Opinião|Qual o sentido de Ocidente para o Brasil?


Hoje, o sentido de Ocidente é muito diferente daquele descrito por Golbery do Couto e Silva no início dos anos 50

Por Oscar Medeiros Filho
Atualização:

O retorno da competição geopolítica observado especialmente após a crise financeira global de 2007 tem provocado a reconfiguração do tabuleiro internacional e realinhamentos estratégicos. Isso se mostra especialmente importante para o Brasil, por sua estatura geopolítica, sua condição de global player e pelo fato de ter nas duas maiores potências globais – China e EUA – seus principais parceiros estratégicos. Por sua condição histórica, geográfica e cultural, o Brasil é visto hoje como um elo entre dois blocos regionais: o Ocidente e o Sul Global. Sob tal condição, o País desfruta de um inegável capital geopolítico, o que lhe proporciona capacidade de barganha diante das grandes potências.

Entretanto, a eclosão dos diversos incidentes geopolíticos nos últimos anos, especialmente a guerra na Ucrânia e o conflito Israel-Hamas, pode vir a forçar o Brasil a tomar partido em relação a um dos lados, retirando do País a confortável e desejável posição de equidistância entre os candidatos a hegemon. Assim, diante do quadro de ampliação das pressões de ambos os lados, o Brasil poderá ver-se sob um dilema duplo: se vai ter de se alinhar a algum destes blocos e, em caso positivo, a qual deles.

Considerando tal cenário, é necessário um amplo debate nacional sobre quem, afinal, somos. Neste artigo, vou me deter especificamente sobre o sentido de Ocidente para o Brasil. Para tanto, sugiro uma abordagem crítica à obra de um dos personagens mais influentes no cenário brasileiro da segunda metade do século 20 e que tinha na ideia da lealdade ao Ocidente um elemento central: Golbery do Couto e Silva.

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Escrevendo no início dos anos 1950, Golbery ajudou a formular a doutrina da Escola Superior de Guerra, num contexto que, para ele, era marcado pela ameaça do “comunismo oriental” à “democracia ocidental”. Segundo Golbery, o sentido de Ocidente para o Brasil ia além de fatores geográficos (um país atlântico e pertencente ao Hemisfério Ocidental), sendo visto como “ideal”, “propósito” ou “programa”, expressos pelas ideias de ciência, democracia e cristianismo. Conforme as palavras de Golbery: “É preciso, sobretudo, testemunhar, à evidência, que somos não só por origem, mas ainda mais por convicção, povos deste mundo livre do Ocidente que estaremos prontos a defender”.

Passados mais de 70 anos dos escritos de Golbery, a questão que se coloca hoje é: em que medida a ideia de Ocidente enquanto projeto de futuro ainda impacta nas escolhas e preferências geopolíticas nacionais e constitui-se fator determinante para alinhamentos internacionais futuros?

Se, por um lado, ainda não temos as respostas claras, por outro lado há sinais de que a pressão do Ocidente por uma resposta positiva tende a aumentar. Recentemente, por exemplo, duas iniciativas norte-americanas sugerem resgatar o sentido de defesa coletiva do Hemisfério Ocidental (continente americano). A primeira diz respeito à Iniciativa da Bacia do Atlântico, incorporando o Atlântico Sul no escopo estratégico da Otan. A segunda se refere à adoção do conceito de “dissuasão integrada” no âmbito dos países americanos, por meio da cooperação regional em defesa e segurança, proposta oficialmente apresentada durante a XV Conferência de Ministros da Defesa das Américas, realizada em Brasília em julho de 2022. Aparentemente, o Brasil tende a resistir a tais propostas.

