Opinião|Regulação em xeque – a equivocada proposta de controle sobre agências reguladoras


Supressão dos poderes das agências pretendida por emenda à Medida Provisória 1.154/23 põe em risco todo o modelo regulatório brasileiro

Por Caio de Souza Loureiro

O Brasil tem uma história mal resolvida com as agências reguladoras. Não que elas sejam exatamente novas – a Bolsa Oficial do Café, por exemplo, já em 1914 tinha como função estabelecer as “normas reguladoras” das operações de comércio do café. Mas, desde o movimento de institucionalização de setores regulados, implantado na década de 90 do século passado, as agências criadas naquele momento vivem em constante ataque, independentemente de qual corrente ideológica esteja ocupando o poder. Recentemente, por exemplo, o governo Dória, em São Paulo, chegou a editar um projeto de lei que reduzia drasticamente o poder das agências estaduais, mas acabou capitulando diante das críticas recebidas.

Agora, no lumiar de um novo governo federal, emenda apresentada pelo deputado Danilo Forte (União/CE) à Medida Provisória 1.154/23 (de organização administrativa) traz mais um ataque ao modelo regulatório. Em suma, a emenda propõe duas medidas: formação de um conselho composto, além das agências, pelos Ministérios, pelos consumidores e pela “academia”, que ficaria responsável pela edição de normas no âmbito de cada uma das diversas agências federais; e, também, a atribuição a um “órgão administrativo julgador independente” (não detalhado) da competência de decidir os processos do contencioso administrativo das agências.

Na prática, a proposta tem objetivo muito claro: diminuir a autonomia e a independência das agências reguladoras, dois dos principais pilares da regulação econômica. Afinal, retirar o poder normativo e o poder decisório das agências acabaria por transformá-las em instâncias meramente burocráticas, que serviriam apenas à instrução de processos e normas. A última palavra caberia sempre a outras instâncias – o conselho, no aspecto normativo, e o tal órgão julgador independente, no aspecto decisório.

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Não se negam os questionamentos válidos à efetiva autonomia das agências, especialmente por questões orçamentárias que acabam limitando a sua atuação, bem assim eventual interferência política nas nomeações dos seus diretores. Contudo, fato é que a existência de uma entidade independente e, principalmente, com capacidade técnica especializada representou um significativo avanço na institucionalização de setores econômicos relevantes (energia, telecomunicações, logística de transportes e mineração, por exemplo).

Investidores, usuários e o próprio governo se beneficiam de uma entidade dotada de conhecimento técnico e que possa exercer sua função equidistante dos diversos interesses envolvidos. O papel do regulador fornece, portanto, a estabilidade e a racionalidade necessárias à correta atividade empresarial, em respeito às políticas públicas desenhadas para cada setor e com observância dos direitos dos usuários. Não por acaso, o País vivenciou a realização de investimentos significativos e o avanço em diversos setores regulados, desde o surgimento das agências.

A supressão dos poderes das agências reguladoras pretendida pela emenda põe em risco todo o modelo regulatório brasileiro. Tanto pior: o faz por meio de medidas que tendem a gerar consequências trágicas para o ambiente de serviços públicos e atividades econômicas relevantes.

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De um lado, a existência de um conselho normativo aumenta as chances de interferência política e tende a burocratizar demasiadamente um processo que já é demorado pela cautela necessária. Afinal, com tantos interesses distintos na mesa, é difícil pressupor uma decisão efetiva, sendo certo que o governo tende a assumir um protagonismo que acabará beneficiando-o nas normas editadas. Vale lembrar que o processo de construção normativa das agências já observa procedimentos de consulta pública e de diálogo efetivo com a sociedade.

Também não se vislumbra o benefício de um órgão julgador independente, tendo em conta que as decisões das agências em contencioso administrativo podem ser questionadas judicialmente por aquele que se sentir prejudicado. A inclusão de mais uma instância tem como consequência retardar ainda mais a conclusão dos processos administrativos. E mais: sem saber o que caracterizaria a sua propagada independência, eis que nada há sobre qual seria a composição deste órgão e a quem ele estaria vinculado.

Não deixa de ser interessante, portanto, que o resultado prático da proposição caminha em sentido oposto àquele defendido na sua justificação. Em dado momento, alega-se ser “necessário criar mecanismos que proporcionem o melhor relacionamento e execução de tarefas na Administração Pública”. Ora, não parece ser esse o objetivo, quando se propõe a instituição de mais duas instâncias administrativas (o conselho e o órgão julgador independente) para desempenhar um papel que já é exercido pelas agências. Ao contrário, a expectativa é de que a sobreposição de competências e o trâmite mais extenso aumentem o litígio e, principalmente, acarretem em perda de eficiência administrativa.

