Opinião|Projetos de universalização de água e esgoto precisam se preocupar com estrutura tarifária


Não há outro caminho fora da análise, do estudo aprofundado e do debate público de cada realidade

Por Geraldo Sant’Anna de Andrade Júnior

Passados quatros anos após a edição da Lei Federal n.º 14.026, de 15 de julho de 2020, como alcançar o objetivo da universalização dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, garantindo acessibilidade pelas pessoas e sustentabilidade econômico-financeira dos serviços, ainda é uma discussão não acabada. Sem prejuízo da importância de outras questões que orbitam nessa reflexão, a forma como o custo tarifário da ampliação do acesso aos serviços será cobrado parece ser uma justa preocupação, ainda que sua análise tenha parecido não ressonante para as soluções que estão sendo implementadas. Afinal, não haverá serviço ampliado e mantido sem operação, manutenção ou implantação das infraestruturas necessárias. Mas também não haverá como utilizar o serviço se esse não puder ser pago. Antes de aprofundar a discussão e das primeiras “pedradas” as quais o texto pode fazer jus, é importante reafirmar o óbvio: a ampliação do acesso aos serviços de água e esgoto por todos os brasileiros é uma diretriz da qual a entrega da política pública não deve fugir, seja qual for a escolha adotada.

A preocupação levantada endereça a discussão para a política tarifária dos serviços. As tarifas constituem uma das formas legais de remuneração dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário no Brasil, conforme a previsão contida na legislação vigente. Nesse sentido, o bolso dos usuários é a fonte primária de financiamento desses serviços. Além da operação e manutenção, essa fonte pode pagar ou lastrear a captação de recursos adicionais em face da necessidade de investimentos nas infraestruturas de água e esgoto. Nessa dinâmica, não é possível separar ou tratar de forma indiferente ou estanque as questões de investimentos e de preço dos serviços. Elas estarão intimamente relacionadas em qualquer tipo de projeto, público ou privado, adotado para a universalização dos serviços.

A forma de cobrança das tarifas de água e esgoto é usualmente materializada na estrutura tarifária. Trata-se de uma tabela de preços aplicáveis por grupos ou segmentos de consumidores, intervalos de consumo, regiões, nível de renda, etc. Ela deve espelhar a forma como a receita requerida para operar, ampliar e manter um serviço deverá ser auferida numa determinada área. Para o alcance desse objetivo, não seria algo exorbitante postular assertividade e contemporaneidade quanto à segmentação e identificação dos usos e interações atuais dos consumidores em relação aos serviços. É necessário considerar que os usuários se diferenciam em vários aspectos que podem ser alterados ao longo do tempo. Nem todos os clientes residem ou irão residir próximo a uma linha de adutora de água ou em uma área plana de um determinado município. Esses mesmos consumidores também possuem níveis variados de capacidade de pagamento ao longo de toda a sua relação de utilização das infraestruturas.

continua após a publicidade

Para além da percepção como mera tabela de preços diversificados, o desenho de uma estrutura tarifária de abastecimento de água e de esgotamento sanitário é direcionado para a perseguição de objetivos de política pública, tais como equidade, eficiência econômica, sustentabilidade econômico-financeira, etc. Em geral, ensinamentos da literatura permitem uma compreensão de que, por trás de cada valor tabelado, deve existir uma lógica orientada para que os preços sejam justos e consigam ser pagos por todos os usuários, de modo a se recuperar o custo necessário e eficiente para se prestar serviços ambientalmente sustentáveis. O alcance harmônico dessas diretrizes envolve estudos, acompanhamento e análises lastreadas por um delicado e iterativo balanceamento desses objetivos frequentemente conflitantes.

No Brasil contemporâneo à reforma legal do saneamento promovida em 2020, onde cerca de 32,1 milhões de pessoas ainda não são atendidas com abastecimento de água e 90,3 milhões não têm esgotamento sanitário, boa parte das estruturas tarifárias atuais teve a sua concepção datada entre as décadas de 1970 e de 1980, sob as diretrizes estabelecidas pelo Decreto Federal n.º 82.587, de 6 de novembro de 1978. Trata-se de um período de quase meio século decorrido, e de uma clara ausência da função regulatória dos serviços de saneamento tal como prevista na legislação atual do setor. Para se ter ideia desse distanciamento, a atuação das agências de regulação no setor e as discussões relativas à análise de impacto regulatório de normativos começam a ser materializadas quase 30 anos depois.

