Opinião|Sobre parlamentares e prisão preventiva


Ao plenário da Câmara caberá uma decisão exclusiva acerca da legalidade da prisão, e não prejulgar o mérito das repulsivas ações atribuídas ao deputado Chiquinho Brazão

Por José Roberto Batochio

Aproximavam-se as comemorações do Dia da Independência no ano de 1968, Sete de Setembro em que os militares encastelados no poder exaltavam o golpe de Estado que haviam perpetrado quatro anos antes, quando um deputado do MDB-RJ subiu à tribuna para sugerir que nos bailes comemorativos da efeméride as moças não aceitassem dançar com oficiais das Forças Armadas. Acostumado desde abril de 1964 a cassar mandatos e suspender direitos políticos de parlamentares por meio dos Atos Institucionais (AI) 1 e 2, então já sem validade, o governo dobrou-se à Constituição vigorante, e a Procuradoria-Geral da República requereu ao Supremo Tribunal Federal que se instaurasse processo para cassar o mandato de Márcio Moreira Alves.

A Carta democrática de 1946 estabelecia, no art. 45, que os membros do Congresso Nacional não poderiam “ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Câmara”. Em votação histórica, a 12 de dezembro de 1968 a Câmara negou trânsito ao processo contra Moreira Alves, por 216 a 141 votos e 12 abstenções. Apesar de heroica, foi uma vitória de Pirro, pois no dia seguinte o comando militar desfechou autogolpe, proclamou seu quinto e mais truculento ato institucional, fechou o Congresso e cassou o mandato do deputado, suspendeu garantias fundamentais, institucionalizou a censura à imprensa, além de outras inomináveis arbitrariedades.

O “caso Márcio Moreira Alves” ficou na História como o pretexto para o infame AI-5, mas também remarcou a soberania do Poder Legislativo, e não só da oposição à época, pois 94 deputados do partido governista, a Arena, cerraram fileiras pelo respeito à inviolabilidade parlamentar que já vedava, como ainda veda, a prisão processual de membro do Congresso fora de unívoco caso de flagrante de crime em que a Lei Máxima não admita fiança.

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A questão de 1968 ressurge agora, no caso da prisão do deputado João Francisco Brazão, vulgo Chiquinho, acusado de ser mandante do assassinato da vereadora Marielle Franco. Antes de mais nada, advirta-se, em favor das ponderações a seguir, que a causa vale mais que o santo. O parlamentar foi preso com base em delação premiada do algoz confesso de Marielle, portanto fora da indispensável flagrância de crime inafiançável que exige a Constituição de 1988, que copiou quase literalmente o texto de 1946.

A imunidade parlamentar, hoje instituída no art. 53, §2.º, foi afastada como se fora adereço jurídico, meramente decorativo, embora à custa de contorcionismos hermenêuticos. A representação da Polícia Federal com o pedido de prisão do deputado partiu de um ilusionismo. Assentou que o parlamentar, que esteve licenciado do mandato para ocupar um cargo na Prefeitura do Rio de Janeiro, ao tomar conhecimento de notícias que o incriminavam, exonerou-se e reassumiu seu mandato na Câmara – ato havido pela polícia como “desvio de finalidade”, porque o verdadeiro objetivo seria “reconquistar” a imunidade parlamentar e “escudar-se de eventual decreto prisional”. Na interpretação dos ínclitos policiais, “deste modo, atualmente, em razão do desvio de finalidade de seu ato de exoneração do cargo de secretário municipal, Chiquinho não faz jus à imunidade material prevista no artigo 53, §2.º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988″.

Fosse pouca a heterodoxia da negação de tão básica franquia do Parlamento só pelo retorno “defensivo” ao exercício do mandato, o douto ministro Alexandre de Moraes invocou o art. 312 do Código de Processo Penal para alinhar os fatores delitivos concretos ou potenciais que em geral autorizam a prisão preventiva, entre eles atos de obstrução à justiça, e concluiu: “A presença dos requisitos autorizadores da prisão preventiva afasta a afiançabilidade do crime, permitindo a prisão em flagrante do parlamentar”. Desprezou-se a taxatividade e o fato de que entre nós não há prisão preventiva para congressistas. Tais requisitos alcançam os não protegidos pelas imunidades parlamentares. Aplicou-se a regra onde valia a exceção.

