Opinião|STF, traficantes e usuários de drogas


É perigoso dar crédito excessivo à quantidade da droga apreendida para fins de diferenciar o usuário do traficante

Por Gustavo de Miranda Coutinho

Com o voto do ministro Alexandre de Moraes, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento do processo que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio, que estava paralisado desde 2015, com os votos dos ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso já proferidos.

O julgamento gira em torno da (in)constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (11.343/06) e não irá abordar a venda, que seguirá ilegal. Alega-se que o aludido artigo fere o direito à intimidade e a privacidade, pois o Estado não pode interferir no arbítrio do cidadão, haja vista estar prejudicando sua própria saúde, e não a de terceiros.

Diante da repercussão geral reconhecida, a decisão do STF trará reflexos em casos de todo o País.

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O ministro Gilmar Mendes, relator do processo, votou para descriminalizar o porte para consumo de forma ampla, sem especificar o tipo da droga, e defendeu a manutenção de sanções administrativas, com exceção da pena de prestação de serviços à comunidade. Afirmou que a criminalização estigmatiza o usuário e compromete medidas de prevenção e redução de danos, além de gerar uma punição desproporcional, e ressaltou que a descriminalização do uso não significa a legalização ou liberalização da droga.

Barroso propôs que seja adotado como referência para diferenciação o porte de até 25 gramas de maconha ou a plantação de até seis mudas. Esses critérios valeriam até que o Congresso Nacional regulamentasse o assunto.

Fachin também foi no sentido de delegar a outros Poderes a função de definir algum parâmetro. Ele propôs que o STF declarasse como atribuição legislativa o estabelecimento de quantidades mínimas que sirvam de parâmetro para diferenciar usuário e traficante, e que órgãos do Poder Executivo emitissem parâmetros provisórios de quantidade para a diferenciação.

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Alexandre de Moraes defendeu a descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal e argumentou que é preciso fixar uma quantidade mínima para diferenciar o usuário do traficante entre 25 a 60 gramas, para garantir a aplicação isonômica da lei, sem levar em conta cor da pele, classe social, idade e grau de instrução de pessoas que são presas em flagrante, entre outros fatores. Entretanto, ressaltou que a quantidade não pode ser o único critério que defina o porte para uso pessoal, pois policiais podem fazer a prisão em flagrante de pessoas que estejam portando uma quantidade menor do que a prevista, “desde que, de maneira fundamentada, comprovem a presença de outros critérios caracterizadores do tráfico de entorpecentes”, conclui o ministro.

Diferenciar consumidor do traficante nunca foi tarefa fácil.

Sem entrar no mérito se o STF estaria ou não legislando ao sugerir parâmetros de quantidade de droga admissível para caracterizar o uso pessoal, pretende-se aqui analisar somente a redação do artigo 28 e suas nuances.

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Prescreve o artigo 28 da Lei 11.343/06: “Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1.º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

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§ 2.º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”

Notem: o parágrafo segundo não leva somente em conta a quantidade, mas também a natureza da droga, o local, as condições onde a ação foi desenvolvida, as circunstâncias sociais e pessoais do portador da droga, além da conduta e dos antecedentes do agente.

Ao tratar da quantidade, muitos acreditam que ela está intrinsecamente relacionado ao tráfico. Mas isso é relativo, pois há casos em que o usuário prefere adquirir uma quantidade maior para seu consumo, a fim de evitar a ida repetida aos locais de venda, onde o risco de prisão e até de sua própria vida existe.

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Por outro lado, uma pequena quantidade pode estar sendo destinada à venda. Por isso, a análise deve ser sempre ampla e exaustiva, observando-se, por exemplo, se há uma variedade de entorpecentes ou apreensão de outros instrumentos, tais como balança de precisão, anotações, conversas de WhatsApp, bem como o local e outras circunstâncias no momento da apreensão.

Logo, a quantidade não é, necessariamente, um indicativo seguro.

Quanto às condições e ao local, focaliza-se muito o lugar onde há o comércio de drogas. Ocorre que, às vezes, quem acabou de comprar está próximo da boca e, por vezes, com vários pacotes, pois assim a droga é vendida (fracionada). E só por isso poderá o julgador concluir pelo tráfico? É delicada essa conclusão.