De lá para cá, o Brasil passou por significativas transformações: crescimento das cidades, perfil de renda das pessoas, composição das famílias, condições de moradia, rearranjos e novas atividades econômicas. Esses aspectos podem fornecer várias evidências de alterações no perfil de interação da população com os serviços de água e esgoto nos últimos 50 anos. Essas dinâmicas deveriam constituir estímulo para o monitoramento e a atualização das tabelas tarifárias, por meio de estudo e avaliação contínua, de modo que o descolamento temporal de suas premissas fosse mitigado e não contribuísse para um retardamento do alcance da universalização dos serviços a todos os brasileiros.

continua após a publicidade

Dessa forma, além da introdução de práticas de tarifa social, algumas reformas específicas e localizadas têm sido diligenciadas como, por exemplo, nos Estados de Minas Gerais (2016 e 2017) e São Paulo (2021) e no Distrito Federal (2019). Essas iniciativas vêm revisando um panorama geral de tabelas vigentes caracterizadas por: (a) uma hegemonia de tarifas escalonadas em blocos crescentes de consumo; (b) uma cobrança usual de um consumo mínimo faturável de 10 metros cúbicos; (c) uma segmentação de consumidores classificada em pelo menos quatro grupos (residencial, comercial, industrial e pública); (d) e uma precificação do serviço de esgoto vinculada a uma proporção modal entre 80% e 100% do valor da conta de abastecimento de água; entre outras. Em um contexto de aumento do número de projetos de universalização do saneamento, uma reflexão natural e importante pode ser questionar o nível de adequação ou efetividade dessas tabelas em relação às metas de ampliação do acesso aos serviços.

Avaliações sobre as arquiteturas tarifárias vigentes têm apontado disfunções no alcance dos objetivos de política pública perseguidos através da precificação dos serviços de água e esgoto. Entre esses problemas podem ser destacados: (a) o direcionamento pouco efetivo de subsídios tarifários às famílias pobres; (b) as limitações dos programas atuais de tarifa social; (c) a baixa efetividade de incentivos ao uso racional da água; (d) a incapacidade de geração de recursos necessários para a realização de investimentos, etc. Não obstante, essas tabelas tarifárias têm sido mantidas pelos projetos implementados no período posterior à edição da Lei Federal n.º 14.026/2020, a exemplo dos Estados do Rio de Janeiro e de Alagoas. Os impactos dessas escolhas devem ser analisados e discutidos ex-ante pelos projetos, de forma aprofundada e transparente, para evitar um comprometimento futuro do alcance da universalização dos serviços ao longo do período planejado.

A importância e o caráter instrumental para a sustentabilidade e para a política pública setorial, bem como os apontamentos sobre o anacronismo e as disfuncionalidades das tabelas vigentes, estimulam um olhar cuidadoso para a estrutura tarifária dos serviços de água e esgoto. É nevrálgico para os projetos de universalização a quantificação dos recursos necessários para essa entrega. Todavia, parece igualmente importante saber como deverão ser pagos esses montantes: se de uma forma contemporânea, transparente e sensível às necessidades e interações das pessoas com os serviços ou se de uma forma anacrônica de quase meio século. Para isso, não há outro caminho fora da análise, do estudo aprofundado e do debate público de cada realidade. A indiferença ao tema das estruturas tarifárias pode comprometer a efetividade dos projetos de universalização e produzir uma percepção negativa da população quanto aos seus resultados. Assim, o olhar regulatório sobre essa questão precisa estar efetivamente próximo da estruturação e gestão desses projetos.

continua após a publicidade

*

GRADUADO EM ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS PELA UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO (UPE), É ESPECIALISTA EM PPP E CONCESSÕES PELA ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO, COM MÓDULO INTERNACIONAL PELA LONDON SCHOOL OF ECONOMICS (LSE)