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O fato é que o sentido de Ocidente hoje é muito diferente daquele descrito por Golbery. O mundo se tornou multipolar e interdependente. Além disso, a ideia de Ocidente como propósito e programa desejável, que tanto encantava Golbery, parece dar sinais de degradação. Recentemente, este jornal publicou um interessante artigo de Sergio Fausto (Confusa ideologia antiocidental, 2/3, A4), que revelou que, “nos últimos anos, tornou-se moda atribuir ao Ocidente grande parte dos males que acometem o mundo. A moda tem adeptos sobretudo na esquerda, mas também na extrema direita nacionalista sob influência do Kremlin”. O fato é que, em ambos os casos, o sentido de Ocidente não remeteria mais à ideia de revolução científica, democracia e direitos humanos. Muito pelo contrário. Para a extrema esquerda, o Ocidente representa a fonte do colonialismo e, consequentemente, da desigualdade e da escravidão. Para a extrema direita, trata-se de uma sociedade moralmente corrompida, despida de seus valores tradicionais.

O dilema duplo a ser enfrentado pelo Brasil nas próximas décadas, portanto, é complexo e não será de fácil resolução. O cálculo envolve dimensões de natureza geopolítica e ideológica. Se, por um lado, um maior alinhamento com o Ocidente põe em risco a manutenção das relações pragmáticas com países do Sul Global, além de comprometer o grau de autonomia estratégica historicamente desejado pelo Brasil como potencial representante dos países do Sul nas principais mesas de negociação internacionais, por outro lado, pode nos distanciar do maior capital relacionado à ideia de Ocidente: a sua tradição democrática.

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DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA USP, É PROFESSOR DE GEOPOLÍTICA NA ESCOLA SUPERIOR DE DEFESA E DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO UNICEUB

O retorno da competição geopolítica observado especialmente após a crise financeira global de 2007 tem provocado a reconfiguração do tabuleiro internacional e realinhamentos estratégicos. Isso se mostra especialmente importante para o Brasil, por sua estatura geopolítica, sua condição de global player e pelo fato de ter nas duas maiores potências globais – China e EUA – seus principais parceiros estratégicos. Por sua condição histórica, geográfica e cultural, o Brasil é visto hoje como um elo entre dois blocos regionais: o Ocidente e o Sul Global. Sob tal condição, o País desfruta de um inegável capital geopolítico, o que lhe proporciona capacidade de barganha diante das grandes potências.

Entretanto, a eclosão dos diversos incidentes geopolíticos nos últimos anos, especialmente a guerra na Ucrânia e o conflito Israel-Hamas, pode vir a forçar o Brasil a tomar partido em relação a um dos lados, retirando do País a confortável e desejável posição de equidistância entre os candidatos a hegemon. Assim, diante do quadro de ampliação das pressões de ambos os lados, o Brasil poderá ver-se sob um dilema duplo: se vai ter de se alinhar a algum destes blocos e, em caso positivo, a qual deles.

Considerando tal cenário, é necessário um amplo debate nacional sobre quem, afinal, somos. Neste artigo, vou me deter especificamente sobre o sentido de Ocidente para o Brasil. Para tanto, sugiro uma abordagem crítica à obra de um dos personagens mais influentes no cenário brasileiro da segunda metade do século 20 e que tinha na ideia da lealdade ao Ocidente um elemento central: Golbery do Couto e Silva.

Escrevendo no início dos anos 1950, Golbery ajudou a formular a doutrina da Escola Superior de Guerra, num contexto que, para ele, era marcado pela ameaça do “comunismo oriental” à “democracia ocidental”. Segundo Golbery, o sentido de Ocidente para o Brasil ia além de fatores geográficos (um país atlântico e pertencente ao Hemisfério Ocidental), sendo visto como “ideal”, “propósito” ou “programa”, expressos pelas ideias de ciência, democracia e cristianismo. Conforme as palavras de Golbery: “É preciso, sobretudo, testemunhar, à evidência, que somos não só por origem, mas ainda mais por convicção, povos deste mundo livre do Ocidente que estaremos prontos a defender”.

Passados mais de 70 anos dos escritos de Golbery, a questão que se coloca hoje é: em que medida a ideia de Ocidente enquanto projeto de futuro ainda impacta nas escolhas e preferências geopolíticas nacionais e constitui-se fator determinante para alinhamentos internacionais futuros?

