Opinião|Remediação tardia de violência de gênero


Garantir a representatividade feminina no Judiciário, bem como ambientes seguros, é fundamental para começar a romper com a cultura que exclui mulheres do acesso à Justiça

Por Joana Zylbersztajn e Eloísa Machado

Em agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional o uso da tese da “legítima defesa da honra”. Sim, faz menos de um ano que o Judiciário brasileiro formalizou o entendimento de que homens não podem matar e agredir mulheres por terem se sentido ofendidos.

Já em maio de 2024 – sim, agora há pouco – o STF também declarou inconstitucional invocar a vivência sexual pregressa da vítima em julgamentos de crimes contra a dignidade sexual e de violência contra a mulher.

A decisão veio na esteira da comoção gerada pelo caso Mariana Ferrer e da Lei 14.245/21, que ganhou seu nome. Em julgamento que constava como vítima, Mariana foi tratada de modo brutal e humilhante pelos advogados de defesa, sob o olhar complacente do juiz e do promotor.

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O caso definitivamente não foi inédito nem isolado, mas ganhou repercussão em razão de ter sido gravado. Desde então – e com a expansão dos atos processuais online –, outros episódios têm vindo à tona. Mais recentemente, vieram a público as declarações do desembargador Luís César de Paula Espíndola em julgamento sobre medidas protetivas a uma menina de 12 anos vítima de assédio.

O magistrado votou pelo cancelamento das medidas, pois “(hoje em dia) as mulheres estão loucas atrás de homens”. Ao ser criticado por uma colega desembargadora, acusou-a de ter um “discurso feminista desatualizado”. Atendendo ao pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) afastou Espíndola enquanto ocorrem as devidas apurações.

Essa situação remonta ao livro publicado pela professora Silvia Pimentel no final da década de 1990, chamado Estupro, Crime ou Cortesia?. Esse estranhíssimo título fazia referência justamente a uma decisão judicial encontrada pela autora, de um caso de estupro contra uma menina de 12 anos:

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Rio de Janeiro, 1974. “Será justo, então, o réu Fernando Cortez, primário, trabalhador, sofrer pena enorme e ter a vida estragada por causa de um fato sem consequências, oriundo de uma falsa virgem? Afinal de contas, esta vítima, amorosa com outros rapazes, vai continuar a sê-lo. Com Cortez, assediou-o até se entregar. E o que em retribuição lhe fez Cortez? Uma cortesia…”

Passados 50 anos dessa decisão judicial, o pensamento de juízes e desembargadores parece estar no mesmo lugar, no passado. Felizmente, já não tão impunemente. Mas há certamente ainda um longo caminho a ser percorrido para que o sistema de Justiça deixe de ser, ele mesmo, um espaço de discriminação de gênero.

Entre as iniciativas que podem ajudar nessa urgente evolução da perspectiva de gênero no Judiciário, estão medidas recentes adotadas pelo CNJ. Em 2020, o conselho publicou a Resolução 351, que “institui, no âmbito do Poder Judiciário, a Política de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e da Discriminação”.

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Já em 2021 foi lançado o “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, com o objetivo de ampliar o acesso à Justiça de mulheres e meninas, após condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH) no caso de Márcia Barbosa de Souza naquele mesmo ano.

A decisão da Corte IDH identificou que, naquele caso, a investigação e o processo penal tiveram “um caráter discriminatório por razão de gênero”. Determinou então ações de não repetição, tais como a adoção de “protocolo estandardizado de investigação de mortes violentas de mulheres em razão de gênero, dirigido ao pessoal da administração da justiça que, de alguma maneira, intervenha na investigação e tramitação de casos de mortes violentas de mulheres”.

Aliás, vale lembrar que não é a primeira decisão da Corte IDH que identifica falhas graves do sistema judiciário brasileiro na atenção às mulheres. Exatos 20 anos antes da decisão sobre Márcia de Souza, a Corte IDH condenava o Brasil por omissão da Justiça no caso Maria da Penha, que levou o País a aprovar a lei que leva seu nome e busca proteger mulheres vítimas de violência doméstica.