Passados quatros anos após a edição da Lei Federal n.º 14.026, de 15 de julho de 2020, como alcançar o objetivo da universalização dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, garantindo acessibilidade pelas pessoas e sustentabilidade econômico-financeira dos serviços, ainda é uma discussão não acabada. Sem prejuízo da importância de outras questões que orbitam nessa reflexão, a forma como o custo tarifário da ampliação do acesso aos serviços será cobrado parece ser uma justa preocupação, ainda que sua análise tenha parecido não ressonante para as soluções que estão sendo implementadas. Afinal, não haverá serviço ampliado e mantido sem operação, manutenção ou implantação das infraestruturas necessárias. Mas também não haverá como utilizar o serviço se esse não puder ser pago. Antes de aprofundar a discussão e das primeiras “pedradas” as quais o texto pode fazer jus, é importante reafirmar o óbvio: a ampliação do acesso aos serviços de água e esgoto por todos os brasileiros é uma diretriz da qual a entrega da política pública não deve fugir, seja qual for a escolha adotada.

A preocupação levantada endereça a discussão para a política tarifária dos serviços. As tarifas constituem uma das formas legais de remuneração dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário no Brasil, conforme a previsão contida na legislação vigente. Nesse sentido, o bolso dos usuários é a fonte primária de financiamento desses serviços. Além da operação e manutenção, essa fonte pode pagar ou lastrear a captação de recursos adicionais em face da necessidade de investimentos nas infraestruturas de água e esgoto. Nessa dinâmica, não é possível separar ou tratar de forma indiferente ou estanque as questões de investimentos e de preço dos serviços. Elas estarão intimamente relacionadas em qualquer tipo de projeto, público ou privado, adotado para a universalização dos serviços.

A forma de cobrança das tarifas de água e esgoto é usualmente materializada na estrutura tarifária. Trata-se de uma tabela de preços aplicáveis por grupos ou segmentos de consumidores, intervalos de consumo, regiões, nível de renda, etc. Ela deve espelhar a forma como a receita requerida para operar, ampliar e manter um serviço deverá ser auferida numa determinada área. Para o alcance desse objetivo, não seria algo exorbitante postular assertividade e contemporaneidade quanto à segmentação e identificação dos usos e interações atuais dos consumidores em relação aos serviços. É necessário considerar que os usuários se diferenciam em vários aspectos que podem ser alterados ao longo do tempo. Nem todos os clientes residem ou irão residir próximo a uma linha de adutora de água ou em uma área plana de um determinado município. Esses mesmos consumidores também possuem níveis variados de capacidade de pagamento ao longo de toda a sua relação de utilização das infraestruturas.

Para além da percepção como mera tabela de preços diversificados, o desenho de uma estrutura tarifária de abastecimento de água e de esgotamento sanitário é direcionado para a perseguição de objetivos de política pública, tais como equidade, eficiência econômica, sustentabilidade econômico-financeira, etc. Em geral, ensinamentos da literatura permitem uma compreensão de que, por trás de cada valor tabelado, deve existir uma lógica orientada para que os preços sejam justos e consigam ser pagos por todos os usuários, de modo a se recuperar o custo necessário e eficiente para se prestar serviços ambientalmente sustentáveis. O alcance harmônico dessas diretrizes envolve estudos, acompanhamento e análises lastreadas por um delicado e iterativo balanceamento desses objetivos frequentemente conflitantes.

No Brasil contemporâneo à reforma legal do saneamento promovida em 2020, onde cerca de 32,1 milhões de pessoas ainda não são atendidas com abastecimento de água e 90,3 milhões não têm esgotamento sanitário, boa parte das estruturas tarifárias atuais teve a sua concepção datada entre as décadas de 1970 e de 1980, sob as diretrizes estabelecidas pelo Decreto Federal n.º 82.587, de 6 de novembro de 1978. Trata-se de um período de quase meio século decorrido, e de uma clara ausência da função regulatória dos serviços de saneamento tal como prevista na legislação atual do setor. Para se ter ideia desse distanciamento, a atuação das agências de regulação no setor e as discussões relativas à análise de impacto regulatório de normativos começam a ser materializadas quase 30 anos depois.

