Opinião|Os três anos do novo Marco Legal do Saneamento


A Lei n.º 14.026/2020 deu um primeiro passo na reforma do setor, ao introduzir e perenizar o conceito de sustentabilidade do negócio

Por Édis Milaré

Julho de 2023 marca três anos do ingresso da Lei n.º 14.026/2020 no ordenamento jurídico brasileiro. Muito, aliás, se pode considerar sobre os termos do chamado novo Marco Legal do Saneamento que, como qualquer norma, traz aspectos positivos e negativos. Assim, é sempre desafiador escrever e refletir sobre um tema que está relacionado ao meio ambiente e à própria saúde das pessoas. Existe uma tendência – que se afigura natural – a promover críticas e oposição a novas ideias, sobretudo diante de um contexto social e legislativo consolidado. Mudanças geram receios. Mudanças produzem incertezas. Mudanças trazem consigo o “imponderável da equação da vida”. Aqui, é conveniente citar o grande poeta lusitano Fernando Pessoa: “Navegar é preciso; viver não é preciso”.

Como os antigos navegadores romanos, a sociedade enfrenta inúmeros riscos e dilemas durante seu processo de expansão e evolução. Melhorias e até piorias integram o aprendizado humano e constroem, ao fim, um resultado benéfico e melhor para todo o corpo.

É evidente que, apesar dos inúmeros tropeços ao longo da jornada da história, o mundo e o Brasil florescem: vive-se mais; vive-se melhor. É com esse espírito que se farão rápidas reflexões sobre a Lei n.º 14.026/2020.

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É cediço que o Brasil, até 2007, não tinha uma regulamentação adequada e robusta para o setor de saneamento. A Lei n.º 11.445/2007, portanto, inovou ao sistematizar, no contexto brasileiro, um assunto tão fundamental. Durante a vigência do seu texto-base, houve a adaptação da infraestrutura a aspectos mais contemporâneos da prestação dos serviços. As relações contratuais foram modernizadas e incentivou-se o fortalecimento do sistema de regulação. Intensificou-se o envolvimento das partes interessadas e profissionalizou-se a gestão das entidades responsáveis pelo fornecimento das atividades. Por sinal, o maior destaque da Lei n.º 11.445/2007 talvez se refira à concepção de uma estrutura que segmentou as atribuições de fixação de metas, de fiscalização e de execução das tarefas.

Mais de dez anos se passaram e o texto original da Lei n.º 11.445/2007 envelheceu – como era previsível e esperado.

O principal incômodo trazido após a primeira fase de experimentação da Lei n.º 11.445/2007 foi, sem dúvida, a impossibilidade de produção de recursos suficientes para o atendimento completo à demanda por universalização dos serviços. Apesar de evidentes progressos, a desigualdade, sobretudo regional, permanece. O Brasil mantém ilhas de excelência rodeadas por um entorno de caos e pobreza. O chamado novo Marco Legal do Saneamento foi, em outras palavras, motivado por uma necessidade predominantemente econômica, já que o legislador percebeu os percalços diante desse aspecto – havia e há a necessidade de aporte contínuo de capital para o setor.

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Não obstante, é bem sabida a gravidade do problema do saneamento básico no País. De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento de 2018, quase 35 milhões de pessoas não têm acesso ao abastecimento de água; mais de 100 milhões não dispõem de cobertura de coleta de esgoto; e quase 51 milhões não são alcançadas por serviços de coleta de resíduos sólidos.

Pode-se afirmar, de maneira resumida, que a Lei n.º 14.026/2020 trouxe um viés essencialmente econômico-financeiro para o corpo legislativo e para a realidade do setor. O intento foi, claramente, gerar recursos e promover o equilíbrio contratual como meio de suporte ao atendimento das metas de universalização. Foram introduzidos novos institutos, como a comprovação da capacidade econômico-financeira e a estruturação dos denominados blocos de referência. Houve, também, movimento no sentido de promover a elevação da influência da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) com o propósito de estabelecer uma espécie de padrão nacional tanto de sustentabilidade do negócio quanto de universalização. O foco legislativo, em 2020, foi, indubitavelmente, a constituição de recursos para a área.

Após três anos de teste da Lei n.º 14.026/2020, alguns aspectos justificam atenção e merecem ser considerados.

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O primeiro se refere à efetiva modificação do processo de gestão do setor de saneamento. Sem dúvida, apesar das inúmeras polêmicas, a inserção de um modelo de demonstração e manutenção de equilíbrio econômico-financeiro, por intermédio do mecanismo de prévia qualificação do Decreto n.º 10.710/2021, levou o mercado a incorporar de modo mais permanente aspectos de sustentabilidade do negócio. Apesar de o ato administrativo regulamentar não estar mais em vigor – havendo alguma incerteza, no momento, sobre o caminho adiante –, restou para os atores a internalização dos correspondentes instrumentos de planejamento e ponderação de riscos. A obrigatoriedade da comprovação, naquele momento, concorreu para que todos os prestadores – mesmo os não qualificados ou qualificáveis – se aproximassem de um standard de viabilidade financeira. Hoje, aqueles que desenvolvem encargos estão cientes dos cálculos de crescimento e perenidade empresarial e dispõem de instrumentos mínimos para esse fim.

Outro ângulo – por sinal, pouco notado – foi que o novo Marco Legal do Saneamento não só estabeleceu metas nacionais de universalização, mas delimitou, de fato, o referido conceito (art. 11-B).

Foi sábio o Poder Legislativo ao considerar que a universalização não se reveste de caráter absoluto, de modo a indicar que a totalidade dos prédios deva estar conectada a serviços públicos como os de água e esgoto, por exemplo.