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Finalmente, pela Resolução 492 de 2023, o CNJ tornou o “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero” mandatório; instituiu a “obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional”; e criou os Comitês de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero e de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário.

Ainda em 2023, o CNJ publicou as Resoluções 540 e 525, que atualizam suas políticas anteriores sobre “paridade de gênero, com perspectiva interseccional de raça e etnia” e “ação afirmativa de gênero, para acesso das magistradas aos tribunais de segundo grau”.

Garantir a representatividade feminina no Poder Judiciário, bem como proporcionar ambientes seguros e livres de assédio para juízas, advogadas, servidoras, partes e demais operadoras do sistema de Justiça, não vai resolver por si só o problema do machismo na instituição. Mas é um passo fundamental para começar a romper com a cultura de violência de gênero que exclui mulheres do acesso à Justiça.

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MEMBRAS DA COMISSÃO ARNS DE DIREITOS HUMANOS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, ADVOGADA, SÓCIA DA CONSULTORIA VEREDAS – ESTRATÉGIAS EM DIREITOS HUMANOS, PROFESSORA DO INSPER; E ADVOGADA, SÓCIA DE ELOÍSA MACHADO DE ALMEIDA ADVOCACIA, PROFESSORA DA FGV DIREITO SP

Em agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional o uso da tese da “legítima defesa da honra”. Sim, faz menos de um ano que o Judiciário brasileiro formalizou o entendimento de que homens não podem matar e agredir mulheres por terem se sentido ofendidos.

Já em maio de 2024 – sim, agora há pouco – o STF também declarou inconstitucional invocar a vivência sexual pregressa da vítima em julgamentos de crimes contra a dignidade sexual e de violência contra a mulher.

A decisão veio na esteira da comoção gerada pelo caso Mariana Ferrer e da Lei 14.245/21, que ganhou seu nome. Em julgamento que constava como vítima, Mariana foi tratada de modo brutal e humilhante pelos advogados de defesa, sob o olhar complacente do juiz e do promotor.

O caso definitivamente não foi inédito nem isolado, mas ganhou repercussão em razão de ter sido gravado. Desde então – e com a expansão dos atos processuais online –, outros episódios têm vindo à tona. Mais recentemente, vieram a público as declarações do desembargador Luís César de Paula Espíndola em julgamento sobre medidas protetivas a uma menina de 12 anos vítima de assédio.

O magistrado votou pelo cancelamento das medidas, pois “(hoje em dia) as mulheres estão loucas atrás de homens”. Ao ser criticado por uma colega desembargadora, acusou-a de ter um “discurso feminista desatualizado”. Atendendo ao pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) afastou Espíndola enquanto ocorrem as devidas apurações.

Essa situação remonta ao livro publicado pela professora Silvia Pimentel no final da década de 1990, chamado Estupro, Crime ou Cortesia?. Esse estranhíssimo título fazia referência justamente a uma decisão judicial encontrada pela autora, de um caso de estupro contra uma menina de 12 anos:

Rio de Janeiro, 1974. “Será justo, então, o réu Fernando Cortez, primário, trabalhador, sofrer pena enorme e ter a vida estragada por causa de um fato sem consequências, oriundo de uma falsa virgem? Afinal de contas, esta vítima, amorosa com outros rapazes, vai continuar a sê-lo. Com Cortez, assediou-o até se entregar. E o que em retribuição lhe fez Cortez? Uma cortesia…”

Passados 50 anos dessa decisão judicial, o pensamento de juízes e desembargadores parece estar no mesmo lugar, no passado. Felizmente, já não tão impunemente. Mas há certamente ainda um longo caminho a ser percorrido para que o sistema de Justiça deixe de ser, ele mesmo, um espaço de discriminação de gênero.

