acusados de feminicídio.

Mas o Tribunal do Júri não se resume a isso: trata-se de uma das raras instâncias de participação direta dos cidadãos numa decisão pública no Brasil. Sua extinção iria na contramão do aprimoramento democrático nacional.

Não há nenhum dado empírico que indique que cidadãos comuns decidam de forma pior que juízes profissionais – os quais, importante lembrar, também são influenciados pelos canais midiáticos, preconceitos, vieses, humores, simpatias e experiências pessoais.

E a decisão não cai do céu. O processo de decisão dos jurados também é baseado em provas, como perícias, balística, DNA etc. Além disso, levam em conta os relatos de testemunhas e de especialistas – e são orientados pelo juiz. A decisão dos jurados é também baseada na lei.

O julgamento no júri é todo oral, com contraditório efetivo e em tempo real, a prova produzida diante do jurado, que tem sua atenção voltada para a solução daquele único caso. Lógica diferente dos gabinetes de juízes profissionais, assoberbados por processos e pressionados pelas estatísticas. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por exemplo, cada juiz solucionou uma média de 2.107 processos só em 2019.

Os jurados julgam pessoas que estão ali, em sua presença, expondo suas razões, suas explicações, sua conduta e sua história de vida. Os jurados ouvem a defesa e a promotoria contraporem seus argumentos de viva voz. Por sua vez, atualmente os juízes muitas vezes julgam pessoas que só viram pelo computador. Em geral, têm preferido julgar à distância.

Juízes representam um recorte muito específico da população: em pesquisa realizada em 2018, o CNJ constatou que os juízes eram, em sua maioria, homens brancos (80%), casados ou em união estável (80%) e que tinham pai com ensino superior completo (51%). Permitir que pessoas que tenham experiências de vida diversas julguem seus pares é essencial para fortalecer a humanidade e a sensibilidade nos tribunais.

O júri faz parte dos sistemas jurídicos de diversas democracias do mundo atual: países como EUA, Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Irlanda, França, Alemanha, Itália, entre tantos outros. Japão, Coreia do Sul e Espanha, por exemplo, optaram pelo modelo mais recentemente, numa tentativa de fortalecer o Estado de Direito.

A ideia do júri popular, que nasceu em Atenas, na Grécia e há 2.500 anos, é dar ao julgamento a sustentação moral e ética na sociedade em que vivemos.

O Tribunal do Júri tem, nesse sentido, caráter também pedagógico para os cidadãos, pois reforça a importância das normas, do devido processo legal e das garantias das pessoas acusadas de crimes.

Sustentar que os cidadãos são incapazes de julgar seus pares e participar de forma efetiva na administração da justiça é diminuir e rebaixar a população, num argumento elitista e que pode ser muito bem apropriado por regimes totalitários de governo.

Há um forte e importante debate na academia sobre como fortalecer o sistema democrático em sociedades complexas e diversificadas do mundo contemporâneo. Até a escolha aleatória de representantes da sociedade volta a ser cogitada como mecanismo de fazer política. São assembleias de cidadãos comuns que decidem diretamente políticas públicas.

Na Irlanda há uma Assembleia dos Cidadãos – a An Tionól Saoránach – com 99 membros escolhidos aleatoriamente e de forma representativa, com base no censo populacional. As conclusões das assembleias são encaminhadas ao Congresso irlandês. Uma dessas assembleias decidiu pelo referendo que aprovou a legalização do aborto, numa nação fortemente católica. Também o casamento entre pessoas de mesmo sexo.

E os feminicídios? Em novembro de 2019, o CNJ analisou 3.775 casos julgados pelo júri no Brasil. As sessões de tribunal do júri em processos de feminicídio apresentaram o maior porcentual de condenação entre todos os tipos penais analisados, tendo sido condenados aproximadamente nove a cada dez réus julgados (88%), em comparação com taxa geral de condenação de 66,5% dos réus. Quem atua frequentemente no júri sabe que, hoje, os feminicídios são os casos mais difíceis de serem defendidos.

Propor políticas públicas baseadas no senso comum não costuma ser o melhor caminho, especialmente num tema tão contaminado por paralogismos, como a justiça criminal.

Por fim, é importante lembrar que o júri, previsto no artigo 5.º, inciso XXXVIII, da Constituição da República Federativa do Brasil, configura cláusula pétrea e não pode ser extinto por emenda constitucional.

Instituído no Brasil há 200 anos, o Tribunal do Júri pode ter um dos seus pilares modificados pelo Supremo Tribunal Federal, diante de questionamentos trazidos pelos ministros em julgamentos recentes.

Devemos estudar o Tribunal do Júri e aprimorar seus mecanismos de efetivação de justiça por meio da participação popular. E não acabar com ele.

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ADVOGADOS CRIMINALISTAS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSORA DA FGV DIREITO SP, MESTRE EM DIREITO PENAL PELA USP; E VICE-PRESIDENTE DA OAB/SP, DOUTOR EM DIREITO PENAL PELA USP

“Já é chegada a hora de o Congresso Nacional extinguir o júri”, disse o ministro Dias Toffoli para a frente parlamentar feminina. Um dos argumentos para a extinção do júri é o uso da problemática tese da “legítima defesa da honra” para absolvição de homens acusados de feminicídio.