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De modo salutar, a legislação estabeleceu duas balizas porcentuais bastante objetivas, ou seja, até 2033, deve haver a cobertura de 99% com relação aos serviços de abastecimento de água; e, até 2033, deve haver a cobertura de 90% com relação aos serviços de coleta e tratamento de esgoto. Como consequência, há alguma tolerância para o não atendimento pelo sistema público integrado (de 1% para água e 10% para esgoto).

O legislador fez, assim, ponderações – e opções –, uma vez que existirão circunstâncias nas quais a interligação às redes coletivas será técnica e/ou economicamente inviável. Seria excessiva exigência, além da submissão do interesse público ao particular, promover a implantação de caríssima infraestrutura para atendimento de um ou alguns imóveis numa região remota – lembrando sempre a maior complexidade de implantação e operação dos sistemas de esgotamento.

Em paralelo, o legislador permitiu a adoção de expedientes isolados, sendo que na ausência de redes públicas de saneamento básico serão admitidas soluções individuais de abastecimento de água e de afastamento e destinação final dos esgotos sanitários, observadas as normas editadas pela entidade reguladora e pelos órgãos responsáveis pelas políticas ambiental, sanitária e de recursos hídricos (art. 45, §1.º da Lei n.º 11.445/2007).

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Fica claro que a Lei n.º 11.445/2007 permite que até 1% e 10% dos sistemas de água e esgoto, respectivamente, sejam compostos por soluções individuais (art. 11-B c/c art. 45, §1.º).

A relativização do conceito permite, atualmente, melhor organização dos recursos de modo a gerar o aproveitamento mais adequado do escasso numerário. Muitas localidades podem ser consideradas universalizadas, permitindo que outras regiões também recebam investimentos.

Sob a ótica do fortalecimento da ANA, em detrimento das agências reguladoras estaduais, a tendência de esvaziamento dessas últimas não se confirmou – como era calculável. O órgão federal e os órgãos estaduais – sobretudo os mais estruturados – passaram a cooperar na apuração da qualificação econômico-financeira, o que gerou uma nova perspectiva de aproveitamento do know-how já produzido. Notou-se, por consequência, o enriquecimento do relacionamento entre as agências, com a melhora da conformação existente nos vários níveis.

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Noutra configuração, não se verificou evolução significativa do tratamento da prestação dos serviços nos municípios pequenos, deficitários e distantes das grandes aglomerações. Há pouca probabilidade de que os blocos de referência constituam solução definitiva para a questão. É provável que, em algum momento, o País tenha de desenvolver um estratagema legal para permitir o atendimento de zonas economicamente inviáveis e desgarradas de outras localidades.

É importante considerar que a Lei n.º 14.026/2020 não se afigurou como uma reforma ideal. Foi o texto possível em face dos inúmeros desafios sociais e políticos de sua época. Entretanto, deu um primeiro passo na reforma do setor, ao introduzir e perenizar o conceito de sustentabilidade do negócio. Nesse sentido, espera-se que os recentes decretos (11.599 e 11.598, ambos do dia 12 de julho passado) sejam efetivos para assegurar a implementação da norma. É forçoso continuar. “Navegar é preciso.”

*

ADVOGADO, CONSULTOR AMBIENTAL, PROFESSOR DE DIREITO AMBIENTAL, É DOUTOR E MESTRE EM DIREITOS DIFUSOS E COLETIVOS, CONCENTRAÇÃO EM DIREITO AMBIENTAL (PUC/SP)

Julho de 2023 marca três anos do ingresso da Lei n.º 14.026/2020 no ordenamento jurídico brasileiro. Muito, aliás, se pode considerar sobre os termos do chamado novo Marco Legal do Saneamento que, como qualquer norma, traz aspectos positivos e negativos. Assim, é sempre desafiador escrever e refletir sobre um tema que está relacionado ao meio ambiente e à própria saúde das pessoas. Existe uma tendência – que se afigura natural – a promover críticas e oposição a novas ideias, sobretudo diante de um contexto social e legislativo consolidado. Mudanças geram receios. Mudanças produzem incertezas. Mudanças trazem consigo o “imponderável da equação da vida”. Aqui, é conveniente citar o grande poeta lusitano Fernando Pessoa: “Navegar é preciso; viver não é preciso”.

Como os antigos navegadores romanos, a sociedade enfrenta inúmeros riscos e dilemas durante seu processo de expansão e evolução. Melhorias e até piorias integram o aprendizado humano e constroem, ao fim, um resultado benéfico e melhor para todo o corpo.

É evidente que, apesar dos inúmeros tropeços ao longo da jornada da história, o mundo e o Brasil florescem: vive-se mais; vive-se melhor. É com esse espírito que se farão rápidas reflexões sobre a Lei n.º 14.026/2020.

É cediço que o Brasil, até 2007, não tinha uma regulamentação adequada e robusta para o setor de saneamento. A Lei n.º 11.445/2007, portanto, inovou ao sistematizar, no contexto brasileiro, um assunto tão fundamental. Durante a vigência do seu texto-base, houve a adaptação da infraestrutura a aspectos mais contemporâneos da prestação dos serviços. As relações contratuais foram modernizadas e incentivou-se o fortalecimento do sistema de regulação. Intensificou-se o envolvimento das partes interessadas e profissionalizou-se a gestão das entidades responsáveis pelo fornecimento das atividades. Por sinal, o maior destaque da Lei n.º 11.445/2007 talvez se refira à concepção de uma estrutura que segmentou as atribuições de fixação de metas, de fiscalização e de execução das tarefas.