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Não se entende em que a medida garantiria “o controle e a vigilância de um poder sobre o outro em relação ao cumprimento dos deveres constitucionais”. Afinal, não há na proposição qualquer referência aos Poderes Legislativo e Judiciário. O controle proposto, ao contrário, é cingido ao próprio Executivo, poder ao qual já se vinculam as agências.

Nesta linha, o objetivo declarado de “proporcionar maior clareza e controle das atividades executiva, normativa e contenciosa” das agências parece mesmo ser uma tentativa de aumentar o controle exercido pelo governo. Com isso, as agências passariam a atuar em favor de um dos agentes dos setores regulados, e não de maneira independente.

Vale dizer, por fim, que o controle pretendido pela medida já é exercido pelo Tribunal de Contas da União (Legislativo) e pelo próprio Poder Judiciário, estes, sim, capazes de assegurar os controles recíprocos entre os Poderes.

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De modo geral, portanto, a medida é mais uma no rol daquelas que revelam o inconformismo com o modelo regulatório brasileiro, que, de fato, não é indene a críticas. Contudo, andaria melhor o Legislativo se se ocupasse de discutir aprimoramentos na atuação das agências, inclusive com a previsão de verbas orçamentárias suficientes para que elas pudessem desempenhar melhor o seu papel.

*

ADVOGADO, É DOUTOR EM DIREITO DO ESTADO PELA USP E MESTRE EM DIREITO DO ESTADO PELA PUC/SP

O Brasil tem uma história mal resolvida com as agências reguladoras. Não que elas sejam exatamente novas – a Bolsa Oficial do Café, por exemplo, já em 1914 tinha como função estabelecer as “normas reguladoras” das operações de comércio do café. Mas, desde o movimento de institucionalização de setores regulados, implantado na década de 90 do século passado, as agências criadas naquele momento vivem em constante ataque, independentemente de qual corrente ideológica esteja ocupando o poder. Recentemente, por exemplo, o governo Dória, em São Paulo, chegou a editar um projeto de lei que reduzia drasticamente o poder das agências estaduais, mas acabou capitulando diante das críticas recebidas.

Agora, no lumiar de um novo governo federal, emenda apresentada pelo deputado Danilo Forte (União/CE) à Medida Provisória 1.154/23 (de organização administrativa) traz mais um ataque ao modelo regulatório. Em suma, a emenda propõe duas medidas: formação de um conselho composto, além das agências, pelos Ministérios, pelos consumidores e pela “academia”, que ficaria responsável pela edição de normas no âmbito de cada uma das diversas agências federais; e, também, a atribuição a um “órgão administrativo julgador independente” (não detalhado) da competência de decidir os processos do contencioso administrativo das agências.

Na prática, a proposta tem objetivo muito claro: diminuir a autonomia e a independência das agências reguladoras, dois dos principais pilares da regulação econômica. Afinal, retirar o poder normativo e o poder decisório das agências acabaria por transformá-las em instâncias meramente burocráticas, que serviriam apenas à instrução de processos e normas. A última palavra caberia sempre a outras instâncias – o conselho, no aspecto normativo, e o tal órgão julgador independente, no aspecto decisório.

Não se negam os questionamentos válidos à efetiva autonomia das agências, especialmente por questões orçamentárias que acabam limitando a sua atuação, bem assim eventual interferência política nas nomeações dos seus diretores. Contudo, fato é que a existência de uma entidade independente e, principalmente, com capacidade técnica especializada representou um significativo avanço na institucionalização de setores econômicos relevantes (energia, telecomunicações, logística de transportes e mineração, por exemplo).

Investidores, usuários e o próprio governo se beneficiam de uma entidade dotada de conhecimento técnico e que possa exercer sua função equidistante dos diversos interesses envolvidos. O papel do regulador fornece, portanto, a estabilidade e a racionalidade necessárias à correta atividade empresarial, em respeito às políticas públicas desenhadas para cada setor e com observância dos direitos dos usuários. Não por acaso, o País vivenciou a realização de investimentos significativos e o avanço em diversos setores regulados, desde o surgimento das agências.

