Opinião|Peru – as lições de uma eleição


O povo revolta-se por se sentir otário, ao ver gente se dando bem roubando...

Por Marcelo Guterman

Agora é oficial: por uma margem de apenas 0,24% dos votos no segundo turno, o professor Pedro Castillo foi confirmado como o novo presidente no Peru.

Do ponto de vista de políticas econômicas, Castillo defende uma agenda da esquerda mais radical. O documento que descreve a natureza de seu partido, Peru Livre, não poderia ser mais claro e direto: “Peru Livre é uma organização de esquerda socialista (...) Para ser de esquerda, necessita-se abraçar a teoria marxista e, sob sua luz, interpretar todos os fenômenos que ocorrem na sociedade (...) Portanto, dizer-se de esquerda sem nos reconhecermos marxistas, leninistas (...) é simplesmente trabalhar a favor da direita com o decoro da mais alta hipocrisia”.

No seu programa econômico, o partido Peru Livre afirma coisas do tipo: “Necessitamos de um Estado interventor, planificador, empresário, protetor, inovador e regulador do mercado”; “o mito de que as empresas estatais são um fracasso é uma falácia”; “devem eliminar-se os contratos-lei, que blindam a perpetuidade da megacorrupção”; “a defesa do consumidor (...) deve estender-se à regulação dos preços”. Enfim, um programa de quem não tem vergonha de ser esquerda por inteiro.

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O curioso é que o Peru tem sido um dos alunos mais exemplares do continente no que se refere à lição de casa macroeconômica. Segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), nos últimos 20 anos a inflação média do Peru foi de 2,6% ao ano, ante 6,2% ao ano no Brasil. Ainda segundo o FMI, a dívida pública do Peru fechou 2020 em 35% do produto interno bruto (PIB), ante 99% do PIB no caso do Brasil. O resultado dessa disciplina se reflete nas taxas de juros pagas pelo governo para tomar dinheiro emprestado do mercado: enquanto o Brasil, hoje, paga 9% ao ano para títulos de dez anos de prazo, o governo do Peru precisa pagar apenas 5% ao ano. Não é à toa que o Peru é grau de investimento (BBB+), enquanto o Brasil é grau especulativo (BB-). Precisaríamos de cinco upgrades para atingir o nível do Peru.

Alguns poderiam dizer que tamanha disciplina e austeridade criou uma situação social pior do que a brasileira, mas não é isso o que os números mostram. O desemprego médio do Peru nos últimos 20 anos foi de 8,1%, ante 10,6% no Brasil. No início do governo de Alberto Fujimori, em 1990, a renda per capita do Peru (conceito PPP) era metade da brasileira. Hoje é de 85%. E a distribuição de renda melhorou nesse período: segundo dados do Banco Mundial, o índice de Gini do Peru era de 53 em 1997 (primeiro ano disponível), tendo melhorado para 42 em 2019. No mesmo período, o índice de Gini brasileiro evolui de 60 para 53. Ou seja, o Peru evoluiu 11 pontos na distribuição de renda, no mesmo período em que o Brasil evoluiu sete.

A questão intrigante é: por que, afinal, tendo cumprido todo o receituário preconizado pelo manual liberal de crescimento econômico, o povo peruano resolveu entregar o país a um político assumidamente marxista? A resposta mais fácil, a que não necessita de mais que dois segundos de reflexão, vai nos dizer que o povo peruano não foi beneficiado pela disciplina fiscal e pelo crescimento econômico. Grande parte da população teria ficado para trás e agora está pedindo a parte que lhe cabe nesse latifúndio.

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Essa é a resposta fácil. Mas vamos testá-la do ponto de vista lógico. Desde o fim do governo Fujimori, há 20 anos, sucederam-se governos pró-mercado (Alejandro Toledo, Alan García) e pró-Estado (Ollanta Humala). Nesse período, as condições de vida do povo peruano melhoraram, ainda que se possa criticar a velocidade ou a distribuição da melhora. Considerando a evolução da renda per capita e do índice de Gini, é obrigatório reconhecer que o mais pobre dos peruanos hoje está melhor que o mais pobre dos peruanos há 30 anos. Então, por que exatamente neste momento o povo peruano resolveu virar a mesa?