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Circunstâncias sociais e pessoais, por sua vez, podem gerar até um juízo preconceituoso. Imaginemos uma pessoa de grande poder aquisitivo que é flagrada com 250 gramas de maconha. Ela pode alegar que não precisa do tráfico para sobreviver e que só usa a droga para lazer. Já diante uma pessoa pobre, flagrada com 30 gramas, fracionadas em vários cigarros de maconha, pode-se aferir que ela esteja vendendo para sobreviver, pois ela não tem dinheiro para adquirir os cigarros? Parece uma dose muito forte de preconceito.

A conduta e os antecedentes são outros indicativos péssimos, porque, se você levanta a ficha de um indivíduo que já tem uma condenação por tráfico, por exemplo, isso importa dizer que ele será traficante para sempre?

Em verdade, o artigo 28 precisa ser revisto, de repente ganhar novos critérios, pois, apesar de fornecer todo um conjunto de circunstâncias para verificar se o indivíduo é mesmo usuário ou traficante, na prática, muitas vezes, é difícil ter certeza.

Por fim, ressalta-se o perigo de dar crédito excessivo à quantidade da droga apreendida para fins de diferenciar o usuário do traficante, discordando de eventual fixação de limite para consumo próprio, pelas razões expostas.

*

ADVOGADO CRIMINALISTA, CONSELHEIRO MUNICIPAL DE SEGURANÇA DE FLORIANÓPOLIS, É ESPECIALISTA EM DIREITO PÚBLICO PELA ESCOLA DA MAGISTRATURA DE SANTA CATARINA (ESMESC)

Com o voto do ministro Alexandre de Moraes, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento do processo que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio, que estava paralisado desde 2015, com os votos dos ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso já proferidos.

O julgamento gira em torno da (in)constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (11.343/06) e não irá abordar a venda, que seguirá ilegal. Alega-se que o aludido artigo fere o direito à intimidade e a privacidade, pois o Estado não pode interferir no arbítrio do cidadão, haja vista estar prejudicando sua própria saúde, e não a de terceiros.

Diante da repercussão geral reconhecida, a decisão do STF trará reflexos em casos de todo o País.

O ministro Gilmar Mendes, relator do processo, votou para descriminalizar o porte para consumo de forma ampla, sem especificar o tipo da droga, e defendeu a manutenção de sanções administrativas, com exceção da pena de prestação de serviços à comunidade. Afirmou que a criminalização estigmatiza o usuário e compromete medidas de prevenção e redução de danos, além de gerar uma punição desproporcional, e ressaltou que a descriminalização do uso não significa a legalização ou liberalização da droga.

Barroso propôs que seja adotado como referência para diferenciação o porte de até 25 gramas de maconha ou a plantação de até seis mudas. Esses critérios valeriam até que o Congresso Nacional regulamentasse o assunto.

Fachin também foi no sentido de delegar a outros Poderes a função de definir algum parâmetro. Ele propôs que o STF declarasse como atribuição legislativa o estabelecimento de quantidades mínimas que sirvam de parâmetro para diferenciar usuário e traficante, e que órgãos do Poder Executivo emitissem parâmetros provisórios de quantidade para a diferenciação.

Alexandre de Moraes defendeu a descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal e argumentou que é preciso fixar uma quantidade mínima para diferenciar o usuário do traficante entre 25 a 60 gramas, para garantir a aplicação isonômica da lei, sem levar em conta cor da pele, classe social, idade e grau de instrução de pessoas que são presas em flagrante, entre outros fatores. Entretanto, ressaltou que a quantidade não pode ser o único critério que defina o porte para uso pessoal, pois policiais podem fazer a prisão em flagrante de pessoas que estejam portando uma quantidade menor do que a prevista, “desde que, de maneira fundamentada, comprovem a presença de outros critérios caracterizadores do tráfico de entorpecentes”, conclui o ministro.

Diferenciar consumidor do traficante nunca foi tarefa fácil.

Sem entrar no mérito se o STF estaria ou não legislando ao sugerir parâmetros de quantidade de droga admissível para caracterizar o uso pessoal, pretende-se aqui analisar somente a redação do artigo 28 e suas nuances.

Prescreve o artigo 28 da Lei 11.343/06: “Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1.º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

§ 2.º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”

Notem: o parágrafo segundo não leva somente em conta a quantidade, mas também a natureza da droga, o local, as condições onde a ação foi desenvolvida, as circunstâncias sociais e pessoais do portador da droga, além da conduta e dos antecedentes do agente.