A supressão dos poderes das agências reguladoras pretendida pela emenda põe em risco todo o modelo regulatório brasileiro. Tanto pior: o faz por meio de medidas que tendem a gerar consequências trágicas para o ambiente de serviços públicos e atividades econômicas relevantes.

De um lado, a existência de um conselho normativo aumenta as chances de interferência política e tende a burocratizar demasiadamente um processo que já é demorado pela cautela necessária. Afinal, com tantos interesses distintos na mesa, é difícil pressupor uma decisão efetiva, sendo certo que o governo tende a assumir um protagonismo que acabará beneficiando-o nas normas editadas. Vale lembrar que o processo de construção normativa das agências já observa procedimentos de consulta pública e de diálogo efetivo com a sociedade.

Também não se vislumbra o benefício de um órgão julgador independente, tendo em conta que as decisões das agências em contencioso administrativo podem ser questionadas judicialmente por aquele que se sentir prejudicado. A inclusão de mais uma instância tem como consequência retardar ainda mais a conclusão dos processos administrativos. E mais: sem saber o que caracterizaria a sua propagada independência, eis que nada há sobre qual seria a composição deste órgão e a quem ele estaria vinculado.

Não deixa de ser interessante, portanto, que o resultado prático da proposição caminha em sentido oposto àquele defendido na sua justificação. Em dado momento, alega-se ser “necessário criar mecanismos que proporcionem o melhor relacionamento e execução de tarefas na Administração Pública”. Ora, não parece ser esse o objetivo, quando se propõe a instituição de mais duas instâncias administrativas (o conselho e o órgão julgador independente) para desempenhar um papel que já é exercido pelas agências. Ao contrário, a expectativa é de que a sobreposição de competências e o trâmite mais extenso aumentem o litígio e, principalmente, acarretem em perda de eficiência administrativa.

Não se entende em que a medida garantiria “o controle e a vigilância de um poder sobre o outro em relação ao cumprimento dos deveres constitucionais”. Afinal, não há na proposição qualquer referência aos Poderes Legislativo e Judiciário. O controle proposto, ao contrário, é cingido ao próprio Executivo, poder ao qual já se vinculam as agências.

Nesta linha, o objetivo declarado de “proporcionar maior clareza e controle das atividades executiva, normativa e contenciosa” das agências parece mesmo ser uma tentativa de aumentar o controle exercido pelo governo. Com isso, as agências passariam a atuar em favor de um dos agentes dos setores regulados, e não de maneira independente.

Vale dizer, por fim, que o controle pretendido pela medida já é exercido pelo Tribunal de Contas da União (Legislativo) e pelo próprio Poder Judiciário, estes, sim, capazes de assegurar os controles recíprocos entre os Poderes.

De modo geral, portanto, a medida é mais uma no rol daquelas que revelam o inconformismo com o modelo regulatório brasileiro, que, de fato, não é indene a críticas. Contudo, andaria melhor o Legislativo se se ocupasse de discutir aprimoramentos na atuação das agências, inclusive com a previsão de verbas orçamentárias suficientes para que elas pudessem desempenhar melhor o seu papel.

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ADVOGADO, É DOUTOR EM DIREITO DO ESTADO PELA USP E MESTRE EM DIREITO DO ESTADO PELA PUC/SP

O Brasil tem uma história mal resolvida com as agências reguladoras. Não que elas sejam exatamente novas – a Bolsa Oficial do Café, por exemplo, já em 1914 tinha como função estabelecer as “normas reguladoras” das operações de comércio do café. Mas, desde o movimento de institucionalização de setores regulados, implantado na década de 90 do século passado, as agências criadas naquele momento vivem em constante ataque, independentemente de qual corrente ideológica esteja ocupando o poder. Recentemente, por exemplo, o governo Dória, em São Paulo, chegou a editar um projeto de lei que reduzia drasticamente o poder das agências estaduais, mas acabou capitulando diante das críticas recebidas.

Agora, no lumiar de um novo governo federal, emenda apresentada pelo deputado Danilo Forte (União/CE) à Medida Provisória 1.154/23 (de organização administrativa) traz mais um ataque ao modelo regulatório. Em suma, a emenda propõe duas medidas: formação de um conselho composto, além das agências, pelos Ministérios, pelos consumidores e pela “academia”, que ficaria responsável pela edição de normas no âmbito de cada uma das diversas agências federais; e, também, a atribuição a um “órgão administrativo julgador independente” (não detalhado) da competência de decidir os processos do contencioso administrativo das agências.