De lá para cá, o Brasil passou por significativas transformações: crescimento das cidades, perfil de renda das pessoas, composição das famílias, condições de moradia, rearranjos e novas atividades econômicas. Esses aspectos podem fornecer várias evidências de alterações no perfil de interação da população com os serviços de água e esgoto nos últimos 50 anos. Essas dinâmicas deveriam constituir estímulo para o monitoramento e a atualização das tabelas tarifárias, por meio de estudo e avaliação contínua, de modo que o descolamento temporal de suas premissas fosse mitigado e não contribuísse para um retardamento do alcance da universalização dos serviços a todos os brasileiros.

Dessa forma, além da introdução de práticas de tarifa social, algumas reformas específicas e localizadas têm sido diligenciadas como, por exemplo, nos Estados de Minas Gerais (2016 e 2017) e São Paulo (2021) e no Distrito Federal (2019). Essas iniciativas vêm revisando um panorama geral de tabelas vigentes caracterizadas por: (a) uma hegemonia de tarifas escalonadas em blocos crescentes de consumo; (b) uma cobrança usual de um consumo mínimo faturável de 10 metros cúbicos; (c) uma segmentação de consumidores classificada em pelo menos quatro grupos (residencial, comercial, industrial e pública); (d) e uma precificação do serviço de esgoto vinculada a uma proporção modal entre 80% e 100% do valor da conta de abastecimento de água; entre outras. Em um contexto de aumento do número de projetos de universalização do saneamento, uma reflexão natural e importante pode ser questionar o nível de adequação ou efetividade dessas tabelas em relação às metas de ampliação do acesso aos serviços.

Avaliações sobre as arquiteturas tarifárias vigentes têm apontado disfunções no alcance dos objetivos de política pública perseguidos através da precificação dos serviços de água e esgoto. Entre esses problemas podem ser destacados: (a) o direcionamento pouco efetivo de subsídios tarifários às famílias pobres; (b) as limitações dos programas atuais de tarifa social; (c) a baixa efetividade de incentivos ao uso racional da água; (d) a incapacidade de geração de recursos necessários para a realização de investimentos, etc. Não obstante, essas tabelas tarifárias têm sido mantidas pelos projetos implementados no período posterior à edição da Lei Federal n.º 14.026/2020, a exemplo dos Estados do Rio de Janeiro e de Alagoas. Os impactos dessas escolhas devem ser analisados e discutidos ex-ante pelos projetos, de forma aprofundada e transparente, para evitar um comprometimento futuro do alcance da universalização dos serviços ao longo do período planejado.

A importância e o caráter instrumental para a sustentabilidade e para a política pública setorial, bem como os apontamentos sobre o anacronismo e as disfuncionalidades das tabelas vigentes, estimulam um olhar cuidadoso para a estrutura tarifária dos serviços de água e esgoto. É nevrálgico para os projetos de universalização a quantificação dos recursos necessários para essa entrega. Todavia, parece igualmente importante saber como deverão ser pagos esses montantes: se de uma forma contemporânea, transparente e sensível às necessidades e interações das pessoas com os serviços ou se de uma forma anacrônica de quase meio século. Para isso, não há outro caminho fora da análise, do estudo aprofundado e do debate público de cada realidade. A indiferença ao tema das estruturas tarifárias pode comprometer a efetividade dos projetos de universalização e produzir uma percepção negativa da população quanto aos seus resultados. Assim, o olhar regulatório sobre essa questão precisa estar efetivamente próximo da estruturação e gestão desses projetos.