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Não menos heterodoxo é o comportamento abdicatório de deputados que já se pronunciaram a favor da prisão, a começar pelo relator na Comissão de Constituição e Justiça, Darci de Matos (PSD-SC), que ofereceu em horas parecer favorável. Mas os pedidos de vista do processo adiaram a votação final para ao menos 9 de abril. Ao plenário caberá uma decisão exclusiva acerca da legalidade da prisão, e não prejulgar o mérito das repulsivas ações atribuídas ao deputado, tarefa que cabe à Justiça. Que seja processado com o rigor da lei, mas nenhum predicamento do Congresso seja suprimido ou ignorado.

Há expectativas de que os integrantes da Câmara Baixa reeditem a independência dos parlamentares que em 1968 não se dobraram ao ataque à Constituição e à democracia. Que façam reverência sem reservas ao devido processo legal, revestido em sua natureza de valor universal para vigorar em quaisquer conjunturas políticas, em benefício não de pessoas, inocentes ou culpadas, mas do Estado Democrático de Direito fundado no respeito à Constituição.

*

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ADVOGADO CRIMINALISTA, FOI PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA OAB E DEPUTADO PELO PDT-SP

Aproximavam-se as comemorações do Dia da Independência no ano de 1968, Sete de Setembro em que os militares encastelados no poder exaltavam o golpe de Estado que haviam perpetrado quatro anos antes, quando um deputado do MDB-RJ subiu à tribuna para sugerir que nos bailes comemorativos da efeméride as moças não aceitassem dançar com oficiais das Forças Armadas. Acostumado desde abril de 1964 a cassar mandatos e suspender direitos políticos de parlamentares por meio dos Atos Institucionais (AI) 1 e 2, então já sem validade, o governo dobrou-se à Constituição vigorante, e a Procuradoria-Geral da República requereu ao Supremo Tribunal Federal que se instaurasse processo para cassar o mandato de Márcio Moreira Alves.

A Carta democrática de 1946 estabelecia, no art. 45, que os membros do Congresso Nacional não poderiam “ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Câmara”. Em votação histórica, a 12 de dezembro de 1968 a Câmara negou trânsito ao processo contra Moreira Alves, por 216 a 141 votos e 12 abstenções. Apesar de heroica, foi uma vitória de Pirro, pois no dia seguinte o comando militar desfechou autogolpe, proclamou seu quinto e mais truculento ato institucional, fechou o Congresso e cassou o mandato do deputado, suspendeu garantias fundamentais, institucionalizou a censura à imprensa, além de outras inomináveis arbitrariedades.

O “caso Márcio Moreira Alves” ficou na História como o pretexto para o infame AI-5, mas também remarcou a soberania do Poder Legislativo, e não só da oposição à época, pois 94 deputados do partido governista, a Arena, cerraram fileiras pelo respeito à inviolabilidade parlamentar que já vedava, como ainda veda, a prisão processual de membro do Congresso fora de unívoco caso de flagrante de crime em que a Lei Máxima não admita fiança.

A questão de 1968 ressurge agora, no caso da prisão do deputado João Francisco Brazão, vulgo Chiquinho, acusado de ser mandante do assassinato da vereadora Marielle Franco. Antes de mais nada, advirta-se, em favor das ponderações a seguir, que a causa vale mais que o santo. O parlamentar foi preso com base em delação premiada do algoz confesso de Marielle, portanto fora da indispensável flagrância de crime inafiançável que exige a Constituição de 1988, que copiou quase literalmente o texto de 1946.

A imunidade parlamentar, hoje instituída no art. 53, §2.º, foi afastada como se fora adereço jurídico, meramente decorativo, embora à custa de contorcionismos hermenêuticos. A representação da Polícia Federal com o pedido de prisão do deputado partiu de um ilusionismo. Assentou que o parlamentar, que esteve licenciado do mandato para ocupar um cargo na Prefeitura do Rio de Janeiro, ao tomar conhecimento de notícias que o incriminavam, exonerou-se e reassumiu seu mandato na Câmara – ato havido pela polícia como “desvio de finalidade”, porque o verdadeiro objetivo seria “reconquistar” a imunidade parlamentar e “escudar-se de eventual decreto prisional”. Na interpretação dos ínclitos policiais, “deste modo, atualmente, em razão do desvio de finalidade de seu ato de exoneração do cargo de secretário municipal, Chiquinho não faz jus à imunidade material prevista no artigo 53, §2.º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988″.

