A revolução genômica que surgiu a partir do primeiro sequenciamento do genoma humano, duas décadas atrás, abriu caminho para aquilo que chamamos de oncologia de precisão. Ao sequenciarmos o DNA, ou seja, ao lermos cada letra do código genético do ser humano, ampliamos o conhecimento sobre quais são as alterações (mutações) que levam ao desenvolvimento dos diferentes tipos de câncer. A chamada oncologia de precisão consiste em utilizar técnicas de análise molecular para identificar quais são as alterações genéticas (sendo elas hereditárias ou não) das células cancerígenas. Além disso, permite entender onde e como elas agem e, o principal de tudo, como elas controlam o tumor. A partir dessas informações são desenvolvidas terapias capazes de inibir esse processo.
Entre todos os tipos de câncer, o que melhor ilustra a evolução da oncologia de precisão é o de pulmão. Não basta dizer, por exemplo, que um tumor maligno neste órgão é um câncer de pulmão. Precisamos fazer o diagnóstico molecular da doença, que consiste em identificar as mutações genéticas específicas presentes nas células cancerígenas. É uma informação essencial para oferecer ao paciente um acompanhamento individualizado e tratamento personalizado.
Somamos conhecimento e evidências científicas que dão robustez e embasam as indicações de terapias-alvo – que agem nessas mutações identificadas – para pacientes com câncer de pulmão. Como resultado, melhor controle da doença, sobrevida e qualidade de vida. Porém, apesar destes benefícios, o acesso a essa tecnologia ainda enfrenta desafios no Brasil, nas esferas pública e privada. Questões relacionadas à infraestrutura laboratorial, disponibilidade de recursos, financiamento e capacitação profissional são alguns dos obstáculos que precisam ser superados para democratizar o acesso, em todo o País, a esta abordagem. Para ter uma ideia, menos da metade dos pacientes brasileiros com câncer de pulmão recebe o diagnóstico molecular adequado. Sem acesso ao teste que define o perfil molecular, não há como indicar a terapia.
O acesso à oncologia de precisão é primordial para o tratamento do câncer de pulmão. No Brasil, segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), o câncer de pulmão é o terceiro mais frequente entre homens e o quarto mais comum entre as mulheres, com estimativas de 32.560 novos casos em 2023 (18.020 entre homens e 14.540 em mulheres). Em âmbito mundial, o dado é ainda mais desalentador. A doença continua sendo a mais letal entre todos os tipos de câncer. São 1,8 milhão de mortes anuais, segundo o Globocan, da Agência Internacional para Pesquisa do Câncer da Organização Mundial da Saúde (Iarc/OMS). Num mundo ideal, a melhor forma de reduzir a incidência e a mortalidade pela doença é combater o tabagismo, que é a causa principal de 8 entre 10 casos de câncer de pulmão.
Outro contexto ideal, para reduzir a mortalidade, seria melhorar o diagnóstico precoce. Hoje, ao fazer o estadiamento da doença (definir a extensão do tumor no momento do diagnóstico), 9 entre 10 casos de câncer de pulmão no Brasil são diagnosticados com a doença já atingindo os linfonodos (estádio 3) ou outros órgãos, a chamada metástase (estádio 4). Comparativamente, quando o câncer de pulmão está restrito ao órgão (estádio 1), as chances de cura (o paciente estar vivo cinco anos após o tratamento) superam os 70%. Em casos de metástase, as chances de cura são inferiores a 10%.
Um dos fatores para a alta taxa de diagnóstico em fase avançada da doença é a ausência de sintomas, ou negligência destes pelos pacientes. Em 2011, um amplo estudo britânico publicado no The New England Journal of Medicine, com 53 mil participantes, mostrou que a realização de tomografia computadorizada de baixa dose de radiação, em população tabagista, reduziu em 20% a mortalidade por câncer de pulmão. Outros estudos se sucederam a ele e confirmaram esse achado. Mas o rastreamento para câncer de pulmão ainda não é uma realidade.
Neste contexto de uma doença muito prevalente, diagnosticada primordialmente em fase avançada e com altas taxas de mortalidade, amplia-se a necessidade de medicamentos mais efetivos. A terapia-alvo, guiada por perfis moleculares específicos, preenche essa lacuna. Entretanto, sem acesso aos exames capazes de identificar as diferentes mutações genéticas, como as dos genes EGFR, Kras, Braf V600E, ALK, ROS1, RET, MET, HER2 e NTRK, não há como iniciar o tratamento específico. Sem o conhecimento adequado, a janela de oportunidade para o paciente se fecha.
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ONCOLOGISTAS CLÍNICOS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, PRESIDENTE DO GRUPO BRASILEIRO DE ONCOLOGIA TORÁCICA (GBOT) E DIRETORA DO NÚCLEO DE INTEGRAÇÃO ONCOLÓGICA DA ONCOLOGIA D’OR; VICE-PRESIDENTE DO GBOT E TITULAR DO A.C.CAMARGO CANCER CENTER; E DIRETORA EXECUTIVA DO GBOT E TITULAR NA ONCOLOGIA D’OR