Opinião|Sobre democracia e separação de Poderes


Quando o Congresso promulga a lei e o Executivo edita MP para desfazer o trabalho congressual, tem-se uma anomalia no sistema

Por André Mendes Moreira

No apagar das luzes de 2023, o devido processo legislativo foi colocado em xeque por atitude do presidente da República, que editou medida provisória (MP) para desafiar decisão do Congresso Nacional, criando conflito entre os Poderes. Nas democracias cabe ao Legislativo aprovar as leis e ao Executivo conferir-lhes exequibilidade. Quando o Congresso promulga a lei e o Executivo edita medida provisória para desfazer o trabalho congressual, tem-se uma anomalia no sistema, a merecer reparo imediato a bem da estabilidade das instituições democráticas.

Vale compreender em detalhes o ocorrido, para que o leitor possa extrair suas próprias conclusões.

Existe no Brasil e em inúmeros países um tributo incidente sobre os salários pagos aos empregados das empresas. Recolhe-se ao governo um porcentual de cada real, dólar ou euro com o qual uma empresa remunera seus colaboradores. Essas contribuições (payroll taxes) já foram definidas como “tributos sobre o crescimento dos empregos” na Austrália e apontadas como “redutoras de salários” nos EUA. A lógica é simples: se o alvo do tributo é o salário, a tendência será a de reduzi-lo ou eliminá-lo.

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Ciente desse fato, desde 2011 o Brasil tem buscado uma alternativa à tributação sobre a folha de salários, substituindo-a por uma contribuição incidente sobre a receita das empresas. A lei previu a aplicação do mecanismo aos segmentos da economia com maior número de empregados, bem como fixou um prazo para a experiência, que, após sucessivas prorrogações, findaria no dia 31 de dezembro de 2023.

Devido ao fato de que os setores alcançados pela medida geraram 45% mais empregos do que os sujeitos à antiquada contribuição sobre folha de salários, foi apresentado no Senado, a 7 de fevereiro de 2023, projeto de lei para prorrogar até 2027 a tributação substitutiva em comento.

O aludido projeto foi finalmente aprovado no dia 25 de outubro de 2023. Com receio de perder arrecadação, o presidente da República vetou a prorrogação da tributação substitutiva – apenas para ver seu veto derrubado por 80% dos membros da Câmara e do Senado, no dia 14 de dezembro.

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Diante do ocorrido, o presidente do Congresso Nacional fez o que lhe cabia: promulgou a lei aos 28 de dezembro, prorrogando até 2027 a tributação alternativa sobre a folha de pagamentos para os segmentos que integram a medida.

A discussão ter-se-ia encerrado não tivesse o presidente da República, no dia seguinte ao da promulgação da lei (29 de dezembro), editado medida provisória (n.º 1.202) para anular os efeitos da prorrogação da contribuição substitutiva. Em uma analogia esportiva, é como se, após perder de goleada no tempo regulamentar, o técnico do time perdedor exigisse uma prorrogação, na qual perdesse igualmente por golden goal. Ainda assim, esse mesmo técnico agora propõe que a partida seja efetivamente decidida em uma disputa de pênaltis – para a qual não há previsão em regulamento.

A medida provisória que pretende derrubar a derrubada do veto desconsidera o devido processo legislativo. O princípio da separação de Poderes (artigo 2.º da Constituição de 1988) resta violado, eis que a tarefa do Legislativo e do Executivo, no que se refere ao tema em análise, já se esgotou em 2023, após amplo debate.

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Decorre da separação dos Poderes a impossibilidade de se reenviar medida provisória para tratar de assunto já analisado no mesmo ano pelo Congresso Nacional (artigo 62, parágrafo 1.º, inciso IV da Constituição de 1988). Ademais, é ainda vedado o envio de projeto de lei para tratar de matéria já apreciada em outro projeto de lei no mesmo ano, salvo se a proposta advier da maioria absoluta dos membros da Câmara ou do Senado (artigo 67 da Constituição de 1988). A racionalidade das regras é singela: a soberania do Poder Legislativo não pode ser desrespeitada com a “insistência” em tema que já tenha sido objeto de deliberação do Congresso na mesma sessão legislativa, como de resto já decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) em mais de uma ocasião (ADI n.º 2.010; ADI n.º 7.232). De forma didática, a Corte Suprema afirmou que “medida provisória não é desvio para se contornar a competência do Congresso Nacional”, sendo “inconstitucional a utilização deste instrumento excepcional para sobrepor-se o voluntarismo presidencial à vontade legítima das Casas Legislativas”.