Se, por um lado, ainda não temos as respostas claras, por outro lado há sinais de que a pressão do Ocidente por uma resposta positiva tende a aumentar. Recentemente, por exemplo, duas iniciativas norte-americanas sugerem resgatar o sentido de defesa coletiva do Hemisfério Ocidental (continente americano). A primeira diz respeito à Iniciativa da Bacia do Atlântico, incorporando o Atlântico Sul no escopo estratégico da Otan. A segunda se refere à adoção do conceito de “dissuasão integrada” no âmbito dos países americanos, por meio da cooperação regional em defesa e segurança, proposta oficialmente apresentada durante a XV Conferência de Ministros da Defesa das Américas, realizada em Brasília em julho de 2022. Aparentemente, o Brasil tende a resistir a tais propostas.

O fato é que o sentido de Ocidente hoje é muito diferente daquele descrito por Golbery. O mundo se tornou multipolar e interdependente. Além disso, a ideia de Ocidente como propósito e programa desejável, que tanto encantava Golbery, parece dar sinais de degradação. Recentemente, este jornal publicou um interessante artigo de Sergio Fausto (Confusa ideologia antiocidental, 2/3, A4), que revelou que, “nos últimos anos, tornou-se moda atribuir ao Ocidente grande parte dos males que acometem o mundo. A moda tem adeptos sobretudo na esquerda, mas também na extrema direita nacionalista sob influência do Kremlin”. O fato é que, em ambos os casos, o sentido de Ocidente não remeteria mais à ideia de revolução científica, democracia e direitos humanos. Muito pelo contrário. Para a extrema esquerda, o Ocidente representa a fonte do colonialismo e, consequentemente, da desigualdade e da escravidão. Para a extrema direita, trata-se de uma sociedade moralmente corrompida, despida de seus valores tradicionais.

O dilema duplo a ser enfrentado pelo Brasil nas próximas décadas, portanto, é complexo e não será de fácil resolução. O cálculo envolve dimensões de natureza geopolítica e ideológica. Se, por um lado, um maior alinhamento com o Ocidente põe em risco a manutenção das relações pragmáticas com países do Sul Global, além de comprometer o grau de autonomia estratégica historicamente desejado pelo Brasil como potencial representante dos países do Sul nas principais mesas de negociação internacionais, por outro lado, pode nos distanciar do maior capital relacionado à ideia de Ocidente: a sua tradição democrática.

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DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA USP, É PROFESSOR DE GEOPOLÍTICA NA ESCOLA SUPERIOR DE DEFESA E DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO UNICEUB

O retorno da competição geopolítica observado especialmente após a crise financeira global de 2007 tem provocado a reconfiguração do tabuleiro internacional e realinhamentos estratégicos. Isso se mostra especialmente importante para o Brasil, por sua estatura geopolítica, sua condição de global player e pelo fato de ter nas duas maiores potências globais – China e EUA – seus principais parceiros estratégicos. Por sua condição histórica, geográfica e cultural, o Brasil é visto hoje como um elo entre dois blocos regionais: o Ocidente e o Sul Global. Sob tal condição, o País desfruta de um inegável capital geopolítico, o que lhe proporciona capacidade de barganha diante das grandes potências.

Entretanto, a eclosão dos diversos incidentes geopolíticos nos últimos anos, especialmente a guerra na Ucrânia e o conflito Israel-Hamas, pode vir a forçar o Brasil a tomar partido em relação a um dos lados, retirando do País a confortável e desejável posição de equidistância entre os candidatos a hegemon. Assim, diante do quadro de ampliação das pressões de ambos os lados, o Brasil poderá ver-se sob um dilema duplo: se vai ter de se alinhar a algum destes blocos e, em caso positivo, a qual deles.