Talvez possamos encontrar uma pista no programa de Pedro Castillo para os cem primeiros dias de seu governo. O nome do programa nos diz algo: “Peru ao bicentenário sem corrupção”. Note que o nome não inclui distribuição de renda ou justiça social. Castillo podia ter escolhido qualquer palavra para denominar o seu programa emergencial. E escolheu “corrupção”.

Isso nos faz lembrar a conturbada situação política recente do Peru, com quatro presidentes se sucedendo após escândalos de corrupção ligados à Lava Jato peruana. A corrupção do Estado é somente a face suja do extrativismo das elites, um fenômeno mais amplo e que se traduz no capitalismo de laços, em que contatos no centro do poder valem mais do que uma boa ideia ou o trabalho duro. O povo não se revolta por ser pobre. O povo revolta-se por se sentir otário, ao ver gente se dando bem roubando, enquanto precisa trabalhar de sol a sol para ganhar o seu sustento.

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Castillo e Bolsonaro, apesar de serem diametralmente opostos em suas ideologias, são expressões do mesmo fenômeno: representaram um basta das pessoas à bandalheira institucionalizada. Se o remédio se mostrou pior do que a doença, as próximas eleições nos dois países dirão. Mas não deixa de ser um recado para as elites dirigentes dos dois países.

ENGENHEIRO

Agora é oficial: por uma margem de apenas 0,24% dos votos no segundo turno, o professor Pedro Castillo foi confirmado como o novo presidente no Peru.

Do ponto de vista de políticas econômicas, Castillo defende uma agenda da esquerda mais radical. O documento que descreve a natureza de seu partido, Peru Livre, não poderia ser mais claro e direto: “Peru Livre é uma organização de esquerda socialista (...) Para ser de esquerda, necessita-se abraçar a teoria marxista e, sob sua luz, interpretar todos os fenômenos que ocorrem na sociedade (...) Portanto, dizer-se de esquerda sem nos reconhecermos marxistas, leninistas (...) é simplesmente trabalhar a favor da direita com o decoro da mais alta hipocrisia”.

No seu programa econômico, o partido Peru Livre afirma coisas do tipo: “Necessitamos de um Estado interventor, planificador, empresário, protetor, inovador e regulador do mercado”; “o mito de que as empresas estatais são um fracasso é uma falácia”; “devem eliminar-se os contratos-lei, que blindam a perpetuidade da megacorrupção”; “a defesa do consumidor (...) deve estender-se à regulação dos preços”. Enfim, um programa de quem não tem vergonha de ser esquerda por inteiro.

O curioso é que o Peru tem sido um dos alunos mais exemplares do continente no que se refere à lição de casa macroeconômica. Segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), nos últimos 20 anos a inflação média do Peru foi de 2,6% ao ano, ante 6,2% ao ano no Brasil. Ainda segundo o FMI, a dívida pública do Peru fechou 2020 em 35% do produto interno bruto (PIB), ante 99% do PIB no caso do Brasil. O resultado dessa disciplina se reflete nas taxas de juros pagas pelo governo para tomar dinheiro emprestado do mercado: enquanto o Brasil, hoje, paga 9% ao ano para títulos de dez anos de prazo, o governo do Peru precisa pagar apenas 5% ao ano. Não é à toa que o Peru é grau de investimento (BBB+), enquanto o Brasil é grau especulativo (BB-). Precisaríamos de cinco upgrades para atingir o nível do Peru.

Alguns poderiam dizer que tamanha disciplina e austeridade criou uma situação social pior do que a brasileira, mas não é isso o que os números mostram. O desemprego médio do Peru nos últimos 20 anos foi de 8,1%, ante 10,6% no Brasil. No início do governo de Alberto Fujimori, em 1990, a renda per capita do Peru (conceito PPP) era metade da brasileira. Hoje é de 85%. E a distribuição de renda melhorou nesse período: segundo dados do Banco Mundial, o índice de Gini do Peru era de 53 em 1997 (primeiro ano disponível), tendo melhorado para 42 em 2019. No mesmo período, o índice de Gini brasileiro evolui de 60 para 53. Ou seja, o Peru evoluiu 11 pontos na distribuição de renda, no mesmo período em que o Brasil evoluiu sete.