*

GRADUADO EM ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS PELA UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO (UPE), É ESPECIALISTA EM PPP E CONCESSÕES PELA ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO, COM MÓDULO INTERNACIONAL PELA LONDON SCHOOL OF ECONOMICS (LSE)

Passados quatros anos após a edição da Lei Federal n.º 14.026, de 15 de julho de 2020, como alcançar o objetivo da universalização dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, garantindo acessibilidade pelas pessoas e sustentabilidade econômico-financeira dos serviços, ainda é uma discussão não acabada. Sem prejuízo da importância de outras questões que orbitam nessa reflexão, a forma como o custo tarifário da ampliação do acesso aos serviços será cobrado parece ser uma justa preocupação, ainda que sua análise tenha parecido não ressonante para as soluções que estão sendo implementadas. Afinal, não haverá serviço ampliado e mantido sem operação, manutenção ou implantação das infraestruturas necessárias. Mas também não haverá como utilizar o serviço se esse não puder ser pago. Antes de aprofundar a discussão e das primeiras “pedradas” as quais o texto pode fazer jus, é importante reafirmar o óbvio: a ampliação do acesso aos serviços de água e esgoto por todos os brasileiros é uma diretriz da qual a entrega da política pública não deve fugir, seja qual for a escolha adotada.

A preocupação levantada endereça a discussão para a política tarifária dos serviços. As tarifas constituem uma das formas legais de remuneração dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário no Brasil, conforme a previsão contida na legislação vigente. Nesse sentido, o bolso dos usuários é a fonte primária de financiamento desses serviços. Além da operação e manutenção, essa fonte pode pagar ou lastrear a captação de recursos adicionais em face da necessidade de investimentos nas infraestruturas de água e esgoto. Nessa dinâmica, não é possível separar ou tratar de forma indiferente ou estanque as questões de investimentos e de preço dos serviços. Elas estarão intimamente relacionadas em qualquer tipo de projeto, público ou privado, adotado para a universalização dos serviços.

A forma de cobrança das tarifas de água e esgoto é usualmente materializada na estrutura tarifária. Trata-se de uma tabela de preços aplicáveis por grupos ou segmentos de consumidores, intervalos de consumo, regiões, nível de renda, etc. Ela deve espelhar a forma como a receita requerida para operar, ampliar e manter um serviço deverá ser auferida numa determinada área. Para o alcance desse objetivo, não seria algo exorbitante postular assertividade e contemporaneidade quanto à segmentação e identificação dos usos e interações atuais dos consumidores em relação aos serviços. É necessário considerar que os usuários se diferenciam em vários aspectos que podem ser alterados ao longo do tempo. Nem todos os clientes residem ou irão residir próximo a uma linha de adutora de água ou em uma área plana de um determinado município. Esses mesmos consumidores também possuem níveis variados de capacidade de pagamento ao longo de toda a sua relação de utilização das infraestruturas.

Para além da percepção como mera tabela de preços diversificados, o desenho de uma estrutura tarifária de abastecimento de água e de esgotamento sanitário é direcionado para a perseguição de objetivos de política pública, tais como equidade, eficiência econômica, sustentabilidade econômico-financeira, etc. Em geral, ensinamentos da literatura permitem uma compreensão de que, por trás de cada valor tabelado, deve existir uma lógica orientada para que os preços sejam justos e consigam ser pagos por todos os usuários, de modo a se recuperar o custo necessário e eficiente para se prestar serviços ambientalmente sustentáveis. O alcance harmônico dessas diretrizes envolve estudos, acompanhamento e análises lastreadas por um delicado e iterativo balanceamento desses objetivos frequentemente conflitantes.

No Brasil contemporâneo à reforma legal do saneamento promovida em 2020, onde cerca de 32,1 milhões de pessoas ainda não são atendidas com abastecimento de água e 90,3 milhões não têm esgotamento sanitário, boa parte das estruturas tarifárias atuais teve a sua concepção datada entre as décadas de 1970 e de 1980, sob as diretrizes estabelecidas pelo Decreto Federal n.º 82.587, de 6 de novembro de 1978. Trata-se de um período de quase meio século decorrido, e de uma clara ausência da função regulatória dos serviços de saneamento tal como prevista na legislação atual do setor. Para se ter ideia desse distanciamento, a atuação das agências de regulação no setor e as discussões relativas à análise de impacto regulatório de normativos começam a ser materializadas quase 30 anos depois.