Entre as iniciativas que podem ajudar nessa urgente evolução da perspectiva de gênero no Judiciário, estão medidas recentes adotadas pelo CNJ. Em 2020, o conselho publicou a Resolução 351, que “institui, no âmbito do Poder Judiciário, a Política de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e da Discriminação”.

Já em 2021 foi lançado o “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, com o objetivo de ampliar o acesso à Justiça de mulheres e meninas, após condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH) no caso de Márcia Barbosa de Souza naquele mesmo ano.

A decisão da Corte IDH identificou que, naquele caso, a investigação e o processo penal tiveram “um caráter discriminatório por razão de gênero”. Determinou então ações de não repetição, tais como a adoção de “protocolo estandardizado de investigação de mortes violentas de mulheres em razão de gênero, dirigido ao pessoal da administração da justiça que, de alguma maneira, intervenha na investigação e tramitação de casos de mortes violentas de mulheres”.

Aliás, vale lembrar que não é a primeira decisão da Corte IDH que identifica falhas graves do sistema judiciário brasileiro na atenção às mulheres. Exatos 20 anos antes da decisão sobre Márcia de Souza, a Corte IDH condenava o Brasil por omissão da Justiça no caso Maria da Penha, que levou o País a aprovar a lei que leva seu nome e busca proteger mulheres vítimas de violência doméstica.

Finalmente, pela Resolução 492 de 2023, o CNJ tornou o “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero” mandatório; instituiu a “obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional”; e criou os Comitês de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero e de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário.

Ainda em 2023, o CNJ publicou as Resoluções 540 e 525, que atualizam suas políticas anteriores sobre “paridade de gênero, com perspectiva interseccional de raça e etnia” e “ação afirmativa de gênero, para acesso das magistradas aos tribunais de segundo grau”.

Garantir a representatividade feminina no Poder Judiciário, bem como proporcionar ambientes seguros e livres de assédio para juízas, advogadas, servidoras, partes e demais operadoras do sistema de Justiça, não vai resolver por si só o problema do machismo na instituição. Mas é um passo fundamental para começar a romper com a cultura de violência de gênero que exclui mulheres do acesso à Justiça.

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MEMBRAS DA COMISSÃO ARNS DE DIREITOS HUMANOS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, ADVOGADA, SÓCIA DA CONSULTORIA VEREDAS – ESTRATÉGIAS EM DIREITOS HUMANOS, PROFESSORA DO INSPER; E ADVOGADA, SÓCIA DE ELOÍSA MACHADO DE ALMEIDA ADVOCACIA, PROFESSORA DA FGV DIREITO SP

Em agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional o uso da tese da “legítima defesa da honra”. Sim, faz menos de um ano que o Judiciário brasileiro formalizou o entendimento de que homens não podem matar e agredir mulheres por terem se sentido ofendidos.

Já em maio de 2024 – sim, agora há pouco – o STF também declarou inconstitucional invocar a vivência sexual pregressa da vítima em julgamentos de crimes contra a dignidade sexual e de violência contra a mulher.

A decisão veio na esteira da comoção gerada pelo caso Mariana Ferrer e da Lei 14.245/21, que ganhou seu nome. Em julgamento que constava como vítima, Mariana foi tratada de modo brutal e humilhante pelos advogados de defesa, sob o olhar complacente do juiz e do promotor.

O caso definitivamente não foi inédito nem isolado, mas ganhou repercussão em razão de ter sido gravado. Desde então – e com a expansão dos atos processuais online –, outros episódios têm vindo à tona. Mais recentemente, vieram a público as declarações do desembargador Luís César de Paula Espíndola em julgamento sobre medidas protetivas a uma menina de 12 anos vítima de assédio.

O magistrado votou pelo cancelamento das medidas, pois “(hoje em dia) as mulheres estão loucas atrás de homens”. Ao ser criticado por uma colega desembargadora, acusou-a de ter um “discurso feminista desatualizado”. Atendendo ao pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) afastou Espíndola enquanto ocorrem as devidas apurações.