A questão intrigante é: por que, afinal, tendo cumprido todo o receituário preconizado pelo manual liberal de crescimento econômico, o povo peruano resolveu entregar o país a um político assumidamente marxista? A resposta mais fácil, a que não necessita de mais que dois segundos de reflexão, vai nos dizer que o povo peruano não foi beneficiado pela disciplina fiscal e pelo crescimento econômico. Grande parte da população teria ficado para trás e agora está pedindo a parte que lhe cabe nesse latifúndio.

Essa é a resposta fácil. Mas vamos testá-la do ponto de vista lógico. Desde o fim do governo Fujimori, há 20 anos, sucederam-se governos pró-mercado (Alejandro Toledo, Alan García) e pró-Estado (Ollanta Humala). Nesse período, as condições de vida do povo peruano melhoraram, ainda que se possa criticar a velocidade ou a distribuição da melhora. Considerando a evolução da renda per capita e do índice de Gini, é obrigatório reconhecer que o mais pobre dos peruanos hoje está melhor que o mais pobre dos peruanos há 30 anos. Então, por que exatamente neste momento o povo peruano resolveu virar a mesa?

Talvez possamos encontrar uma pista no programa de Pedro Castillo para os cem primeiros dias de seu governo. O nome do programa nos diz algo: “Peru ao bicentenário sem corrupção”. Note que o nome não inclui distribuição de renda ou justiça social. Castillo podia ter escolhido qualquer palavra para denominar o seu programa emergencial. E escolheu “corrupção”.

Isso nos faz lembrar a conturbada situação política recente do Peru, com quatro presidentes se sucedendo após escândalos de corrupção ligados à Lava Jato peruana. A corrupção do Estado é somente a face suja do extrativismo das elites, um fenômeno mais amplo e que se traduz no capitalismo de laços, em que contatos no centro do poder valem mais do que uma boa ideia ou o trabalho duro. O povo não se revolta por ser pobre. O povo revolta-se por se sentir otário, ao ver gente se dando bem roubando, enquanto precisa trabalhar de sol a sol para ganhar o seu sustento.

Castillo e Bolsonaro, apesar de serem diametralmente opostos em suas ideologias, são expressões do mesmo fenômeno: representaram um basta das pessoas à bandalheira institucionalizada. Se o remédio se mostrou pior do que a doença, as próximas eleições nos dois países dirão. Mas não deixa de ser um recado para as elites dirigentes dos dois países.

ENGENHEIRO

Agora é oficial: por uma margem de apenas 0,24% dos votos no segundo turno, o professor Pedro Castillo foi confirmado como o novo presidente no Peru.

Do ponto de vista de políticas econômicas, Castillo defende uma agenda da esquerda mais radical. O documento que descreve a natureza de seu partido, Peru Livre, não poderia ser mais claro e direto: “Peru Livre é uma organização de esquerda socialista (...) Para ser de esquerda, necessita-se abraçar a teoria marxista e, sob sua luz, interpretar todos os fenômenos que ocorrem na sociedade (...) Portanto, dizer-se de esquerda sem nos reconhecermos marxistas, leninistas (...) é simplesmente trabalhar a favor da direita com o decoro da mais alta hipocrisia”.

No seu programa econômico, o partido Peru Livre afirma coisas do tipo: “Necessitamos de um Estado interventor, planificador, empresário, protetor, inovador e regulador do mercado”; “o mito de que as empresas estatais são um fracasso é uma falácia”; “devem eliminar-se os contratos-lei, que blindam a perpetuidade da megacorrupção”; “a defesa do consumidor (...) deve estender-se à regulação dos preços”. Enfim, um programa de quem não tem vergonha de ser esquerda por inteiro.

