No último mês de outubro, os EUA divulgaram a nova versão de sua Estratégia Nacional de Defesa. O documento foi lançado apenas duas semanas depois de o presidente Joe Biden ter assinado outro importante documento, de um nível acima: a Estratégia Nacional de Segurança. Ambas as estratégias estão perfeitamente alinhadas, descortinando a visão daquele governo sobre o cenário geopolítico atual e apontando qual será o foco do país na defesa de seus interesses.
A Estratégia de Defesa apresenta um cenário internacional de segurança complexo, com desafios causados por mudanças geopolíticas, tecnológicas, econômicas e ambientais. A competição estratégica com a China é apresentada como sendo o mais complexo desafio à segurança dos EUA, uma vez que aquele país teria um comportamento “coercivo e crescentemente agressivo, com o objetivo de remodelar a região do Indo-Pacífico e o sistema internacional, com a finalidade de adequá-los aos seus interesses”. A Rússia, por sua vez, é apresentada como a ameaça do momento, uma vez que “usa a força para mudar fronteiras, ignorando a soberania de países vizinhos, para reimpor uma esfera de influência imperial”.
Portanto, China e Rússia, nessa ordem, são apresentados como as mais perigosas ameaças à segurança dos EUA. Trata-se, na verdade, do aprofundamento da mudança de foco que já havia ocorrido no governo Donald Trump, que listou China, Rússia, Irã e Coreia do Norte como as principais ameaças aos EUA na Estratégia de Defesa divulgada à época. A mudança se prende ao fato de que, até então, o terrorismo figurava nos documentos oficiais dos EUA como principal ameaça à segurança do país.
O documento também lista como ameaças a Coreia do Norte, em razão de seu status de potência nuclear, o Irã, em razão de seu programa nuclear, das exportações de armas e de seu papel “desestabilizador no Oriente Médio”, além de grupos terroristas como a Al-Qaeda, o Estado Islâmico e seus afiliados.
As mudanças climáticas, que são percebidas pela elevação das temperaturas médias, elevação do nível do mar, mudança no regime das chuvas e maior frequência de eventos climáticos extremos, são apresentadas como motrizes de novos conflitos, como, por exemplo, no Ártico, onde o derretimento da calota polar modifica a geoestratégia da região, aumentando a disputa interestatal naquela parte do globo.
Para enfrentar todos esses desafios, a Estratégia norte-americana apresenta uma ferramenta, a chamada “dissuasão integrada”. Trata-se de ações destinadas a alinhar as políticas, os investimentos e as atividades do Ministério da Defesa dos EUA que sustentem e fortaleçam a dissuasão dos EUA em relação aos seus adversários.
Essa dissuasão envolve o aprimoramento de ações em várias áreas: que neguem aos inimigos a possibilidade de conquistar territórios, que aumentem a resiliência norte-americana em face de ataques adversários e que demonstrem aos inimigos que os custos de um eventual ataque serão muito superiores a eventuais benefícios. Nesse sentido, a Estratégia prevê investimentos em novas capacidades, como a de ataques a longas distâncias, sistemas de armas hipersônicas e sistemas autônomos. Também se priorizará o desenvolvimento dos campos espacial e cibernético, a capacidade de combater guerras irregulares, o apoio a aliados que estejam enfrentando os inimigos dos EUA, medidas diplomáticas e sanções econômicas.
Entretanto, um aspecto dessa estratégia de dissuasão integrada que merece especial atenção de nossa parte é a previsão de uma cerrada colaboração com “aliados e parceiros”. Nesse sentido, é interessante notar que na Declaração de Brasília, resultante da 15.ª Conferência de Ministros da Defesa das Américas, realizada em julho deste ano, os EUA fizeram constar um item que reconhece a “dissuasão integrada como um constructo para manter a paz e a estabilidade no Hemisfério Ocidental, priorizando a cooperação regional em todos os domínios de defesa e segurança e reduzindo barreiras em relação ao compartilhamento de informações e capacidades”.
Como se vê na Declaração de Brasília, os EUA tentam, por meio da aproximação com as Forças Armadas dos demais países das Américas, consubstanciada pela dissuasão integrada, reunir “aliados e parceiros” no enfrentamento de seus adversários. Uma vez que a China, seu principal inimigo, é o principal parceiro econômico da maioria dos países da região e tem estabelecido laços cada vez mais estreitos com vários países, fica claro que se está a caminhar em um terreno particularmente espinhoso nas relações internacionais.
As relações entre EUA e China rumam para um tensionamento cada vez maior. Essa tensão, na América do Sul, será percebida com crescente intensidade, com movimentos de ambos os lados para conter o adversário e atrair os sul-americanos para sua esfera de influência. Caberá aos governos do subcontinente atuar com sabedoria na busca por alcançar seus próprios objetivos, sempre com o foco nos interesses nacionais e na manutenção da paz.
*
É CORONEL DE CAVALARIA DA RESERVA DO EXÉRCITO. SITE: PAULOFILHO.NET.BR