Mais de dez anos se passaram e o texto original da Lei n.º 11.445/2007 envelheceu – como era previsível e esperado.

O principal incômodo trazido após a primeira fase de experimentação da Lei n.º 11.445/2007 foi, sem dúvida, a impossibilidade de produção de recursos suficientes para o atendimento completo à demanda por universalização dos serviços. Apesar de evidentes progressos, a desigualdade, sobretudo regional, permanece. O Brasil mantém ilhas de excelência rodeadas por um entorno de caos e pobreza. O chamado novo Marco Legal do Saneamento foi, em outras palavras, motivado por uma necessidade predominantemente econômica, já que o legislador percebeu os percalços diante desse aspecto – havia e há a necessidade de aporte contínuo de capital para o setor.

Não obstante, é bem sabida a gravidade do problema do saneamento básico no País. De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento de 2018, quase 35 milhões de pessoas não têm acesso ao abastecimento de água; mais de 100 milhões não dispõem de cobertura de coleta de esgoto; e quase 51 milhões não são alcançadas por serviços de coleta de resíduos sólidos.

Pode-se afirmar, de maneira resumida, que a Lei n.º 14.026/2020 trouxe um viés essencialmente econômico-financeiro para o corpo legislativo e para a realidade do setor. O intento foi, claramente, gerar recursos e promover o equilíbrio contratual como meio de suporte ao atendimento das metas de universalização. Foram introduzidos novos institutos, como a comprovação da capacidade econômico-financeira e a estruturação dos denominados blocos de referência. Houve, também, movimento no sentido de promover a elevação da influência da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) com o propósito de estabelecer uma espécie de padrão nacional tanto de sustentabilidade do negócio quanto de universalização. O foco legislativo, em 2020, foi, indubitavelmente, a constituição de recursos para a área.

Após três anos de teste da Lei n.º 14.026/2020, alguns aspectos justificam atenção e merecem ser considerados.

O primeiro se refere à efetiva modificação do processo de gestão do setor de saneamento. Sem dúvida, apesar das inúmeras polêmicas, a inserção de um modelo de demonstração e manutenção de equilíbrio econômico-financeiro, por intermédio do mecanismo de prévia qualificação do Decreto n.º 10.710/2021, levou o mercado a incorporar de modo mais permanente aspectos de sustentabilidade do negócio. Apesar de o ato administrativo regulamentar não estar mais em vigor – havendo alguma incerteza, no momento, sobre o caminho adiante –, restou para os atores a internalização dos correspondentes instrumentos de planejamento e ponderação de riscos. A obrigatoriedade da comprovação, naquele momento, concorreu para que todos os prestadores – mesmo os não qualificados ou qualificáveis – se aproximassem de um standard de viabilidade financeira. Hoje, aqueles que desenvolvem encargos estão cientes dos cálculos de crescimento e perenidade empresarial e dispõem de instrumentos mínimos para esse fim.

Outro ângulo – por sinal, pouco notado – foi que o novo Marco Legal do Saneamento não só estabeleceu metas nacionais de universalização, mas delimitou, de fato, o referido conceito (art. 11-B).

Foi sábio o Poder Legislativo ao considerar que a universalização não se reveste de caráter absoluto, de modo a indicar que a totalidade dos prédios deva estar conectada a serviços públicos como os de água e esgoto, por exemplo.

De modo salutar, a legislação estabeleceu duas balizas porcentuais bastante objetivas, ou seja, até 2033, deve haver a cobertura de 99% com relação aos serviços de abastecimento de água; e, até 2033, deve haver a cobertura de 90% com relação aos serviços de coleta e tratamento de esgoto. Como consequência, há alguma tolerância para o não atendimento pelo sistema público integrado (de 1% para água e 10% para esgoto).

O legislador fez, assim, ponderações – e opções –, uma vez que existirão circunstâncias nas quais a interligação às redes coletivas será técnica e/ou economicamente inviável. Seria excessiva exigência, além da submissão do interesse público ao particular, promover a implantação de caríssima infraestrutura para atendimento de um ou alguns imóveis numa região remota – lembrando sempre a maior complexidade de implantação e operação dos sistemas de esgotamento.

Em paralelo, o legislador permitiu a adoção de expedientes isolados, sendo que na ausência de redes públicas de saneamento básico serão admitidas soluções individuais de abastecimento de água e de afastamento e destinação final dos esgotos sanitários, observadas as normas editadas pela entidade reguladora e pelos órgãos responsáveis pelas políticas ambiental, sanitária e de recursos hídricos (art. 45, §1.º da Lei n.º 11.445/2007).

Fica claro que a Lei n.º 11.445/2007 permite que até 1% e 10% dos sistemas de água e esgoto, respectivamente, sejam compostos por soluções individuais (art. 11-B c/c art. 45, §1.º).

A relativização do conceito permite, atualmente, melhor organização dos recursos de modo a gerar o aproveitamento mais adequado do escasso numerário. Muitas localidades podem ser consideradas universalizadas, permitindo que outras regiões também recebam investimentos.

Sob a ótica do fortalecimento da ANA, em detrimento das agências reguladoras estaduais, a tendência de esvaziamento dessas últimas não se confirmou – como era calculável. O órgão federal e os órgãos estaduais – sobretudo os mais estruturados – passaram a cooperar na apuração da qualificação econômico-financeira, o que gerou uma nova perspectiva de aproveitamento do know-how já produzido. Notou-se, por consequência, o enriquecimento do relacionamento entre as agências, com a melhora da conformação existente nos vários níveis.