O curioso é que o Peru tem sido um dos alunos mais exemplares do continente no que se refere à lição de casa macroeconômica. Segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), nos últimos 20 anos a inflação média do Peru foi de 2,6% ao ano, ante 6,2% ao ano no Brasil. Ainda segundo o FMI, a dívida pública do Peru fechou 2020 em 35% do produto interno bruto (PIB), ante 99% do PIB no caso do Brasil. O resultado dessa disciplina se reflete nas taxas de juros pagas pelo governo para tomar dinheiro emprestado do mercado: enquanto o Brasil, hoje, paga 9% ao ano para títulos de dez anos de prazo, o governo do Peru precisa pagar apenas 5% ao ano. Não é à toa que o Peru é grau de investimento (BBB+), enquanto o Brasil é grau especulativo (BB-). Precisaríamos de cinco upgrades para atingir o nível do Peru.

Alguns poderiam dizer que tamanha disciplina e austeridade criou uma situação social pior do que a brasileira, mas não é isso o que os números mostram. O desemprego médio do Peru nos últimos 20 anos foi de 8,1%, ante 10,6% no Brasil. No início do governo de Alberto Fujimori, em 1990, a renda per capita do Peru (conceito PPP) era metade da brasileira. Hoje é de 85%. E a distribuição de renda melhorou nesse período: segundo dados do Banco Mundial, o índice de Gini do Peru era de 53 em 1997 (primeiro ano disponível), tendo melhorado para 42 em 2019. No mesmo período, o índice de Gini brasileiro evolui de 60 para 53. Ou seja, o Peru evoluiu 11 pontos na distribuição de renda, no mesmo período em que o Brasil evoluiu sete.

A questão intrigante é: por que, afinal, tendo cumprido todo o receituário preconizado pelo manual liberal de crescimento econômico, o povo peruano resolveu entregar o país a um político assumidamente marxista? A resposta mais fácil, a que não necessita de mais que dois segundos de reflexão, vai nos dizer que o povo peruano não foi beneficiado pela disciplina fiscal e pelo crescimento econômico. Grande parte da população teria ficado para trás e agora está pedindo a parte que lhe cabe nesse latifúndio.

Essa é a resposta fácil. Mas vamos testá-la do ponto de vista lógico. Desde o fim do governo Fujimori, há 20 anos, sucederam-se governos pró-mercado (Alejandro Toledo, Alan García) e pró-Estado (Ollanta Humala). Nesse período, as condições de vida do povo peruano melhoraram, ainda que se possa criticar a velocidade ou a distribuição da melhora. Considerando a evolução da renda per capita e do índice de Gini, é obrigatório reconhecer que o mais pobre dos peruanos hoje está melhor que o mais pobre dos peruanos há 30 anos. Então, por que exatamente neste momento o povo peruano resolveu virar a mesa?

Talvez possamos encontrar uma pista no programa de Pedro Castillo para os cem primeiros dias de seu governo. O nome do programa nos diz algo: “Peru ao bicentenário sem corrupção”. Note que o nome não inclui distribuição de renda ou justiça social. Castillo podia ter escolhido qualquer palavra para denominar o seu programa emergencial. E escolheu “corrupção”.

Isso nos faz lembrar a conturbada situação política recente do Peru, com quatro presidentes se sucedendo após escândalos de corrupção ligados à Lava Jato peruana. A corrupção do Estado é somente a face suja do extrativismo das elites, um fenômeno mais amplo e que se traduz no capitalismo de laços, em que contatos no centro do poder valem mais do que uma boa ideia ou o trabalho duro. O povo não se revolta por ser pobre. O povo revolta-se por se sentir otário, ao ver gente se dando bem roubando, enquanto precisa trabalhar de sol a sol para ganhar o seu sustento.

Castillo e Bolsonaro, apesar de serem diametralmente opostos em suas ideologias, são expressões do mesmo fenômeno: representaram um basta das pessoas à bandalheira institucionalizada. Se o remédio se mostrou pior do que a doença, as próximas eleições nos dois países dirão. Mas não deixa de ser um recado para as elites dirigentes dos dois países.

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