Conforme o princípio da proibição do retrocesso, aquilo que a população conquista por meio das leis não lhe pode ser tolhido – especialmente por ato do presidente, cuja origem remonta aos decretos-leis do Estado Novo de Getúlio Vargas. Uma vez que a medida provisória se revele imprópria, cabe ao presidente do Congresso devolvê-la ao presidente da República, como já se deu em algumas ocasiões. É esse o destino que se espera para o documento normativo que relega a vontade soberana do Parlamento – e, portanto, da população brasileira – ao plano de uma mera opinião, contestável como se fosse um singelo debate entre confrades e não um sério e regulamentado processo legislativo constitucional.

*

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PROFESSOR DE DIREITO TRIBUTÁRIO DA USP, É ADVOGADO TRIBUTARISTA

No apagar das luzes de 2023, o devido processo legislativo foi colocado em xeque por atitude do presidente da República, que editou medida provisória (MP) para desafiar decisão do Congresso Nacional, criando conflito entre os Poderes. Nas democracias cabe ao Legislativo aprovar as leis e ao Executivo conferir-lhes exequibilidade. Quando o Congresso promulga a lei e o Executivo edita medida provisória para desfazer o trabalho congressual, tem-se uma anomalia no sistema, a merecer reparo imediato a bem da estabilidade das instituições democráticas.

Vale compreender em detalhes o ocorrido, para que o leitor possa extrair suas próprias conclusões.

Existe no Brasil e em inúmeros países um tributo incidente sobre os salários pagos aos empregados das empresas. Recolhe-se ao governo um porcentual de cada real, dólar ou euro com o qual uma empresa remunera seus colaboradores. Essas contribuições (payroll taxes) já foram definidas como “tributos sobre o crescimento dos empregos” na Austrália e apontadas como “redutoras de salários” nos EUA. A lógica é simples: se o alvo do tributo é o salário, a tendência será a de reduzi-lo ou eliminá-lo.

Ciente desse fato, desde 2011 o Brasil tem buscado uma alternativa à tributação sobre a folha de salários, substituindo-a por uma contribuição incidente sobre a receita das empresas. A lei previu a aplicação do mecanismo aos segmentos da economia com maior número de empregados, bem como fixou um prazo para a experiência, que, após sucessivas prorrogações, findaria no dia 31 de dezembro de 2023.

Devido ao fato de que os setores alcançados pela medida geraram 45% mais empregos do que os sujeitos à antiquada contribuição sobre folha de salários, foi apresentado no Senado, a 7 de fevereiro de 2023, projeto de lei para prorrogar até 2027 a tributação substitutiva em comento.

O aludido projeto foi finalmente aprovado no dia 25 de outubro de 2023. Com receio de perder arrecadação, o presidente da República vetou a prorrogação da tributação substitutiva – apenas para ver seu veto derrubado por 80% dos membros da Câmara e do Senado, no dia 14 de dezembro.

Diante do ocorrido, o presidente do Congresso Nacional fez o que lhe cabia: promulgou a lei aos 28 de dezembro, prorrogando até 2027 a tributação alternativa sobre a folha de pagamentos para os segmentos que integram a medida.

A discussão ter-se-ia encerrado não tivesse o presidente da República, no dia seguinte ao da promulgação da lei (29 de dezembro), editado medida provisória (n.º 1.202) para anular os efeitos da prorrogação da contribuição substitutiva. Em uma analogia esportiva, é como se, após perder de goleada no tempo regulamentar, o técnico do time perdedor exigisse uma prorrogação, na qual perdesse igualmente por golden goal. Ainda assim, esse mesmo técnico agora propõe que a partida seja efetivamente decidida em uma disputa de pênaltis – para a qual não há previsão em regulamento.

A medida provisória que pretende derrubar a derrubada do veto desconsidera o devido processo legislativo. O princípio da separação de Poderes (artigo 2.º da Constituição de 1988) resta violado, eis que a tarefa do Legislativo e do Executivo, no que se refere ao tema em análise, já se esgotou em 2023, após amplo debate.