Noutra configuração, não se verificou evolução significativa do tratamento da prestação dos serviços nos municípios pequenos, deficitários e distantes das grandes aglomerações. Há pouca probabilidade de que os blocos de referência constituam solução definitiva para a questão. É provável que, em algum momento, o País tenha de desenvolver um estratagema legal para permitir o atendimento de zonas economicamente inviáveis e desgarradas de outras localidades.

É importante considerar que a Lei n.º 14.026/2020 não se afigurou como uma reforma ideal. Foi o texto possível em face dos inúmeros desafios sociais e políticos de sua época. Entretanto, deu um primeiro passo na reforma do setor, ao introduzir e perenizar o conceito de sustentabilidade do negócio. Nesse sentido, espera-se que os recentes decretos (11.599 e 11.598, ambos do dia 12 de julho passado) sejam efetivos para assegurar a implementação da norma. É forçoso continuar. “Navegar é preciso.”

*

ADVOGADO, CONSULTOR AMBIENTAL, PROFESSOR DE DIREITO AMBIENTAL, É DOUTOR E MESTRE EM DIREITOS DIFUSOS E COLETIVOS, CONCENTRAÇÃO EM DIREITO AMBIENTAL (PUC/SP)

Julho de 2023 marca três anos do ingresso da Lei n.º 14.026/2020 no ordenamento jurídico brasileiro. Muito, aliás, se pode considerar sobre os termos do chamado novo Marco Legal do Saneamento que, como qualquer norma, traz aspectos positivos e negativos. Assim, é sempre desafiador escrever e refletir sobre um tema que está relacionado ao meio ambiente e à própria saúde das pessoas. Existe uma tendência – que se afigura natural – a promover críticas e oposição a novas ideias, sobretudo diante de um contexto social e legislativo consolidado. Mudanças geram receios. Mudanças produzem incertezas. Mudanças trazem consigo o “imponderável da equação da vida”. Aqui, é conveniente citar o grande poeta lusitano Fernando Pessoa: “Navegar é preciso; viver não é preciso”.

Como os antigos navegadores romanos, a sociedade enfrenta inúmeros riscos e dilemas durante seu processo de expansão e evolução. Melhorias e até piorias integram o aprendizado humano e constroem, ao fim, um resultado benéfico e melhor para todo o corpo.

É evidente que, apesar dos inúmeros tropeços ao longo da jornada da história, o mundo e o Brasil florescem: vive-se mais; vive-se melhor. É com esse espírito que se farão rápidas reflexões sobre a Lei n.º 14.026/2020.

É cediço que o Brasil, até 2007, não tinha uma regulamentação adequada e robusta para o setor de saneamento. A Lei n.º 11.445/2007, portanto, inovou ao sistematizar, no contexto brasileiro, um assunto tão fundamental. Durante a vigência do seu texto-base, houve a adaptação da infraestrutura a aspectos mais contemporâneos da prestação dos serviços. As relações contratuais foram modernizadas e incentivou-se o fortalecimento do sistema de regulação. Intensificou-se o envolvimento das partes interessadas e profissionalizou-se a gestão das entidades responsáveis pelo fornecimento das atividades. Por sinal, o maior destaque da Lei n.º 11.445/2007 talvez se refira à concepção de uma estrutura que segmentou as atribuições de fixação de metas, de fiscalização e de execução das tarefas.

Mais de dez anos se passaram e o texto original da Lei n.º 11.445/2007 envelheceu – como era previsível e esperado.

O principal incômodo trazido após a primeira fase de experimentação da Lei n.º 11.445/2007 foi, sem dúvida, a impossibilidade de produção de recursos suficientes para o atendimento completo à demanda por universalização dos serviços. Apesar de evidentes progressos, a desigualdade, sobretudo regional, permanece. O Brasil mantém ilhas de excelência rodeadas por um entorno de caos e pobreza. O chamado novo Marco Legal do Saneamento foi, em outras palavras, motivado por uma necessidade predominantemente econômica, já que o legislador percebeu os percalços diante desse aspecto – havia e há a necessidade de aporte contínuo de capital para o setor.

Não obstante, é bem sabida a gravidade do problema do saneamento básico no País. De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento de 2018, quase 35 milhões de pessoas não têm acesso ao abastecimento de água; mais de 100 milhões não dispõem de cobertura de coleta de esgoto; e quase 51 milhões não são alcançadas por serviços de coleta de resíduos sólidos.

Pode-se afirmar, de maneira resumida, que a Lei n.º 14.026/2020 trouxe um viés essencialmente econômico-financeiro para o corpo legislativo e para a realidade do setor. O intento foi, claramente, gerar recursos e promover o equilíbrio contratual como meio de suporte ao atendimento das metas de universalização. Foram introduzidos novos institutos, como a comprovação da capacidade econômico-financeira e a estruturação dos denominados blocos de referência. Houve, também, movimento no sentido de promover a elevação da influência da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) com o propósito de estabelecer uma espécie de padrão nacional tanto de sustentabilidade do negócio quanto de universalização. O foco legislativo, em 2020, foi, indubitavelmente, a constituição de recursos para a área.

Após três anos de teste da Lei n.º 14.026/2020, alguns aspectos justificam atenção e merecem ser considerados.