Ao tratar da quantidade, muitos acreditam que ela está intrinsecamente relacionado ao tráfico. Mas isso é relativo, pois há casos em que o usuário prefere adquirir uma quantidade maior para seu consumo, a fim de evitar a ida repetida aos locais de venda, onde o risco de prisão e até de sua própria vida existe.

Por outro lado, uma pequena quantidade pode estar sendo destinada à venda. Por isso, a análise deve ser sempre ampla e exaustiva, observando-se, por exemplo, se há uma variedade de entorpecentes ou apreensão de outros instrumentos, tais como balança de precisão, anotações, conversas de WhatsApp, bem como o local e outras circunstâncias no momento da apreensão.

Logo, a quantidade não é, necessariamente, um indicativo seguro.

Quanto às condições e ao local, focaliza-se muito o lugar onde há o comércio de drogas. Ocorre que, às vezes, quem acabou de comprar está próximo da boca e, por vezes, com vários pacotes, pois assim a droga é vendida (fracionada). E só por isso poderá o julgador concluir pelo tráfico? É delicada essa conclusão.

Circunstâncias sociais e pessoais, por sua vez, podem gerar até um juízo preconceituoso. Imaginemos uma pessoa de grande poder aquisitivo que é flagrada com 250 gramas de maconha. Ela pode alegar que não precisa do tráfico para sobreviver e que só usa a droga para lazer. Já diante uma pessoa pobre, flagrada com 30 gramas, fracionadas em vários cigarros de maconha, pode-se aferir que ela esteja vendendo para sobreviver, pois ela não tem dinheiro para adquirir os cigarros? Parece uma dose muito forte de preconceito.

A conduta e os antecedentes são outros indicativos péssimos, porque, se você levanta a ficha de um indivíduo que já tem uma condenação por tráfico, por exemplo, isso importa dizer que ele será traficante para sempre?

Em verdade, o artigo 28 precisa ser revisto, de repente ganhar novos critérios, pois, apesar de fornecer todo um conjunto de circunstâncias para verificar se o indivíduo é mesmo usuário ou traficante, na prática, muitas vezes, é difícil ter certeza.

Por fim, ressalta-se o perigo de dar crédito excessivo à quantidade da droga apreendida para fins de diferenciar o usuário do traficante, discordando de eventual fixação de limite para consumo próprio, pelas razões expostas.

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ADVOGADO CRIMINALISTA, CONSELHEIRO MUNICIPAL DE SEGURANÇA DE FLORIANÓPOLIS, É ESPECIALISTA EM DIREITO PÚBLICO PELA ESCOLA DA MAGISTRATURA DE SANTA CATARINA (ESMESC)

Com o voto do ministro Alexandre de Moraes, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento do processo que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio, que estava paralisado desde 2015, com os votos dos ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso já proferidos.

O julgamento gira em torno da (in)constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (11.343/06) e não irá abordar a venda, que seguirá ilegal. Alega-se que o aludido artigo fere o direito à intimidade e a privacidade, pois o Estado não pode interferir no arbítrio do cidadão, haja vista estar prejudicando sua própria saúde, e não a de terceiros.

Diante da repercussão geral reconhecida, a decisão do STF trará reflexos em casos de todo o País.

O ministro Gilmar Mendes, relator do processo, votou para descriminalizar o porte para consumo de forma ampla, sem especificar o tipo da droga, e defendeu a manutenção de sanções administrativas, com exceção da pena de prestação de serviços à comunidade. Afirmou que a criminalização estigmatiza o usuário e compromete medidas de prevenção e redução de danos, além de gerar uma punição desproporcional, e ressaltou que a descriminalização do uso não significa a legalização ou liberalização da droga.

Barroso propôs que seja adotado como referência para diferenciação o porte de até 25 gramas de maconha ou a plantação de até seis mudas. Esses critérios valeriam até que o Congresso Nacional regulamentasse o assunto.

Fachin também foi no sentido de delegar a outros Poderes a função de definir algum parâmetro. Ele propôs que o STF declarasse como atribuição legislativa o estabelecimento de quantidades mínimas que sirvam de parâmetro para diferenciar usuário e traficante, e que órgãos do Poder Executivo emitissem parâmetros provisórios de quantidade para a diferenciação.