Considerando tal cenário, é necessário um amplo debate nacional sobre quem, afinal, somos. Neste artigo, vou me deter especificamente sobre o sentido de Ocidente para o Brasil. Para tanto, sugiro uma abordagem crítica à obra de um dos personagens mais influentes no cenário brasileiro da segunda metade do século 20 e que tinha na ideia da lealdade ao Ocidente um elemento central: Golbery do Couto e Silva.

Escrevendo no início dos anos 1950, Golbery ajudou a formular a doutrina da Escola Superior de Guerra, num contexto que, para ele, era marcado pela ameaça do “comunismo oriental” à “democracia ocidental”. Segundo Golbery, o sentido de Ocidente para o Brasil ia além de fatores geográficos (um país atlântico e pertencente ao Hemisfério Ocidental), sendo visto como “ideal”, “propósito” ou “programa”, expressos pelas ideias de ciência, democracia e cristianismo. Conforme as palavras de Golbery: “É preciso, sobretudo, testemunhar, à evidência, que somos não só por origem, mas ainda mais por convicção, povos deste mundo livre do Ocidente que estaremos prontos a defender”.

Passados mais de 70 anos dos escritos de Golbery, a questão que se coloca hoje é: em que medida a ideia de Ocidente enquanto projeto de futuro ainda impacta nas escolhas e preferências geopolíticas nacionais e constitui-se fator determinante para alinhamentos internacionais futuros?

Se, por um lado, ainda não temos as respostas claras, por outro lado há sinais de que a pressão do Ocidente por uma resposta positiva tende a aumentar. Recentemente, por exemplo, duas iniciativas norte-americanas sugerem resgatar o sentido de defesa coletiva do Hemisfério Ocidental (continente americano). A primeira diz respeito à Iniciativa da Bacia do Atlântico, incorporando o Atlântico Sul no escopo estratégico da Otan. A segunda se refere à adoção do conceito de “dissuasão integrada” no âmbito dos países americanos, por meio da cooperação regional em defesa e segurança, proposta oficialmente apresentada durante a XV Conferência de Ministros da Defesa das Américas, realizada em Brasília em julho de 2022. Aparentemente, o Brasil tende a resistir a tais propostas.

O fato é que o sentido de Ocidente hoje é muito diferente daquele descrito por Golbery. O mundo se tornou multipolar e interdependente. Além disso, a ideia de Ocidente como propósito e programa desejável, que tanto encantava Golbery, parece dar sinais de degradação. Recentemente, este jornal publicou um interessante artigo de Sergio Fausto (Confusa ideologia antiocidental, 2/3, A4), que revelou que, “nos últimos anos, tornou-se moda atribuir ao Ocidente grande parte dos males que acometem o mundo. A moda tem adeptos sobretudo na esquerda, mas também na extrema direita nacionalista sob influência do Kremlin”. O fato é que, em ambos os casos, o sentido de Ocidente não remeteria mais à ideia de revolução científica, democracia e direitos humanos. Muito pelo contrário. Para a extrema esquerda, o Ocidente representa a fonte do colonialismo e, consequentemente, da desigualdade e da escravidão. Para a extrema direita, trata-se de uma sociedade moralmente corrompida, despida de seus valores tradicionais.

O dilema duplo a ser enfrentado pelo Brasil nas próximas décadas, portanto, é complexo e não será de fácil resolução. O cálculo envolve dimensões de natureza geopolítica e ideológica. Se, por um lado, um maior alinhamento com o Ocidente põe em risco a manutenção das relações pragmáticas com países do Sul Global, além de comprometer o grau de autonomia estratégica historicamente desejado pelo Brasil como potencial representante dos países do Sul nas principais mesas de negociação internacionais, por outro lado, pode nos distanciar do maior capital relacionado à ideia de Ocidente: a sua tradição democrática.

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DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA USP, É PROFESSOR DE GEOPOLÍTICA NA ESCOLA SUPERIOR DE DEFESA E DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO UNICEUB

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Doutor em Ciência Política pela USP, é professor de Geopolítica na Escola Superior de Defesa e de Relações Internacionais no Uniceub

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