Decorre da separação dos Poderes a impossibilidade de se reenviar medida provisória para tratar de assunto já analisado no mesmo ano pelo Congresso Nacional (artigo 62, parágrafo 1.º, inciso IV da Constituição de 1988). Ademais, é ainda vedado o envio de projeto de lei para tratar de matéria já apreciada em outro projeto de lei no mesmo ano, salvo se a proposta advier da maioria absoluta dos membros da Câmara ou do Senado (artigo 67 da Constituição de 1988). A racionalidade das regras é singela: a soberania do Poder Legislativo não pode ser desrespeitada com a “insistência” em tema que já tenha sido objeto de deliberação do Congresso na mesma sessão legislativa, como de resto já decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) em mais de uma ocasião (ADI n.º 2.010; ADI n.º 7.232). De forma didática, a Corte Suprema afirmou que “medida provisória não é desvio para se contornar a competência do Congresso Nacional”, sendo “inconstitucional a utilização deste instrumento excepcional para sobrepor-se o voluntarismo presidencial à vontade legítima das Casas Legislativas”.

Conforme o princípio da proibição do retrocesso, aquilo que a população conquista por meio das leis não lhe pode ser tolhido – especialmente por ato do presidente, cuja origem remonta aos decretos-leis do Estado Novo de Getúlio Vargas. Uma vez que a medida provisória se revele imprópria, cabe ao presidente do Congresso devolvê-la ao presidente da República, como já se deu em algumas ocasiões. É esse o destino que se espera para o documento normativo que relega a vontade soberana do Parlamento – e, portanto, da população brasileira – ao plano de uma mera opinião, contestável como se fosse um singelo debate entre confrades e não um sério e regulamentado processo legislativo constitucional.

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PROFESSOR DE DIREITO TRIBUTÁRIO DA USP, É ADVOGADO TRIBUTARISTA

No apagar das luzes de 2023, o devido processo legislativo foi colocado em xeque por atitude do presidente da República, que editou medida provisória (MP) para desafiar decisão do Congresso Nacional, criando conflito entre os Poderes. Nas democracias cabe ao Legislativo aprovar as leis e ao Executivo conferir-lhes exequibilidade. Quando o Congresso promulga a lei e o Executivo edita medida provisória para desfazer o trabalho congressual, tem-se uma anomalia no sistema, a merecer reparo imediato a bem da estabilidade das instituições democráticas.

Vale compreender em detalhes o ocorrido, para que o leitor possa extrair suas próprias conclusões.

Existe no Brasil e em inúmeros países um tributo incidente sobre os salários pagos aos empregados das empresas. Recolhe-se ao governo um porcentual de cada real, dólar ou euro com o qual uma empresa remunera seus colaboradores. Essas contribuições (payroll taxes) já foram definidas como “tributos sobre o crescimento dos empregos” na Austrália e apontadas como “redutoras de salários” nos EUA. A lógica é simples: se o alvo do tributo é o salário, a tendência será a de reduzi-lo ou eliminá-lo.

Ciente desse fato, desde 2011 o Brasil tem buscado uma alternativa à tributação sobre a folha de salários, substituindo-a por uma contribuição incidente sobre a receita das empresas. A lei previu a aplicação do mecanismo aos segmentos da economia com maior número de empregados, bem como fixou um prazo para a experiência, que, após sucessivas prorrogações, findaria no dia 31 de dezembro de 2023.

Devido ao fato de que os setores alcançados pela medida geraram 45% mais empregos do que os sujeitos à antiquada contribuição sobre folha de salários, foi apresentado no Senado, a 7 de fevereiro de 2023, projeto de lei para prorrogar até 2027 a tributação substitutiva em comento.

O aludido projeto foi finalmente aprovado no dia 25 de outubro de 2023. Com receio de perder arrecadação, o presidente da República vetou a prorrogação da tributação substitutiva – apenas para ver seu veto derrubado por 80% dos membros da Câmara e do Senado, no dia 14 de dezembro.

Diante do ocorrido, o presidente do Congresso Nacional fez o que lhe cabia: promulgou a lei aos 28 de dezembro, prorrogando até 2027 a tributação alternativa sobre a folha de pagamentos para os segmentos que integram a medida.