De lá para cá, o Brasil passou por significativas transformações: crescimento das cidades, perfil de renda das pessoas, composição das famílias, condições de moradia, rearranjos e novas atividades econômicas. Esses aspectos podem fornecer várias evidências de alterações no perfil de interação da população com os serviços de água e esgoto nos últimos 50 anos. Essas dinâmicas deveriam constituir estímulo para o monitoramento e a atualização das tabelas tarifárias, por meio de estudo e avaliação contínua, de modo que o descolamento temporal de suas premissas fosse mitigado e não contribuísse para um retardamento do alcance da universalização dos serviços a todos os brasileiros.

Dessa forma, além da introdução de práticas de tarifa social, algumas reformas específicas e localizadas têm sido diligenciadas como, por exemplo, nos Estados de Minas Gerais (2016 e 2017) e São Paulo (2021) e no Distrito Federal (2019). Essas iniciativas vêm revisando um panorama geral de tabelas vigentes caracterizadas por: (a) uma hegemonia de tarifas escalonadas em blocos crescentes de consumo; (b) uma cobrança usual de um consumo mínimo faturável de 10 metros cúbicos; (c) uma segmentação de consumidores classificada em pelo menos quatro grupos (residencial, comercial, industrial e pública); (d) e uma precificação do serviço de esgoto vinculada a uma proporção modal entre 80% e 100% do valor da conta de abastecimento de água; entre outras. Em um contexto de aumento do número de projetos de universalização do saneamento, uma reflexão natural e importante pode ser questionar o nível de adequação ou efetividade dessas tabelas em relação às metas de ampliação do acesso aos serviços.

Avaliações sobre as arquiteturas tarifárias vigentes têm apontado disfunções no alcance dos objetivos de política pública perseguidos através da precificação dos serviços de água e esgoto. Entre esses problemas podem ser destacados: (a) o direcionamento pouco efetivo de subsídios tarifários às famílias pobres; (b) as limitações dos programas atuais de tarifa social; (c) a baixa efetividade de incentivos ao uso racional da água; (d) a incapacidade de geração de recursos necessários para a realização de investimentos, etc. Não obstante, essas tabelas tarifárias têm sido mantidas pelos projetos implementados no período posterior à edição da Lei Federal n.º 14.026/2020, a exemplo dos Estados do Rio de Janeiro e de Alagoas. Os impactos dessas escolhas devem ser analisados e discutidos ex-ante pelos projetos, de forma aprofundada e transparente, para evitar um comprometimento futuro do alcance da universalização dos serviços ao longo do período planejado.

A importância e o caráter instrumental para a sustentabilidade e para a política pública setorial, bem como os apontamentos sobre o anacronismo e as disfuncionalidades das tabelas vigentes, estimulam um olhar cuidadoso para a estrutura tarifária dos serviços de água e esgoto. É nevrálgico para os projetos de universalização a quantificação dos recursos necessários para essa entrega. Todavia, parece igualmente importante saber como deverão ser pagos esses montantes: se de uma forma contemporânea, transparente e sensível às necessidades e interações das pessoas com os serviços ou se de uma forma anacrônica de quase meio século. Para isso, não há outro caminho fora da análise, do estudo aprofundado e do debate público de cada realidade. A indiferença ao tema das estruturas tarifárias pode comprometer a efetividade dos projetos de universalização e produzir uma percepção negativa da população quanto aos seus resultados. Assim, o olhar regulatório sobre essa questão precisa estar efetivamente próximo da estruturação e gestão desses projetos.

*

GRADUADO EM ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS PELA UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO (UPE), É ESPECIALISTA EM PPP E CONCESSÕES PELA ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO, COM MÓDULO INTERNACIONAL PELA LONDON SCHOOL OF ECONOMICS (LSE)

Tudo Sobre
Opinião por Geraldo Sant’Anna de Andrade Júnior

Graduado em Administração de Empresas pela Universidade de Pernambuco (UPE), é especialista em PPP e Concessões pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, com módulo internacional pela London School of Economics (LSE)

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.