O primeiro se refere à efetiva modificação do processo de gestão do setor de saneamento. Sem dúvida, apesar das inúmeras polêmicas, a inserção de um modelo de demonstração e manutenção de equilíbrio econômico-financeiro, por intermédio do mecanismo de prévia qualificação do Decreto n.º 10.710/2021, levou o mercado a incorporar de modo mais permanente aspectos de sustentabilidade do negócio. Apesar de o ato administrativo regulamentar não estar mais em vigor – havendo alguma incerteza, no momento, sobre o caminho adiante –, restou para os atores a internalização dos correspondentes instrumentos de planejamento e ponderação de riscos. A obrigatoriedade da comprovação, naquele momento, concorreu para que todos os prestadores – mesmo os não qualificados ou qualificáveis – se aproximassem de um standard de viabilidade financeira. Hoje, aqueles que desenvolvem encargos estão cientes dos cálculos de crescimento e perenidade empresarial e dispõem de instrumentos mínimos para esse fim.

Outro ângulo – por sinal, pouco notado – foi que o novo Marco Legal do Saneamento não só estabeleceu metas nacionais de universalização, mas delimitou, de fato, o referido conceito (art. 11-B).

Foi sábio o Poder Legislativo ao considerar que a universalização não se reveste de caráter absoluto, de modo a indicar que a totalidade dos prédios deva estar conectada a serviços públicos como os de água e esgoto, por exemplo.

De modo salutar, a legislação estabeleceu duas balizas porcentuais bastante objetivas, ou seja, até 2033, deve haver a cobertura de 99% com relação aos serviços de abastecimento de água; e, até 2033, deve haver a cobertura de 90% com relação aos serviços de coleta e tratamento de esgoto. Como consequência, há alguma tolerância para o não atendimento pelo sistema público integrado (de 1% para água e 10% para esgoto).

O legislador fez, assim, ponderações – e opções –, uma vez que existirão circunstâncias nas quais a interligação às redes coletivas será técnica e/ou economicamente inviável. Seria excessiva exigência, além da submissão do interesse público ao particular, promover a implantação de caríssima infraestrutura para atendimento de um ou alguns imóveis numa região remota – lembrando sempre a maior complexidade de implantação e operação dos sistemas de esgotamento.

Em paralelo, o legislador permitiu a adoção de expedientes isolados, sendo que na ausência de redes públicas de saneamento básico serão admitidas soluções individuais de abastecimento de água e de afastamento e destinação final dos esgotos sanitários, observadas as normas editadas pela entidade reguladora e pelos órgãos responsáveis pelas políticas ambiental, sanitária e de recursos hídricos (art. 45, §1.º da Lei n.º 11.445/2007).

Fica claro que a Lei n.º 11.445/2007 permite que até 1% e 10% dos sistemas de água e esgoto, respectivamente, sejam compostos por soluções individuais (art. 11-B c/c art. 45, §1.º).

A relativização do conceito permite, atualmente, melhor organização dos recursos de modo a gerar o aproveitamento mais adequado do escasso numerário. Muitas localidades podem ser consideradas universalizadas, permitindo que outras regiões também recebam investimentos.

Sob a ótica do fortalecimento da ANA, em detrimento das agências reguladoras estaduais, a tendência de esvaziamento dessas últimas não se confirmou – como era calculável. O órgão federal e os órgãos estaduais – sobretudo os mais estruturados – passaram a cooperar na apuração da qualificação econômico-financeira, o que gerou uma nova perspectiva de aproveitamento do know-how já produzido. Notou-se, por consequência, o enriquecimento do relacionamento entre as agências, com a melhora da conformação existente nos vários níveis.

Noutra configuração, não se verificou evolução significativa do tratamento da prestação dos serviços nos municípios pequenos, deficitários e distantes das grandes aglomerações. Há pouca probabilidade de que os blocos de referência constituam solução definitiva para a questão. É provável que, em algum momento, o País tenha de desenvolver um estratagema legal para permitir o atendimento de zonas economicamente inviáveis e desgarradas de outras localidades.

É importante considerar que a Lei n.º 14.026/2020 não se afigurou como uma reforma ideal. Foi o texto possível em face dos inúmeros desafios sociais e políticos de sua época. Entretanto, deu um primeiro passo na reforma do setor, ao introduzir e perenizar o conceito de sustentabilidade do negócio. Nesse sentido, espera-se que os recentes decretos (11.599 e 11.598, ambos do dia 12 de julho passado) sejam efetivos para assegurar a implementação da norma. É forçoso continuar. “Navegar é preciso.”

*

ADVOGADO, CONSULTOR AMBIENTAL, PROFESSOR DE DIREITO AMBIENTAL, É DOUTOR E MESTRE EM DIREITOS DIFUSOS E COLETIVOS, CONCENTRAÇÃO EM DIREITO AMBIENTAL (PUC/SP)

Julho de 2023 marca três anos do ingresso da Lei n.º 14.026/2020 no ordenamento jurídico brasileiro. Muito, aliás, se pode considerar sobre os termos do chamado novo Marco Legal do Saneamento que, como qualquer norma, traz aspectos positivos e negativos. Assim, é sempre desafiador escrever e refletir sobre um tema que está relacionado ao meio ambiente e à própria saúde das pessoas. Existe uma tendência – que se afigura natural – a promover críticas e oposição a novas ideias, sobretudo diante de um contexto social e legislativo consolidado. Mudanças geram receios. Mudanças produzem incertezas. Mudanças trazem consigo o “imponderável da equação da vida”. Aqui, é conveniente citar o grande poeta lusitano Fernando Pessoa: “Navegar é preciso; viver não é preciso”.

Como os antigos navegadores romanos, a sociedade enfrenta inúmeros riscos e dilemas durante seu processo de expansão e evolução. Melhorias e até piorias integram o aprendizado humano e constroem, ao fim, um resultado benéfico e melhor para todo o corpo.

