Em dezembro de 2019, publiquei na Revista Questão de Ciência, se não o primeiro, um dos primeiros artigos críticos à constelação familiar (CF) a sair no Brasil. Parte da missão da revista, vinculada ao Instituto Questão de Ciência, é alertar o público para terapias, tratamentos e promessas de cura que carecem de base científica – ainda mais quando oferecidas (e financiadas) pelo poder público. A constelação havia sido incorporada ao Plano Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) do Ministério da Saúde em março de 2018, durante o governo de Michel Temer.
Criada pelo ex-padre católico alemão Bert Hellinger, a constelação familiar é um proposta psicoterapêutica que existe no espaço de confluência entre a religiosidade espiritualista, que prega a possibilidade de interação entre os vivos e os mortos e a existência de forças espirituais, e as interpretações pseudocientíficas da física quântica, que forçam uma confusão deliberada entre conceitos científicos que têm definição técnica precisa (“energia”, “frequência”, “campo”) e o uso das mesmas palavras em contextos menos específicos ou como metáfora para emoção, motivação, etc. Às vezes, proponentes da CF também lançam mão de termos e ideias emprestados da parapsicologia.
Esse esboço conceitual já deveria bastar para produzir alarme em qualquer um que se preocupe com o embasamento científico e a qualidade dos serviços de saúde mental oferecidos à população. No contexto do serviço público, o arcabouço da CF suscita ainda questões importantes ligadas à laicidade do Estado e ao uso racional de recursos escassos. A constelação familiar é um coquetel de crenças sobrenaturais e pseudociência que jamais deveria ter recebido apoio ou acolhimento no sistema público de saúde.
Ao aprofundar minha pesquisa, no entanto, encontrei problemas ainda mais graves, porque capazes de causar danos profundos e imediatos ao paciente ou “constelado”: Hellinger incutiu na CF uma ideologia rígida de “ordem” familiar, uma ordem hierárquica, patriarcal, em que a harmonia depende de um ajuste de contas em que o homem – o pai, o marido – é sempre o credor final. Mesmo casos de estupro e incesto são interpretados como instâncias em que o macho hierarca apenas cobra o que lhe é “devido”, de acordo com as leis espirituais da harmonia familiar “descobertas” por Hellinger.
Não é preciso muita imaginação para especular sobre o impacto de se impor essa visão de mundo a vítimas de abuso, ainda mais sob o manto de “processo terapêutico”. O título de meu artigo de 2019, Constelação familiar: machismo às custas do SUS, reflete essa perplexidade, que só cresceu com a informação de que, antes mesmo de chegar ao sistema de saúde, a CF já havia penetrado o Judiciário, sendo usada como ferramenta de “resolução de conflitos” em questões como divórcio, guarda de filhos e violência doméstica.
O uso da constelação familiar na Justiça vem, merecidamente, ganhando contornos de escândalo. Encontram-se na imprensa relatos de vítimas traumatizadas por processos de CF, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania tomou conhecimento do assunto, e o Conselho Nacional de Justiça mostra-se inclinado a, se não proibir de vez, ao menos disciplinar duramente o uso da CF como ferramenta jurídica. Já no Ministério da Saúde, nada se move: é como se a dor das vítimas e a preocupação do Judiciário e da pasta dos Direitos Humanos não lhe dissessem respeito. A constelação familiar e seu machismo crasso seguem incorporados ao SUS.
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JORNALISTA, EDITOR-CHEFE DA ‘REVISTA QUESTÃO DE CIÊNCIA’, É AUTOR DE ‘O LIVRO DOS MILAGRES’ (EDITORA DA UNESP) E ‘NEGACIONISMO’ (EDITORA DE CULTURA), E COAUTOR DE ‘PURA PICARETAGEM’ (LEYA), ‘CIÊNCIA NO COTIDIANO’ (EDITORA CONTEXTO), OBRA GANHADORA DO PRÊMIO JABUTI, ‘CONTRA A REALIDADE’ (PAPIRUS 7 MARES) E ‘QUE BOBAGEM!’ (EDITORA CONTEXTO)