Essa situação remonta ao livro publicado pela professora Silvia Pimentel no final da década de 1990, chamado Estupro, Crime ou Cortesia?. Esse estranhíssimo título fazia referência justamente a uma decisão judicial encontrada pela autora, de um caso de estupro contra uma menina de 12 anos:

Rio de Janeiro, 1974. “Será justo, então, o réu Fernando Cortez, primário, trabalhador, sofrer pena enorme e ter a vida estragada por causa de um fato sem consequências, oriundo de uma falsa virgem? Afinal de contas, esta vítima, amorosa com outros rapazes, vai continuar a sê-lo. Com Cortez, assediou-o até se entregar. E o que em retribuição lhe fez Cortez? Uma cortesia…”

Passados 50 anos dessa decisão judicial, o pensamento de juízes e desembargadores parece estar no mesmo lugar, no passado. Felizmente, já não tão impunemente. Mas há certamente ainda um longo caminho a ser percorrido para que o sistema de Justiça deixe de ser, ele mesmo, um espaço de discriminação de gênero.

Entre as iniciativas que podem ajudar nessa urgente evolução da perspectiva de gênero no Judiciário, estão medidas recentes adotadas pelo CNJ. Em 2020, o conselho publicou a Resolução 351, que “institui, no âmbito do Poder Judiciário, a Política de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e da Discriminação”.

Já em 2021 foi lançado o “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, com o objetivo de ampliar o acesso à Justiça de mulheres e meninas, após condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH) no caso de Márcia Barbosa de Souza naquele mesmo ano.

A decisão da Corte IDH identificou que, naquele caso, a investigação e o processo penal tiveram “um caráter discriminatório por razão de gênero”. Determinou então ações de não repetição, tais como a adoção de “protocolo estandardizado de investigação de mortes violentas de mulheres em razão de gênero, dirigido ao pessoal da administração da justiça que, de alguma maneira, intervenha na investigação e tramitação de casos de mortes violentas de mulheres”.

Aliás, vale lembrar que não é a primeira decisão da Corte IDH que identifica falhas graves do sistema judiciário brasileiro na atenção às mulheres. Exatos 20 anos antes da decisão sobre Márcia de Souza, a Corte IDH condenava o Brasil por omissão da Justiça no caso Maria da Penha, que levou o País a aprovar a lei que leva seu nome e busca proteger mulheres vítimas de violência doméstica.

Finalmente, pela Resolução 492 de 2023, o CNJ tornou o “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero” mandatório; instituiu a “obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional”; e criou os Comitês de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero e de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário.

Ainda em 2023, o CNJ publicou as Resoluções 540 e 525, que atualizam suas políticas anteriores sobre “paridade de gênero, com perspectiva interseccional de raça e etnia” e “ação afirmativa de gênero, para acesso das magistradas aos tribunais de segundo grau”.

Garantir a representatividade feminina no Poder Judiciário, bem como proporcionar ambientes seguros e livres de assédio para juízas, advogadas, servidoras, partes e demais operadoras do sistema de Justiça, não vai resolver por si só o problema do machismo na instituição. Mas é um passo fundamental para começar a romper com a cultura de violência de gênero que exclui mulheres do acesso à Justiça.

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MEMBRAS DA COMISSÃO ARNS DE DIREITOS HUMANOS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, ADVOGADA, SÓCIA DA CONSULTORIA VEREDAS – ESTRATÉGIAS EM DIREITOS HUMANOS, PROFESSORA DO INSPER; E ADVOGADA, SÓCIA DE ELOÍSA MACHADO DE ALMEIDA ADVOCACIA, PROFESSORA DA FGV DIREITO SP

Opinião por Joana Zylbersztajn

Advogada, sócia da consultoria Veredas – Estratégias em Direitos Humanos, professora do Insper, é membra da Comissão Arns de Direitos Humanos

Eloísa Machado

Advogada, sócia de Eloísa Machado de Almeida Advocacia, professora da FGV Direito SP, é membra da Comissão Arns de Direitos Humanos

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