É evidente que, apesar dos inúmeros tropeços ao longo da jornada da história, o mundo e o Brasil florescem: vive-se mais; vive-se melhor. É com esse espírito que se farão rápidas reflexões sobre a Lei n.º 14.026/2020.

É cediço que o Brasil, até 2007, não tinha uma regulamentação adequada e robusta para o setor de saneamento. A Lei n.º 11.445/2007, portanto, inovou ao sistematizar, no contexto brasileiro, um assunto tão fundamental. Durante a vigência do seu texto-base, houve a adaptação da infraestrutura a aspectos mais contemporâneos da prestação dos serviços. As relações contratuais foram modernizadas e incentivou-se o fortalecimento do sistema de regulação. Intensificou-se o envolvimento das partes interessadas e profissionalizou-se a gestão das entidades responsáveis pelo fornecimento das atividades. Por sinal, o maior destaque da Lei n.º 11.445/2007 talvez se refira à concepção de uma estrutura que segmentou as atribuições de fixação de metas, de fiscalização e de execução das tarefas.

Mais de dez anos se passaram e o texto original da Lei n.º 11.445/2007 envelheceu – como era previsível e esperado.

O principal incômodo trazido após a primeira fase de experimentação da Lei n.º 11.445/2007 foi, sem dúvida, a impossibilidade de produção de recursos suficientes para o atendimento completo à demanda por universalização dos serviços. Apesar de evidentes progressos, a desigualdade, sobretudo regional, permanece. O Brasil mantém ilhas de excelência rodeadas por um entorno de caos e pobreza. O chamado novo Marco Legal do Saneamento foi, em outras palavras, motivado por uma necessidade predominantemente econômica, já que o legislador percebeu os percalços diante desse aspecto – havia e há a necessidade de aporte contínuo de capital para o setor.

Não obstante, é bem sabida a gravidade do problema do saneamento básico no País. De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento de 2018, quase 35 milhões de pessoas não têm acesso ao abastecimento de água; mais de 100 milhões não dispõem de cobertura de coleta de esgoto; e quase 51 milhões não são alcançadas por serviços de coleta de resíduos sólidos.

Pode-se afirmar, de maneira resumida, que a Lei n.º 14.026/2020 trouxe um viés essencialmente econômico-financeiro para o corpo legislativo e para a realidade do setor. O intento foi, claramente, gerar recursos e promover o equilíbrio contratual como meio de suporte ao atendimento das metas de universalização. Foram introduzidos novos institutos, como a comprovação da capacidade econômico-financeira e a estruturação dos denominados blocos de referência. Houve, também, movimento no sentido de promover a elevação da influência da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) com o propósito de estabelecer uma espécie de padrão nacional tanto de sustentabilidade do negócio quanto de universalização. O foco legislativo, em 2020, foi, indubitavelmente, a constituição de recursos para a área.

Após três anos de teste da Lei n.º 14.026/2020, alguns aspectos justificam atenção e merecem ser considerados.

O primeiro se refere à efetiva modificação do processo de gestão do setor de saneamento. Sem dúvida, apesar das inúmeras polêmicas, a inserção de um modelo de demonstração e manutenção de equilíbrio econômico-financeiro, por intermédio do mecanismo de prévia qualificação do Decreto n.º 10.710/2021, levou o mercado a incorporar de modo mais permanente aspectos de sustentabilidade do negócio. Apesar de o ato administrativo regulamentar não estar mais em vigor – havendo alguma incerteza, no momento, sobre o caminho adiante –, restou para os atores a internalização dos correspondentes instrumentos de planejamento e ponderação de riscos. A obrigatoriedade da comprovação, naquele momento, concorreu para que todos os prestadores – mesmo os não qualificados ou qualificáveis – se aproximassem de um standard de viabilidade financeira. Hoje, aqueles que desenvolvem encargos estão cientes dos cálculos de crescimento e perenidade empresarial e dispõem de instrumentos mínimos para esse fim.

Outro ângulo – por sinal, pouco notado – foi que o novo Marco Legal do Saneamento não só estabeleceu metas nacionais de universalização, mas delimitou, de fato, o referido conceito (art. 11-B).

Foi sábio o Poder Legislativo ao considerar que a universalização não se reveste de caráter absoluto, de modo a indicar que a totalidade dos prédios deva estar conectada a serviços públicos como os de água e esgoto, por exemplo.

De modo salutar, a legislação estabeleceu duas balizas porcentuais bastante objetivas, ou seja, até 2033, deve haver a cobertura de 99% com relação aos serviços de abastecimento de água; e, até 2033, deve haver a cobertura de 90% com relação aos serviços de coleta e tratamento de esgoto. Como consequência, há alguma tolerância para o não atendimento pelo sistema público integrado (de 1% para água e 10% para esgoto).

O legislador fez, assim, ponderações – e opções –, uma vez que existirão circunstâncias nas quais a interligação às redes coletivas será técnica e/ou economicamente inviável. Seria excessiva exigência, além da submissão do interesse público ao particular, promover a implantação de caríssima infraestrutura para atendimento de um ou alguns imóveis numa região remota – lembrando sempre a maior complexidade de implantação e operação dos sistemas de esgotamento.

Em paralelo, o legislador permitiu a adoção de expedientes isolados, sendo que na ausência de redes públicas de saneamento básico serão admitidas soluções individuais de abastecimento de água e de afastamento e destinação final dos esgotos sanitários, observadas as normas editadas pela entidade reguladora e pelos órgãos responsáveis pelas políticas ambiental, sanitária e de recursos hídricos (art. 45, §1.º da Lei n.º 11.445/2007).