Mas o Tribunal do Júri não se resume a isso: trata-se de uma das raras instâncias de participação direta dos cidadãos numa decisão pública no Brasil. Sua extinção iria na contramão do aprimoramento democrático nacional.

Não há nenhum dado empírico que indique que cidadãos comuns decidam de forma pior que juízes profissionais – os quais, importante lembrar, também são influenciados pelos canais midiáticos, preconceitos, vieses, humores, simpatias e experiências pessoais.

E a decisão não cai do céu. O processo de decisão dos jurados também é baseado em provas, como perícias, balística, DNA etc. Além disso, levam em conta os relatos de testemunhas e de especialistas – e são orientados pelo juiz. A decisão dos jurados é também baseada na lei.

O julgamento no júri é todo oral, com contraditório efetivo e em tempo real, a prova produzida diante do jurado, que tem sua atenção voltada para a solução daquele único caso. Lógica diferente dos gabinetes de juízes profissionais, assoberbados por processos e pressionados pelas estatísticas. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por exemplo, cada juiz solucionou uma média de 2.107 processos só em 2019.

Os jurados julgam pessoas que estão ali, em sua presença, expondo suas razões, suas explicações, sua conduta e sua história de vida. Os jurados ouvem a defesa e a promotoria contraporem seus argumentos de viva voz. Por sua vez, atualmente os juízes muitas vezes julgam pessoas que só viram pelo computador. Em geral, têm preferido julgar à distância.

Juízes representam um recorte muito específico da população: em pesquisa realizada em 2018, o CNJ constatou que os juízes eram, em sua maioria, homens brancos (80%), casados ou em união estável (80%) e que tinham pai com ensino superior completo (51%). Permitir que pessoas que tenham experiências de vida diversas julguem seus pares é essencial para fortalecer a humanidade e a sensibilidade nos tribunais.

O júri faz parte dos sistemas jurídicos de diversas democracias do mundo atual: países como EUA, Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Irlanda, França, Alemanha, Itália, entre tantos outros. Japão, Coreia do Sul e Espanha, por exemplo, optaram pelo modelo mais recentemente, numa tentativa de fortalecer o Estado de Direito.

A ideia do júri popular, que nasceu em Atenas, na Grécia e há 2.500 anos, é dar ao julgamento a sustentação moral e ética na sociedade em que vivemos.

O Tribunal do Júri tem, nesse sentido, caráter também pedagógico para os cidadãos, pois reforça a importância das normas, do devido processo legal e das garantias das pessoas acusadas de crimes.

Sustentar que os cidadãos são incapazes de julgar seus pares e participar de forma efetiva na administração da justiça é diminuir e rebaixar a população, num argumento elitista e que pode ser muito bem apropriado por regimes totalitários de governo.

Há um forte e importante debate na academia sobre como fortalecer o sistema democrático em sociedades complexas e diversificadas do mundo contemporâneo. Até a escolha aleatória de representantes da sociedade volta a ser cogitada como mecanismo de fazer política. São assembleias de cidadãos comuns que decidem diretamente políticas públicas.

Na Irlanda há uma Assembleia dos Cidadãos – a An Tionól Saoránach – com 99 membros escolhidos aleatoriamente e de forma representativa, com base no censo populacional. As conclusões das assembleias são encaminhadas ao Congresso irlandês. Uma dessas assembleias decidiu pelo referendo que aprovou a legalização do aborto, numa nação fortemente católica. Também o casamento entre pessoas de mesmo sexo.

E os feminicídios? Em novembro de 2019, o CNJ analisou 3.775 casos julgados pelo júri no Brasil. As sessões de tribunal do júri em processos de feminicídio apresentaram o maior porcentual de condenação entre todos os tipos penais analisados, tendo sido condenados aproximadamente nove a cada dez réus julgados (88%), em comparação com taxa geral de condenação de 66,5% dos réus. Quem atua frequentemente no júri sabe que, hoje, os feminicídios são os casos mais difíceis de serem defendidos.

Propor políticas públicas baseadas no senso comum não costuma ser o melhor caminho, especialmente num tema tão contaminado por paralogismos, como a justiça criminal.

Por fim, é importante lembrar que o júri, previsto no artigo 5.º, inciso XXXVIII, da Constituição da República Federativa do Brasil, configura cláusula pétrea e não pode ser extinto por emenda constitucional.

Instituído no Brasil há 200 anos, o Tribunal do Júri pode ter um dos seus pilares modificados pelo Supremo Tribunal Federal, diante de questionamentos trazidos pelos ministros em julgamentos recentes.

Devemos estudar o Tribunal do Júri e aprimorar seus mecanismos de efetivação de justiça por meio da participação popular. E não acabar com ele.

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ADVOGADOS CRIMINALISTAS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSORA DA FGV DIREITO SP, MESTRE EM DIREITO PENAL PELA USP; E VICE-PRESIDENTE DA OAB/SP, DOUTOR EM DIREITO PENAL PELA USP

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