A exemplo de administrações recentes, o atual governo, em companhia dos Poderes Legislativo e Judiciário, tem se dedicado a uma ambiciosa agenda de regulação da internet. A atenção ao tema não está apenas nos discursos, é evidente também em ações concretas (e positivas), como as que visam à inclusão digital, abarcando conectividade e educação. A condução desta agenda, contudo, é por vezes questionável – ainda que bem-intencionada.
Isso porque parte das propostas em discussão carrega consigo riscos consideráveis à arquitetura e à integridade da internet. Tomemos como exemplo a Portaria n.º 351 do Ministério da Justiça, editada em abril de 2023, que atribuiu à Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) poderes de moderação de conteúdo, na esteira dos gravíssimos ataques a escolas no País. Como esta, outras tentativas súbitas e aparentemente superficiais de regulação surgiram em diversos momentos críticos dos últimos anos.
A regulação da internet, tecnologia não alinhada às fronteiras nacionais, é uma tarefa complexa. Exige extensa deliberação e a participação das diferentes partes afetadas, além da avaliação de seus impactos, inclusive no cenário externo. O Brasil alcançou notoriedade internacional em razão de legislações amplamente debatidas, como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Nossa história, porém, registra também episódios menos notáveis, fruto da insuficiência das discussões envolvendo o tema – ou da completa ausência delas. A imprecisão legislativa sobre crimes cibernéticos e a defasagem na atual legislação de direitos autorais são dois casos emblemáticos.
Essa dualidade pode ser observada no debate em torno do amplo Projeto de Lei (PL) 2.630/2020 – popularmente conhecido como o PL das Fake News. A abertura dos legisladores ao diálogo gerou perceptíveis avanços na qualidade do texto. Por outro lado, quando se cria um clima de urgência, com a inserção de temas sem discussão prévia, vemos surgir propostas que, se não agravam problemas já existentes, criam um cenário de insegurança jurídica com efeitos adversos sobre a internet.
Há, ainda, um risco mais amplo: o da fragmentação de uma rede que deve ser aberta, segura, confiável e globalmente conectada. Regulamentações pouco debatidas podem resultar num funcionamento específico da internet em cada país, eliminando os padrões globais da rede. E, ainda que o prejuízo de tal processo seja manifesto, o que vemos são iniciativas cada vez mais frequentes nesta direção.
Não tratamos, aqui, da adaptação de produtos e serviços às particularidades regionais, comumente positiva, mas de alterações que afetem o funcionamento técnico ou o acesso ao ciberespaço – impostas sem prévio debate multissetorial.
Exemplos não faltam. Estão no Judiciário, sob a forma de julgamentos pendentes no Supremo Tribunal Federal (STF) que podem responsabilizar excessivamente os provedores por conteúdos de terceiros ou autorizar o bloqueio de plataformas no Brasil. E no Legislativo, vide a pressa com que foram tratadas propostas de remuneração do jornalismo e de direitos autorais no ambiente digital, previstas inicialmente no PL 2.630 e fatiadas para dois outros desde então.
Tal agenda regulatória, também ela fragmentada, eleva substancialmente os riscos para a internet. É preciso, portanto, caminhar rumo a um debate não apenas cuidadoso, mas verdadeiramente inclusivo. A liderança brasileira do G20 e o processo do fórum Netmundial+10 se apresentam como boas oportunidades para tal em 2024.
Neste cenário, o modelo do Marco Civil, caracterizado por discussão ampla, busca de consensos mínimos e rito legislativo apropriado, deve nortear as iniciativas. É essencial agregar os diferentes atores (e Poderes) em torno de um projeto único, que enfrente os desafios atuais sem pressões, mesmo diante das urgências circunstanciais.
E, ao garantir o envolvimento dos mais diversos agentes, é necessário reforçar de maneira inequívoca o papel da juventude. Nascido num ambiente já digitalizado, este grupo é, a rigor, o mais afetado por novas regulações da internet. Não à toa, jovens lideram alguns dos principais movimentos em defesa dos direitos digitais, em níveis nacional e global.
Assim, é imperativo que a atual agenda regulatória esteja em sintonia com as aspirações e preocupações deste grupo, discutidas nessas organizações e em fóruns como o YouthLACIGF – iniciativa que reúne jovens de países da América Latina para integrar o debate que ocorre em diferentes partes do continente.
Incluir a participação da juventude como critério de diversidade em espaços importantes, como os do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), aprofundando iniciativas já existentes – a exemplo do programa Youth Brasil –, parece um caminho positivo e factível.
Por fim, é importante ressaltar que, embora o ímpeto de regular seja válido, é essencial que seja pautado por uma compreensão profunda, matizada e transnacional da internet. Não apenas como uma ferramenta técnica, mas como um ecossistema social, econômico e cultural em expansão – e essencial para o desenvolvimento global.
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É DIRETOR DE PROJETOS DO CAPÍTULO BRASILEIRO DA INTERNET SOCIETY