Fica claro que a Lei n.º 11.445/2007 permite que até 1% e 10% dos sistemas de água e esgoto, respectivamente, sejam compostos por soluções individuais (art. 11-B c/c art. 45, §1.º).

A relativização do conceito permite, atualmente, melhor organização dos recursos de modo a gerar o aproveitamento mais adequado do escasso numerário. Muitas localidades podem ser consideradas universalizadas, permitindo que outras regiões também recebam investimentos.

Sob a ótica do fortalecimento da ANA, em detrimento das agências reguladoras estaduais, a tendência de esvaziamento dessas últimas não se confirmou – como era calculável. O órgão federal e os órgãos estaduais – sobretudo os mais estruturados – passaram a cooperar na apuração da qualificação econômico-financeira, o que gerou uma nova perspectiva de aproveitamento do know-how já produzido. Notou-se, por consequência, o enriquecimento do relacionamento entre as agências, com a melhora da conformação existente nos vários níveis.

Noutra configuração, não se verificou evolução significativa do tratamento da prestação dos serviços nos municípios pequenos, deficitários e distantes das grandes aglomerações. Há pouca probabilidade de que os blocos de referência constituam solução definitiva para a questão. É provável que, em algum momento, o País tenha de desenvolver um estratagema legal para permitir o atendimento de zonas economicamente inviáveis e desgarradas de outras localidades.

É importante considerar que a Lei n.º 14.026/2020 não se afigurou como uma reforma ideal. Foi o texto possível em face dos inúmeros desafios sociais e políticos de sua época. Entretanto, deu um primeiro passo na reforma do setor, ao introduzir e perenizar o conceito de sustentabilidade do negócio. Nesse sentido, espera-se que os recentes decretos (11.599 e 11.598, ambos do dia 12 de julho passado) sejam efetivos para assegurar a implementação da norma. É forçoso continuar. “Navegar é preciso.”

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ADVOGADO, CONSULTOR AMBIENTAL, PROFESSOR DE DIREITO AMBIENTAL, É DOUTOR E MESTRE EM DIREITOS DIFUSOS E COLETIVOS, CONCENTRAÇÃO EM DIREITO AMBIENTAL (PUC/SP)

Julho de 2023 marca três anos do ingresso da Lei n.º 14.026/2020 no ordenamento jurídico brasileiro. Muito, aliás, se pode considerar sobre os termos do chamado novo Marco Legal do Saneamento que, como qualquer norma, traz aspectos positivos e negativos. Assim, é sempre desafiador escrever e refletir sobre um tema que está relacionado ao meio ambiente e à própria saúde das pessoas. Existe uma tendência – que se afigura natural – a promover críticas e oposição a novas ideias, sobretudo diante de um contexto social e legislativo consolidado. Mudanças geram receios. Mudanças produzem incertezas. Mudanças trazem consigo o “imponderável da equação da vida”. Aqui, é conveniente citar o grande poeta lusitano Fernando Pessoa: “Navegar é preciso; viver não é preciso”.

Como os antigos navegadores romanos, a sociedade enfrenta inúmeros riscos e dilemas durante seu processo de expansão e evolução. Melhorias e até piorias integram o aprendizado humano e constroem, ao fim, um resultado benéfico e melhor para todo o corpo.

É evidente que, apesar dos inúmeros tropeços ao longo da jornada da história, o mundo e o Brasil florescem: vive-se mais; vive-se melhor. É com esse espírito que se farão rápidas reflexões sobre a Lei n.º 14.026/2020.

É cediço que o Brasil, até 2007, não tinha uma regulamentação adequada e robusta para o setor de saneamento. A Lei n.º 11.445/2007, portanto, inovou ao sistematizar, no contexto brasileiro, um assunto tão fundamental. Durante a vigência do seu texto-base, houve a adaptação da infraestrutura a aspectos mais contemporâneos da prestação dos serviços. As relações contratuais foram modernizadas e incentivou-se o fortalecimento do sistema de regulação. Intensificou-se o envolvimento das partes interessadas e profissionalizou-se a gestão das entidades responsáveis pelo fornecimento das atividades. Por sinal, o maior destaque da Lei n.º 11.445/2007 talvez se refira à concepção de uma estrutura que segmentou as atribuições de fixação de metas, de fiscalização e de execução das tarefas.

Mais de dez anos se passaram e o texto original da Lei n.º 11.445/2007 envelheceu – como era previsível e esperado.

O principal incômodo trazido após a primeira fase de experimentação da Lei n.º 11.445/2007 foi, sem dúvida, a impossibilidade de produção de recursos suficientes para o atendimento completo à demanda por universalização dos serviços. Apesar de evidentes progressos, a desigualdade, sobretudo regional, permanece. O Brasil mantém ilhas de excelência rodeadas por um entorno de caos e pobreza. O chamado novo Marco Legal do Saneamento foi, em outras palavras, motivado por uma necessidade predominantemente econômica, já que o legislador percebeu os percalços diante desse aspecto – havia e há a necessidade de aporte contínuo de capital para o setor.

Não obstante, é bem sabida a gravidade do problema do saneamento básico no País. De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento de 2018, quase 35 milhões de pessoas não têm acesso ao abastecimento de água; mais de 100 milhões não dispõem de cobertura de coleta de esgoto; e quase 51 milhões não são alcançadas por serviços de coleta de resíduos sólidos.