Fosse pouca a heterodoxia da negação de tão básica franquia do Parlamento só pelo retorno “defensivo” ao exercício do mandato, o douto ministro Alexandre de Moraes invocou o art. 312 do Código de Processo Penal para alinhar os fatores delitivos concretos ou potenciais que em geral autorizam a prisão preventiva, entre eles atos de obstrução à justiça, e concluiu: “A presença dos requisitos autorizadores da prisão preventiva afasta a afiançabilidade do crime, permitindo a prisão em flagrante do parlamentar”. Desprezou-se a taxatividade e o fato de que entre nós não há prisão preventiva para congressistas. Tais requisitos alcançam os não protegidos pelas imunidades parlamentares. Aplicou-se a regra onde valia a exceção.

Não menos heterodoxo é o comportamento abdicatório de deputados que já se pronunciaram a favor da prisão, a começar pelo relator na Comissão de Constituição e Justiça, Darci de Matos (PSD-SC), que ofereceu em horas parecer favorável. Mas os pedidos de vista do processo adiaram a votação final para ao menos 9 de abril. Ao plenário caberá uma decisão exclusiva acerca da legalidade da prisão, e não prejulgar o mérito das repulsivas ações atribuídas ao deputado, tarefa que cabe à Justiça. Que seja processado com o rigor da lei, mas nenhum predicamento do Congresso seja suprimido ou ignorado.

Há expectativas de que os integrantes da Câmara Baixa reeditem a independência dos parlamentares que em 1968 não se dobraram ao ataque à Constituição e à democracia. Que façam reverência sem reservas ao devido processo legal, revestido em sua natureza de valor universal para vigorar em quaisquer conjunturas políticas, em benefício não de pessoas, inocentes ou culpadas, mas do Estado Democrático de Direito fundado no respeito à Constituição.

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ADVOGADO CRIMINALISTA, FOI PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA OAB E DEPUTADO PELO PDT-SP

Aproximavam-se as comemorações do Dia da Independência no ano de 1968, Sete de Setembro em que os militares encastelados no poder exaltavam o golpe de Estado que haviam perpetrado quatro anos antes, quando um deputado do MDB-RJ subiu à tribuna para sugerir que nos bailes comemorativos da efeméride as moças não aceitassem dançar com oficiais das Forças Armadas. Acostumado desde abril de 1964 a cassar mandatos e suspender direitos políticos de parlamentares por meio dos Atos Institucionais (AI) 1 e 2, então já sem validade, o governo dobrou-se à Constituição vigorante, e a Procuradoria-Geral da República requereu ao Supremo Tribunal Federal que se instaurasse processo para cassar o mandato de Márcio Moreira Alves.

A Carta democrática de 1946 estabelecia, no art. 45, que os membros do Congresso Nacional não poderiam “ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Câmara”. Em votação histórica, a 12 de dezembro de 1968 a Câmara negou trânsito ao processo contra Moreira Alves, por 216 a 141 votos e 12 abstenções. Apesar de heroica, foi uma vitória de Pirro, pois no dia seguinte o comando militar desfechou autogolpe, proclamou seu quinto e mais truculento ato institucional, fechou o Congresso e cassou o mandato do deputado, suspendeu garantias fundamentais, institucionalizou a censura à imprensa, além de outras inomináveis arbitrariedades.

O “caso Márcio Moreira Alves” ficou na História como o pretexto para o infame AI-5, mas também remarcou a soberania do Poder Legislativo, e não só da oposição à época, pois 94 deputados do partido governista, a Arena, cerraram fileiras pelo respeito à inviolabilidade parlamentar que já vedava, como ainda veda, a prisão processual de membro do Congresso fora de unívoco caso de flagrante de crime em que a Lei Máxima não admita fiança.

A questão de 1968 ressurge agora, no caso da prisão do deputado João Francisco Brazão, vulgo Chiquinho, acusado de ser mandante do assassinato da vereadora Marielle Franco. Antes de mais nada, advirta-se, em favor das ponderações a seguir, que a causa vale mais que o santo. O parlamentar foi preso com base em delação premiada do algoz confesso de Marielle, portanto fora da indispensável flagrância de crime inafiançável que exige a Constituição de 1988, que copiou quase literalmente o texto de 1946.