Na prática, a proposta tem objetivo muito claro: diminuir a autonomia e a independência das agências reguladoras, dois dos principais pilares da regulação econômica. Afinal, retirar o poder normativo e o poder decisório das agências acabaria por transformá-las em instâncias meramente burocráticas, que serviriam apenas à instrução de processos e normas. A última palavra caberia sempre a outras instâncias – o conselho, no aspecto normativo, e o tal órgão julgador independente, no aspecto decisório.

Não se negam os questionamentos válidos à efetiva autonomia das agências, especialmente por questões orçamentárias que acabam limitando a sua atuação, bem assim eventual interferência política nas nomeações dos seus diretores. Contudo, fato é que a existência de uma entidade independente e, principalmente, com capacidade técnica especializada representou um significativo avanço na institucionalização de setores econômicos relevantes (energia, telecomunicações, logística de transportes e mineração, por exemplo).

Investidores, usuários e o próprio governo se beneficiam de uma entidade dotada de conhecimento técnico e que possa exercer sua função equidistante dos diversos interesses envolvidos. O papel do regulador fornece, portanto, a estabilidade e a racionalidade necessárias à correta atividade empresarial, em respeito às políticas públicas desenhadas para cada setor e com observância dos direitos dos usuários. Não por acaso, o País vivenciou a realização de investimentos significativos e o avanço em diversos setores regulados, desde o surgimento das agências.

A supressão dos poderes das agências reguladoras pretendida pela emenda põe em risco todo o modelo regulatório brasileiro. Tanto pior: o faz por meio de medidas que tendem a gerar consequências trágicas para o ambiente de serviços públicos e atividades econômicas relevantes.

De um lado, a existência de um conselho normativo aumenta as chances de interferência política e tende a burocratizar demasiadamente um processo que já é demorado pela cautela necessária. Afinal, com tantos interesses distintos na mesa, é difícil pressupor uma decisão efetiva, sendo certo que o governo tende a assumir um protagonismo que acabará beneficiando-o nas normas editadas. Vale lembrar que o processo de construção normativa das agências já observa procedimentos de consulta pública e de diálogo efetivo com a sociedade.

Também não se vislumbra o benefício de um órgão julgador independente, tendo em conta que as decisões das agências em contencioso administrativo podem ser questionadas judicialmente por aquele que se sentir prejudicado. A inclusão de mais uma instância tem como consequência retardar ainda mais a conclusão dos processos administrativos. E mais: sem saber o que caracterizaria a sua propagada independência, eis que nada há sobre qual seria a composição deste órgão e a quem ele estaria vinculado.

Não deixa de ser interessante, portanto, que o resultado prático da proposição caminha em sentido oposto àquele defendido na sua justificação. Em dado momento, alega-se ser “necessário criar mecanismos que proporcionem o melhor relacionamento e execução de tarefas na Administração Pública”. Ora, não parece ser esse o objetivo, quando se propõe a instituição de mais duas instâncias administrativas (o conselho e o órgão julgador independente) para desempenhar um papel que já é exercido pelas agências. Ao contrário, a expectativa é de que a sobreposição de competências e o trâmite mais extenso aumentem o litígio e, principalmente, acarretem em perda de eficiência administrativa.

Não se entende em que a medida garantiria “o controle e a vigilância de um poder sobre o outro em relação ao cumprimento dos deveres constitucionais”. Afinal, não há na proposição qualquer referência aos Poderes Legislativo e Judiciário. O controle proposto, ao contrário, é cingido ao próprio Executivo, poder ao qual já se vinculam as agências.

Nesta linha, o objetivo declarado de “proporcionar maior clareza e controle das atividades executiva, normativa e contenciosa” das agências parece mesmo ser uma tentativa de aumentar o controle exercido pelo governo. Com isso, as agências passariam a atuar em favor de um dos agentes dos setores regulados, e não de maneira independente.

Vale dizer, por fim, que o controle pretendido pela medida já é exercido pelo Tribunal de Contas da União (Legislativo) e pelo próprio Poder Judiciário, estes, sim, capazes de assegurar os controles recíprocos entre os Poderes.

De modo geral, portanto, a medida é mais uma no rol daquelas que revelam o inconformismo com o modelo regulatório brasileiro, que, de fato, não é indene a críticas. Contudo, andaria melhor o Legislativo se se ocupasse de discutir aprimoramentos na atuação das agências, inclusive com a previsão de verbas orçamentárias suficientes para que elas pudessem desempenhar melhor o seu papel.

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