A discussão ter-se-ia encerrado não tivesse o presidente da República, no dia seguinte ao da promulgação da lei (29 de dezembro), editado medida provisória (n.º 1.202) para anular os efeitos da prorrogação da contribuição substitutiva. Em uma analogia esportiva, é como se, após perder de goleada no tempo regulamentar, o técnico do time perdedor exigisse uma prorrogação, na qual perdesse igualmente por golden goal. Ainda assim, esse mesmo técnico agora propõe que a partida seja efetivamente decidida em uma disputa de pênaltis – para a qual não há previsão em regulamento.

A medida provisória que pretende derrubar a derrubada do veto desconsidera o devido processo legislativo. O princípio da separação de Poderes (artigo 2.º da Constituição de 1988) resta violado, eis que a tarefa do Legislativo e do Executivo, no que se refere ao tema em análise, já se esgotou em 2023, após amplo debate.

Decorre da separação dos Poderes a impossibilidade de se reenviar medida provisória para tratar de assunto já analisado no mesmo ano pelo Congresso Nacional (artigo 62, parágrafo 1.º, inciso IV da Constituição de 1988). Ademais, é ainda vedado o envio de projeto de lei para tratar de matéria já apreciada em outro projeto de lei no mesmo ano, salvo se a proposta advier da maioria absoluta dos membros da Câmara ou do Senado (artigo 67 da Constituição de 1988). A racionalidade das regras é singela: a soberania do Poder Legislativo não pode ser desrespeitada com a “insistência” em tema que já tenha sido objeto de deliberação do Congresso na mesma sessão legislativa, como de resto já decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) em mais de uma ocasião (ADI n.º 2.010; ADI n.º 7.232). De forma didática, a Corte Suprema afirmou que “medida provisória não é desvio para se contornar a competência do Congresso Nacional”, sendo “inconstitucional a utilização deste instrumento excepcional para sobrepor-se o voluntarismo presidencial à vontade legítima das Casas Legislativas”.

Conforme o princípio da proibição do retrocesso, aquilo que a população conquista por meio das leis não lhe pode ser tolhido – especialmente por ato do presidente, cuja origem remonta aos decretos-leis do Estado Novo de Getúlio Vargas. Uma vez que a medida provisória se revele imprópria, cabe ao presidente do Congresso devolvê-la ao presidente da República, como já se deu em algumas ocasiões. É esse o destino que se espera para o documento normativo que relega a vontade soberana do Parlamento – e, portanto, da população brasileira – ao plano de uma mera opinião, contestável como se fosse um singelo debate entre confrades e não um sério e regulamentado processo legislativo constitucional.

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No apagar das luzes de 2023, o devido processo legislativo foi colocado em xeque por atitude do presidente da República, que editou medida provisória (MP) para desafiar decisão do Congresso Nacional, criando conflito entre os Poderes. Nas democracias cabe ao Legislativo aprovar as leis e ao Executivo conferir-lhes exequibilidade. Quando o Congresso promulga a lei e o Executivo edita medida provisória para desfazer o trabalho congressual, tem-se uma anomalia no sistema, a merecer reparo imediato a bem da estabilidade das instituições democráticas.

Vale compreender em detalhes o ocorrido, para que o leitor possa extrair suas próprias conclusões.

Existe no Brasil e em inúmeros países um tributo incidente sobre os salários pagos aos empregados das empresas. Recolhe-se ao governo um porcentual de cada real, dólar ou euro com o qual uma empresa remunera seus colaboradores. Essas contribuições (payroll taxes) já foram definidas como “tributos sobre o crescimento dos empregos” na Austrália e apontadas como “redutoras de salários” nos EUA. A lógica é simples: se o alvo do tributo é o salário, a tendência será a de reduzi-lo ou eliminá-lo.

Ciente desse fato, desde 2011 o Brasil tem buscado uma alternativa à tributação sobre a folha de salários, substituindo-a por uma contribuição incidente sobre a receita das empresas. A lei previu a aplicação do mecanismo aos segmentos da economia com maior número de empregados, bem como fixou um prazo para a experiência, que, após sucessivas prorrogações, findaria no dia 31 de dezembro de 2023.