A imunidade parlamentar, hoje instituída no art. 53, §2.º, foi afastada como se fora adereço jurídico, meramente decorativo, embora à custa de contorcionismos hermenêuticos. A representação da Polícia Federal com o pedido de prisão do deputado partiu de um ilusionismo. Assentou que o parlamentar, que esteve licenciado do mandato para ocupar um cargo na Prefeitura do Rio de Janeiro, ao tomar conhecimento de notícias que o incriminavam, exonerou-se e reassumiu seu mandato na Câmara – ato havido pela polícia como “desvio de finalidade”, porque o verdadeiro objetivo seria “reconquistar” a imunidade parlamentar e “escudar-se de eventual decreto prisional”. Na interpretação dos ínclitos policiais, “deste modo, atualmente, em razão do desvio de finalidade de seu ato de exoneração do cargo de secretário municipal, Chiquinho não faz jus à imunidade material prevista no artigo 53, §2.º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988″.

Fosse pouca a heterodoxia da negação de tão básica franquia do Parlamento só pelo retorno “defensivo” ao exercício do mandato, o douto ministro Alexandre de Moraes invocou o art. 312 do Código de Processo Penal para alinhar os fatores delitivos concretos ou potenciais que em geral autorizam a prisão preventiva, entre eles atos de obstrução à justiça, e concluiu: “A presença dos requisitos autorizadores da prisão preventiva afasta a afiançabilidade do crime, permitindo a prisão em flagrante do parlamentar”. Desprezou-se a taxatividade e o fato de que entre nós não há prisão preventiva para congressistas. Tais requisitos alcançam os não protegidos pelas imunidades parlamentares. Aplicou-se a regra onde valia a exceção.

Não menos heterodoxo é o comportamento abdicatório de deputados que já se pronunciaram a favor da prisão, a começar pelo relator na Comissão de Constituição e Justiça, Darci de Matos (PSD-SC), que ofereceu em horas parecer favorável. Mas os pedidos de vista do processo adiaram a votação final para ao menos 9 de abril. Ao plenário caberá uma decisão exclusiva acerca da legalidade da prisão, e não prejulgar o mérito das repulsivas ações atribuídas ao deputado, tarefa que cabe à Justiça. Que seja processado com o rigor da lei, mas nenhum predicamento do Congresso seja suprimido ou ignorado.

Há expectativas de que os integrantes da Câmara Baixa reeditem a independência dos parlamentares que em 1968 não se dobraram ao ataque à Constituição e à democracia. Que façam reverência sem reservas ao devido processo legal, revestido em sua natureza de valor universal para vigorar em quaisquer conjunturas políticas, em benefício não de pessoas, inocentes ou culpadas, mas do Estado Democrático de Direito fundado no respeito à Constituição.

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ADVOGADO CRIMINALISTA, FOI PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA OAB E DEPUTADO PELO PDT-SP

Aproximavam-se as comemorações do Dia da Independência no ano de 1968, Sete de Setembro em que os militares encastelados no poder exaltavam o golpe de Estado que haviam perpetrado quatro anos antes, quando um deputado do MDB-RJ subiu à tribuna para sugerir que nos bailes comemorativos da efeméride as moças não aceitassem dançar com oficiais das Forças Armadas. Acostumado desde abril de 1964 a cassar mandatos e suspender direitos políticos de parlamentares por meio dos Atos Institucionais (AI) 1 e 2, então já sem validade, o governo dobrou-se à Constituição vigorante, e a Procuradoria-Geral da República requereu ao Supremo Tribunal Federal que se instaurasse processo para cassar o mandato de Márcio Moreira Alves.

A Carta democrática de 1946 estabelecia, no art. 45, que os membros do Congresso Nacional não poderiam “ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Câmara”. Em votação histórica, a 12 de dezembro de 1968 a Câmara negou trânsito ao processo contra Moreira Alves, por 216 a 141 votos e 12 abstenções. Apesar de heroica, foi uma vitória de Pirro, pois no dia seguinte o comando militar desfechou autogolpe, proclamou seu quinto e mais truculento ato institucional, fechou o Congresso e cassou o mandato do deputado, suspendeu garantias fundamentais, institucionalizou a censura à imprensa, além de outras inomináveis arbitrariedades.

O “caso Márcio Moreira Alves” ficou na História como o pretexto para o infame AI-5, mas também remarcou a soberania do Poder Legislativo, e não só da oposição à época, pois 94 deputados do partido governista, a Arena, cerraram fileiras pelo respeito à inviolabilidade parlamentar que já vedava, como ainda veda, a prisão processual de membro do Congresso fora de unívoco caso de flagrante de crime em que a Lei Máxima não admita fiança.