Pode-se afirmar, de maneira resumida, que a Lei n.º 14.026/2020 trouxe um viés essencialmente econômico-financeiro para o corpo legislativo e para a realidade do setor. O intento foi, claramente, gerar recursos e promover o equilíbrio contratual como meio de suporte ao atendimento das metas de universalização. Foram introduzidos novos institutos, como a comprovação da capacidade econômico-financeira e a estruturação dos denominados blocos de referência. Houve, também, movimento no sentido de promover a elevação da influência da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) com o propósito de estabelecer uma espécie de padrão nacional tanto de sustentabilidade do negócio quanto de universalização. O foco legislativo, em 2020, foi, indubitavelmente, a constituição de recursos para a área.

Após três anos de teste da Lei n.º 14.026/2020, alguns aspectos justificam atenção e merecem ser considerados.

O primeiro se refere à efetiva modificação do processo de gestão do setor de saneamento. Sem dúvida, apesar das inúmeras polêmicas, a inserção de um modelo de demonstração e manutenção de equilíbrio econômico-financeiro, por intermédio do mecanismo de prévia qualificação do Decreto n.º 10.710/2021, levou o mercado a incorporar de modo mais permanente aspectos de sustentabilidade do negócio. Apesar de o ato administrativo regulamentar não estar mais em vigor – havendo alguma incerteza, no momento, sobre o caminho adiante –, restou para os atores a internalização dos correspondentes instrumentos de planejamento e ponderação de riscos. A obrigatoriedade da comprovação, naquele momento, concorreu para que todos os prestadores – mesmo os não qualificados ou qualificáveis – se aproximassem de um standard de viabilidade financeira. Hoje, aqueles que desenvolvem encargos estão cientes dos cálculos de crescimento e perenidade empresarial e dispõem de instrumentos mínimos para esse fim.

Outro ângulo – por sinal, pouco notado – foi que o novo Marco Legal do Saneamento não só estabeleceu metas nacionais de universalização, mas delimitou, de fato, o referido conceito (art. 11-B).

Foi sábio o Poder Legislativo ao considerar que a universalização não se reveste de caráter absoluto, de modo a indicar que a totalidade dos prédios deva estar conectada a serviços públicos como os de água e esgoto, por exemplo.

De modo salutar, a legislação estabeleceu duas balizas porcentuais bastante objetivas, ou seja, até 2033, deve haver a cobertura de 99% com relação aos serviços de abastecimento de água; e, até 2033, deve haver a cobertura de 90% com relação aos serviços de coleta e tratamento de esgoto. Como consequência, há alguma tolerância para o não atendimento pelo sistema público integrado (de 1% para água e 10% para esgoto).

O legislador fez, assim, ponderações – e opções –, uma vez que existirão circunstâncias nas quais a interligação às redes coletivas será técnica e/ou economicamente inviável. Seria excessiva exigência, além da submissão do interesse público ao particular, promover a implantação de caríssima infraestrutura para atendimento de um ou alguns imóveis numa região remota – lembrando sempre a maior complexidade de implantação e operação dos sistemas de esgotamento.

Em paralelo, o legislador permitiu a adoção de expedientes isolados, sendo que na ausência de redes públicas de saneamento básico serão admitidas soluções individuais de abastecimento de água e de afastamento e destinação final dos esgotos sanitários, observadas as normas editadas pela entidade reguladora e pelos órgãos responsáveis pelas políticas ambiental, sanitária e de recursos hídricos (art. 45, §1.º da Lei n.º 11.445/2007).

Fica claro que a Lei n.º 11.445/2007 permite que até 1% e 10% dos sistemas de água e esgoto, respectivamente, sejam compostos por soluções individuais (art. 11-B c/c art. 45, §1.º).

A relativização do conceito permite, atualmente, melhor organização dos recursos de modo a gerar o aproveitamento mais adequado do escasso numerário. Muitas localidades podem ser consideradas universalizadas, permitindo que outras regiões também recebam investimentos.

Sob a ótica do fortalecimento da ANA, em detrimento das agências reguladoras estaduais, a tendência de esvaziamento dessas últimas não se confirmou – como era calculável. O órgão federal e os órgãos estaduais – sobretudo os mais estruturados – passaram a cooperar na apuração da qualificação econômico-financeira, o que gerou uma nova perspectiva de aproveitamento do know-how já produzido. Notou-se, por consequência, o enriquecimento do relacionamento entre as agências, com a melhora da conformação existente nos vários níveis.

Noutra configuração, não se verificou evolução significativa do tratamento da prestação dos serviços nos municípios pequenos, deficitários e distantes das grandes aglomerações. Há pouca probabilidade de que os blocos de referência constituam solução definitiva para a questão. É provável que, em algum momento, o País tenha de desenvolver um estratagema legal para permitir o atendimento de zonas economicamente inviáveis e desgarradas de outras localidades.

É importante considerar que a Lei n.º 14.026/2020 não se afigurou como uma reforma ideal. Foi o texto possível em face dos inúmeros desafios sociais e políticos de sua época. Entretanto, deu um primeiro passo na reforma do setor, ao introduzir e perenizar o conceito de sustentabilidade do negócio. Nesse sentido, espera-se que os recentes decretos (11.599 e 11.598, ambos do dia 12 de julho passado) sejam efetivos para assegurar a implementação da norma. É forçoso continuar. “Navegar é preciso.”

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ADVOGADO, CONSULTOR AMBIENTAL, PROFESSOR DE DIREITO AMBIENTAL, É DOUTOR E MESTRE EM DIREITOS DIFUSOS E COLETIVOS, CONCENTRAÇÃO EM DIREITO AMBIENTAL (PUC/SP)

Opinião por Édis Milaré

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