Devido ao fato de que os setores alcançados pela medida geraram 45% mais empregos do que os sujeitos à antiquada contribuição sobre folha de salários, foi apresentado no Senado, a 7 de fevereiro de 2023, projeto de lei para prorrogar até 2027 a tributação substitutiva em comento.

O aludido projeto foi finalmente aprovado no dia 25 de outubro de 2023. Com receio de perder arrecadação, o presidente da República vetou a prorrogação da tributação substitutiva – apenas para ver seu veto derrubado por 80% dos membros da Câmara e do Senado, no dia 14 de dezembro.

Diante do ocorrido, o presidente do Congresso Nacional fez o que lhe cabia: promulgou a lei aos 28 de dezembro, prorrogando até 2027 a tributação alternativa sobre a folha de pagamentos para os segmentos que integram a medida.

A discussão ter-se-ia encerrado não tivesse o presidente da República, no dia seguinte ao da promulgação da lei (29 de dezembro), editado medida provisória (n.º 1.202) para anular os efeitos da prorrogação da contribuição substitutiva. Em uma analogia esportiva, é como se, após perder de goleada no tempo regulamentar, o técnico do time perdedor exigisse uma prorrogação, na qual perdesse igualmente por golden goal. Ainda assim, esse mesmo técnico agora propõe que a partida seja efetivamente decidida em uma disputa de pênaltis – para a qual não há previsão em regulamento.

A medida provisória que pretende derrubar a derrubada do veto desconsidera o devido processo legislativo. O princípio da separação de Poderes (artigo 2.º da Constituição de 1988) resta violado, eis que a tarefa do Legislativo e do Executivo, no que se refere ao tema em análise, já se esgotou em 2023, após amplo debate.

Decorre da separação dos Poderes a impossibilidade de se reenviar medida provisória para tratar de assunto já analisado no mesmo ano pelo Congresso Nacional (artigo 62, parágrafo 1.º, inciso IV da Constituição de 1988). Ademais, é ainda vedado o envio de projeto de lei para tratar de matéria já apreciada em outro projeto de lei no mesmo ano, salvo se a proposta advier da maioria absoluta dos membros da Câmara ou do Senado (artigo 67 da Constituição de 1988). A racionalidade das regras é singela: a soberania do Poder Legislativo não pode ser desrespeitada com a “insistência” em tema que já tenha sido objeto de deliberação do Congresso na mesma sessão legislativa, como de resto já decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) em mais de uma ocasião (ADI n.º 2.010; ADI n.º 7.232). De forma didática, a Corte Suprema afirmou que “medida provisória não é desvio para se contornar a competência do Congresso Nacional”, sendo “inconstitucional a utilização deste instrumento excepcional para sobrepor-se o voluntarismo presidencial à vontade legítima das Casas Legislativas”.

Conforme o princípio da proibição do retrocesso, aquilo que a população conquista por meio das leis não lhe pode ser tolhido – especialmente por ato do presidente, cuja origem remonta aos decretos-leis do Estado Novo de Getúlio Vargas. Uma vez que a medida provisória se revele imprópria, cabe ao presidente do Congresso devolvê-la ao presidente da República, como já se deu em algumas ocasiões. É esse o destino que se espera para o documento normativo que relega a vontade soberana do Parlamento – e, portanto, da população brasileira – ao plano de uma mera opinião, contestável como se fosse um singelo debate entre confrades e não um sério e regulamentado processo legislativo constitucional.

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No apagar das luzes de 2023, o devido processo legislativo foi colocado em xeque por atitude do presidente da República, que editou medida provisória (MP) para desafiar decisão do Congresso Nacional, criando conflito entre os Poderes. Nas democracias cabe ao Legislativo aprovar as leis e ao Executivo conferir-lhes exequibilidade. Quando o Congresso promulga a lei e o Executivo edita medida provisória para desfazer o trabalho congressual, tem-se uma anomalia no sistema, a merecer reparo imediato a bem da estabilidade das instituições democráticas.

Vale compreender em detalhes o ocorrido, para que o leitor possa extrair suas próprias conclusões.