A questão de 1968 ressurge agora, no caso da prisão do deputado João Francisco Brazão, vulgo Chiquinho, acusado de ser mandante do assassinato da vereadora Marielle Franco. Antes de mais nada, advirta-se, em favor das ponderações a seguir, que a causa vale mais que o santo. O parlamentar foi preso com base em delação premiada do algoz confesso de Marielle, portanto fora da indispensável flagrância de crime inafiançável que exige a Constituição de 1988, que copiou quase literalmente o texto de 1946.

A imunidade parlamentar, hoje instituída no art. 53, §2.º, foi afastada como se fora adereço jurídico, meramente decorativo, embora à custa de contorcionismos hermenêuticos. A representação da Polícia Federal com o pedido de prisão do deputado partiu de um ilusionismo. Assentou que o parlamentar, que esteve licenciado do mandato para ocupar um cargo na Prefeitura do Rio de Janeiro, ao tomar conhecimento de notícias que o incriminavam, exonerou-se e reassumiu seu mandato na Câmara – ato havido pela polícia como “desvio de finalidade”, porque o verdadeiro objetivo seria “reconquistar” a imunidade parlamentar e “escudar-se de eventual decreto prisional”. Na interpretação dos ínclitos policiais, “deste modo, atualmente, em razão do desvio de finalidade de seu ato de exoneração do cargo de secretário municipal, Chiquinho não faz jus à imunidade material prevista no artigo 53, §2.º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988″.

Fosse pouca a heterodoxia da negação de tão básica franquia do Parlamento só pelo retorno “defensivo” ao exercício do mandato, o douto ministro Alexandre de Moraes invocou o art. 312 do Código de Processo Penal para alinhar os fatores delitivos concretos ou potenciais que em geral autorizam a prisão preventiva, entre eles atos de obstrução à justiça, e concluiu: “A presença dos requisitos autorizadores da prisão preventiva afasta a afiançabilidade do crime, permitindo a prisão em flagrante do parlamentar”. Desprezou-se a taxatividade e o fato de que entre nós não há prisão preventiva para congressistas. Tais requisitos alcançam os não protegidos pelas imunidades parlamentares. Aplicou-se a regra onde valia a exceção.

Não menos heterodoxo é o comportamento abdicatório de deputados que já se pronunciaram a favor da prisão, a começar pelo relator na Comissão de Constituição e Justiça, Darci de Matos (PSD-SC), que ofereceu em horas parecer favorável. Mas os pedidos de vista do processo adiaram a votação final para ao menos 9 de abril. Ao plenário caberá uma decisão exclusiva acerca da legalidade da prisão, e não prejulgar o mérito das repulsivas ações atribuídas ao deputado, tarefa que cabe à Justiça. Que seja processado com o rigor da lei, mas nenhum predicamento do Congresso seja suprimido ou ignorado.

Há expectativas de que os integrantes da Câmara Baixa reeditem a independência dos parlamentares que em 1968 não se dobraram ao ataque à Constituição e à democracia. Que façam reverência sem reservas ao devido processo legal, revestido em sua natureza de valor universal para vigorar em quaisquer conjunturas políticas, em benefício não de pessoas, inocentes ou culpadas, mas do Estado Democrático de Direito fundado no respeito à Constituição.

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Aproximavam-se as comemorações do Dia da Independência no ano de 1968, Sete de Setembro em que os militares encastelados no poder exaltavam o golpe de Estado que haviam perpetrado quatro anos antes, quando um deputado do MDB-RJ subiu à tribuna para sugerir que nos bailes comemorativos da efeméride as moças não aceitassem dançar com oficiais das Forças Armadas. Acostumado desde abril de 1964 a cassar mandatos e suspender direitos políticos de parlamentares por meio dos Atos Institucionais (AI) 1 e 2, então já sem validade, o governo dobrou-se à Constituição vigorante, e a Procuradoria-Geral da República requereu ao Supremo Tribunal Federal que se instaurasse processo para cassar o mandato de Márcio Moreira Alves.

