Em maio de 2020, na capital paulista, policiais militares imobilizaram uma mulher negra durante uma ocorrência pisando com o coturno no seu pescoço. Em junho de 2023, na capital paulista, um homem negro suspeito de furto foi amarrado com cordas pelos pés e mãos e arrastado para uma unidade de pronto atendimento. Em dezembro de 2021, na capital paulista, um homem negro foi abordado, imobilizado, amarrado com cordas e puxado pela motocicleta dirigida por um policial. Em março de 2018, na capital paulista, um policial, ao começar a abordagem a um jovem negro que já estava com as mãos para cima e não oferecia resistência, desferiu tapas e socos contra seu rosto. Em outubro de 2024, na cidade de Bauru, PMs invadiram o velório de um jovem que fora baleado durante uma ação policial no dia anterior e agrediram com cassetetes três pessoas, inclusive a mãe do jovem que estava sendo velado. Em dezembro de 2024, na cidade de Campinas, um policial militar, durante abordagem, agrediu uma dona de casa com um soco no rosto. Em abril de 2024, na cidade de Piracicaba, PMs invadiram uma residência e agrediram com socos e pontapés um jovem negro e seu pai cadeirante.
Esse pequeno inventário das diversas ocorrências policiais que antecederam ou deixaram de ser lembradas quando das mais recentes que chocaram a opinião pública – como a de um jovem negro assassinado com 11 tiros pelas costas ou a daquele jogado de uma ponte – serve como evidência qualificada de que o uso da força bruta e da violência desmesurada praticado por parcela dos integrantes da Polícia Militar vem de longe, é modus operandi naturalizado de ação e está instrumentado tanto na rotina de simplicidade e calmaria do interior quanto na vida complexa e agitada dos grandes centros e da capital paulista.
Este conjunto dramático das insanas violações e transgressões dos direitos constitucionais demonstra, além do desapreço pelo cumprimento da lei e do desprezo pela cidadania, uma atitude de confrontação aos valores do respeito ao cidadão e vilipêndio à dignidade da pessoa humana. Ou seja, uma contrafação perversa do respeito, da cordialidade e da serenidade que devem reger as relações da sociedade, seus indivíduos e suas instituições, e, principalmente, um divórcio afrontoso e destrutivo do ideário de servir e proteger que estrutura os valores, a visão e a missão primordial da Polícia Militar do Estado.
Tudo isso aponta uma evidência incontornável: a rotina de vilipêndios e arbítrio e o abuso de poder de parte de integrantes da Polícia Militar demonstram à saciedade que, diferentemente dos valores, protocolos e manuais de conduta oficiais e institucionalizados, existe um outro, particularizado e informalizado, que cultua como honra e moralidade a violência e a brutalidade e estimula e celebra como prática valorosa, justa e meritória o infligi mento da agonia, da dor e do sofrimento nas vítimas de sua ação.
Mas, se o culto à dignidade, o respeito à vida e a integridade são compromissos juramentados para assegurar a prevalência e o cumprimento das leis, a defesa das instituições e o respeito ao cidadão, e estruturam os princípios que regem a honra policial e justificam a existência e essência da corporação militar, como conciliar esses dois mundos que se confrontam, se contradizem, se excluem e se autodestroem?
Qualquer que seja a resposta, obrigatoriamente ela nos levará para a necessidade urgente e intransponível de iniciar a construção de uma outra polícia, decidida e integralmente comprometida e compromissada com o respeito às pessoas e os valores da dignidade humana. Uma polícia do futuro, no presente, que seja abraçada pela reverência a uma atitude e uma cultura de paz, de tolerância, e que conte com a participação e o monitoramento da sociedade civil. Uma polícia que fortaleça seus órgãos de controle, se submeta a controle de órgãos autônomos e que de forma permanente e transparente preste contas à sociedade. Uma polícia cuja formação priorize a qualificação para o respeito aos direitos humanos, o combate ao racismo e a todas as formas de discriminação. Uma polícia que substitua a militarização pela cidadanização e recepcione e se relacione com os indivíduos e cidadãos com o sentimento e o olhar de confraterno, não de inimigo a ser combatido.
Os primeiros passos relevantes devem ser a obrigatoriedade do uso de câmaras corporais por todos os policiais e o afastamento imediato de todos aqueles que se envolverem em ocorrências sensíveis. Em seguida, e não menos importantes, estão a proibição de disparos de armas em áreas letais quando das abordagens e o uso preferencial de armas não letais. Depois, a proibição de socos, pontapés, tapas, pisamentos e mata-leões no atendimento e na imobilização em curso de ocorrência policial. Por fim, o impedimento de qualquer tipo de constrangimento às vítimas das ações policiais e seus familiares em hospitais, velórios e ambiente de trabalho.
São ações simples e de pequeno impacto, porém potentes e preciosas para dar partida ao longo caminho de mudança e transformação da cultura de violência dos corpos policiais rumo à correção, à humanização e à honradez que permitirão à Polícia Militar servir e proteger a todos. Sem distinção e sem discriminação.
*
ADVOGADO, DOUTOR EM EDUCAÇÃO E PÓS-DOUTOR PELA USP, É REITOR DA UNIVERSIDADE ZUMBI DOS PALMARES