Existe no Brasil e em inúmeros países um tributo incidente sobre os salários pagos aos empregados das empresas. Recolhe-se ao governo um porcentual de cada real, dólar ou euro com o qual uma empresa remunera seus colaboradores. Essas contribuições (payroll taxes) já foram definidas como “tributos sobre o crescimento dos empregos” na Austrália e apontadas como “redutoras de salários” nos EUA. A lógica é simples: se o alvo do tributo é o salário, a tendência será a de reduzi-lo ou eliminá-lo.

Ciente desse fato, desde 2011 o Brasil tem buscado uma alternativa à tributação sobre a folha de salários, substituindo-a por uma contribuição incidente sobre a receita das empresas. A lei previu a aplicação do mecanismo aos segmentos da economia com maior número de empregados, bem como fixou um prazo para a experiência, que, após sucessivas prorrogações, findaria no dia 31 de dezembro de 2023.

Devido ao fato de que os setores alcançados pela medida geraram 45% mais empregos do que os sujeitos à antiquada contribuição sobre folha de salários, foi apresentado no Senado, a 7 de fevereiro de 2023, projeto de lei para prorrogar até 2027 a tributação substitutiva em comento.

O aludido projeto foi finalmente aprovado no dia 25 de outubro de 2023. Com receio de perder arrecadação, o presidente da República vetou a prorrogação da tributação substitutiva – apenas para ver seu veto derrubado por 80% dos membros da Câmara e do Senado, no dia 14 de dezembro.

Diante do ocorrido, o presidente do Congresso Nacional fez o que lhe cabia: promulgou a lei aos 28 de dezembro, prorrogando até 2027 a tributação alternativa sobre a folha de pagamentos para os segmentos que integram a medida.

A discussão ter-se-ia encerrado não tivesse o presidente da República, no dia seguinte ao da promulgação da lei (29 de dezembro), editado medida provisória (n.º 1.202) para anular os efeitos da prorrogação da contribuição substitutiva. Em uma analogia esportiva, é como se, após perder de goleada no tempo regulamentar, o técnico do time perdedor exigisse uma prorrogação, na qual perdesse igualmente por golden goal. Ainda assim, esse mesmo técnico agora propõe que a partida seja efetivamente decidida em uma disputa de pênaltis – para a qual não há previsão em regulamento.

A medida provisória que pretende derrubar a derrubada do veto desconsidera o devido processo legislativo. O princípio da separação de Poderes (artigo 2.º da Constituição de 1988) resta violado, eis que a tarefa do Legislativo e do Executivo, no que se refere ao tema em análise, já se esgotou em 2023, após amplo debate.

Decorre da separação dos Poderes a impossibilidade de se reenviar medida provisória para tratar de assunto já analisado no mesmo ano pelo Congresso Nacional (artigo 62, parágrafo 1.º, inciso IV da Constituição de 1988). Ademais, é ainda vedado o envio de projeto de lei para tratar de matéria já apreciada em outro projeto de lei no mesmo ano, salvo se a proposta advier da maioria absoluta dos membros da Câmara ou do Senado (artigo 67 da Constituição de 1988). A racionalidade das regras é singela: a soberania do Poder Legislativo não pode ser desrespeitada com a “insistência” em tema que já tenha sido objeto de deliberação do Congresso na mesma sessão legislativa, como de resto já decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) em mais de uma ocasião (ADI n.º 2.010; ADI n.º 7.232). De forma didática, a Corte Suprema afirmou que “medida provisória não é desvio para se contornar a competência do Congresso Nacional”, sendo “inconstitucional a utilização deste instrumento excepcional para sobrepor-se o voluntarismo presidencial à vontade legítima das Casas Legislativas”.

Conforme o princípio da proibição do retrocesso, aquilo que a população conquista por meio das leis não lhe pode ser tolhido – especialmente por ato do presidente, cuja origem remonta aos decretos-leis do Estado Novo de Getúlio Vargas. Uma vez que a medida provisória se revele imprópria, cabe ao presidente do Congresso devolvê-la ao presidente da República, como já se deu em algumas ocasiões. É esse o destino que se espera para o documento normativo que relega a vontade soberana do Parlamento – e, portanto, da população brasileira – ao plano de uma mera opinião, contestável como se fosse um singelo debate entre confrades e não um sério e regulamentado processo legislativo constitucional.

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