A Carta democrática de 1946 estabelecia, no art. 45, que os membros do Congresso Nacional não poderiam “ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Câmara”. Em votação histórica, a 12 de dezembro de 1968 a Câmara negou trânsito ao processo contra Moreira Alves, por 216 a 141 votos e 12 abstenções. Apesar de heroica, foi uma vitória de Pirro, pois no dia seguinte o comando militar desfechou autogolpe, proclamou seu quinto e mais truculento ato institucional, fechou o Congresso e cassou o mandato do deputado, suspendeu garantias fundamentais, institucionalizou a censura à imprensa, além de outras inomináveis arbitrariedades.

O “caso Márcio Moreira Alves” ficou na História como o pretexto para o infame AI-5, mas também remarcou a soberania do Poder Legislativo, e não só da oposição à época, pois 94 deputados do partido governista, a Arena, cerraram fileiras pelo respeito à inviolabilidade parlamentar que já vedava, como ainda veda, a prisão processual de membro do Congresso fora de unívoco caso de flagrante de crime em que a Lei Máxima não admita fiança.

A questão de 1968 ressurge agora, no caso da prisão do deputado João Francisco Brazão, vulgo Chiquinho, acusado de ser mandante do assassinato da vereadora Marielle Franco. Antes de mais nada, advirta-se, em favor das ponderações a seguir, que a causa vale mais que o santo. O parlamentar foi preso com base em delação premiada do algoz confesso de Marielle, portanto fora da indispensável flagrância de crime inafiançável que exige a Constituição de 1988, que copiou quase literalmente o texto de 1946.

A imunidade parlamentar, hoje instituída no art. 53, §2.º, foi afastada como se fora adereço jurídico, meramente decorativo, embora à custa de contorcionismos hermenêuticos. A representação da Polícia Federal com o pedido de prisão do deputado partiu de um ilusionismo. Assentou que o parlamentar, que esteve licenciado do mandato para ocupar um cargo na Prefeitura do Rio de Janeiro, ao tomar conhecimento de notícias que o incriminavam, exonerou-se e reassumiu seu mandato na Câmara – ato havido pela polícia como “desvio de finalidade”, porque o verdadeiro objetivo seria “reconquistar” a imunidade parlamentar e “escudar-se de eventual decreto prisional”. Na interpretação dos ínclitos policiais, “deste modo, atualmente, em razão do desvio de finalidade de seu ato de exoneração do cargo de secretário municipal, Chiquinho não faz jus à imunidade material prevista no artigo 53, §2.º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988″.

Fosse pouca a heterodoxia da negação de tão básica franquia do Parlamento só pelo retorno “defensivo” ao exercício do mandato, o douto ministro Alexandre de Moraes invocou o art. 312 do Código de Processo Penal para alinhar os fatores delitivos concretos ou potenciais que em geral autorizam a prisão preventiva, entre eles atos de obstrução à justiça, e concluiu: “A presença dos requisitos autorizadores da prisão preventiva afasta a afiançabilidade do crime, permitindo a prisão em flagrante do parlamentar”. Desprezou-se a taxatividade e o fato de que entre nós não há prisão preventiva para congressistas. Tais requisitos alcançam os não protegidos pelas imunidades parlamentares. Aplicou-se a regra onde valia a exceção.

Não menos heterodoxo é o comportamento abdicatório de deputados que já se pronunciaram a favor da prisão, a começar pelo relator na Comissão de Constituição e Justiça, Darci de Matos (PSD-SC), que ofereceu em horas parecer favorável. Mas os pedidos de vista do processo adiaram a votação final para ao menos 9 de abril. Ao plenário caberá uma decisão exclusiva acerca da legalidade da prisão, e não prejulgar o mérito das repulsivas ações atribuídas ao deputado, tarefa que cabe à Justiça. Que seja processado com o rigor da lei, mas nenhum predicamento do Congresso seja suprimido ou ignorado.

Há expectativas de que os integrantes da Câmara Baixa reeditem a independência dos parlamentares que em 1968 não se dobraram ao ataque à Constituição e à democracia. Que façam reverência sem reservas ao devido processo legal, revestido em sua natureza de valor universal para vigorar em quaisquer conjunturas políticas, em benefício não de pessoas, inocentes ou culpadas, mas do Estado Democrático de Direito fundado no respeito à Constituição.

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ADVOGADO CRIMINALISTA, FOI PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA OAB E DEPUTADO PELO PDT-SP

Opinião por José Roberto Batochio

Advogado criminalista, foi presidente do Conselho Federal da OAB e deputado pelo PDT-SP

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