Alexandre de Moraes defendeu a descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal e argumentou que é preciso fixar uma quantidade mínima para diferenciar o usuário do traficante entre 25 a 60 gramas, para garantir a aplicação isonômica da lei, sem levar em conta cor da pele, classe social, idade e grau de instrução de pessoas que são presas em flagrante, entre outros fatores. Entretanto, ressaltou que a quantidade não pode ser o único critério que defina o porte para uso pessoal, pois policiais podem fazer a prisão em flagrante de pessoas que estejam portando uma quantidade menor do que a prevista, “desde que, de maneira fundamentada, comprovem a presença de outros critérios caracterizadores do tráfico de entorpecentes”, conclui o ministro.

Diferenciar consumidor do traficante nunca foi tarefa fácil.

Sem entrar no mérito se o STF estaria ou não legislando ao sugerir parâmetros de quantidade de droga admissível para caracterizar o uso pessoal, pretende-se aqui analisar somente a redação do artigo 28 e suas nuances.

Prescreve o artigo 28 da Lei 11.343/06: “Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1.º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

§ 2.º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”

Notem: o parágrafo segundo não leva somente em conta a quantidade, mas também a natureza da droga, o local, as condições onde a ação foi desenvolvida, as circunstâncias sociais e pessoais do portador da droga, além da conduta e dos antecedentes do agente.

Ao tratar da quantidade, muitos acreditam que ela está intrinsecamente relacionado ao tráfico. Mas isso é relativo, pois há casos em que o usuário prefere adquirir uma quantidade maior para seu consumo, a fim de evitar a ida repetida aos locais de venda, onde o risco de prisão e até de sua própria vida existe.

Por outro lado, uma pequena quantidade pode estar sendo destinada à venda. Por isso, a análise deve ser sempre ampla e exaustiva, observando-se, por exemplo, se há uma variedade de entorpecentes ou apreensão de outros instrumentos, tais como balança de precisão, anotações, conversas de WhatsApp, bem como o local e outras circunstâncias no momento da apreensão.

Logo, a quantidade não é, necessariamente, um indicativo seguro.

Quanto às condições e ao local, focaliza-se muito o lugar onde há o comércio de drogas. Ocorre que, às vezes, quem acabou de comprar está próximo da boca e, por vezes, com vários pacotes, pois assim a droga é vendida (fracionada). E só por isso poderá o julgador concluir pelo tráfico? É delicada essa conclusão.

Circunstâncias sociais e pessoais, por sua vez, podem gerar até um juízo preconceituoso. Imaginemos uma pessoa de grande poder aquisitivo que é flagrada com 250 gramas de maconha. Ela pode alegar que não precisa do tráfico para sobreviver e que só usa a droga para lazer. Já diante uma pessoa pobre, flagrada com 30 gramas, fracionadas em vários cigarros de maconha, pode-se aferir que ela esteja vendendo para sobreviver, pois ela não tem dinheiro para adquirir os cigarros? Parece uma dose muito forte de preconceito.

A conduta e os antecedentes são outros indicativos péssimos, porque, se você levanta a ficha de um indivíduo que já tem uma condenação por tráfico, por exemplo, isso importa dizer que ele será traficante para sempre?

Em verdade, o artigo 28 precisa ser revisto, de repente ganhar novos critérios, pois, apesar de fornecer todo um conjunto de circunstâncias para verificar se o indivíduo é mesmo usuário ou traficante, na prática, muitas vezes, é difícil ter certeza.

Por fim, ressalta-se o perigo de dar crédito excessivo à quantidade da droga apreendida para fins de diferenciar o usuário do traficante, discordando de eventual fixação de limite para consumo próprio, pelas razões expostas.

*

ADVOGADO CRIMINALISTA, CONSELHEIRO MUNICIPAL DE SEGURANÇA DE FLORIANÓPOLIS, É ESPECIALISTA EM DIREITO PÚBLICO PELA ESCOLA DA MAGISTRATURA DE SANTA CATARINA (ESMESC)

Com o voto do ministro Alexandre de Moraes, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento do processo que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio, que estava paralisado desde 2015, com os votos dos ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso já proferidos.

O julgamento gira em torno da (in)constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (11.343/06) e não irá abordar a venda, que seguirá ilegal. Alega-se que o aludido artigo fere o direito à intimidade e a privacidade, pois o Estado não pode interferir no arbítrio do cidadão, haja vista estar prejudicando sua própria saúde, e não a de terceiros.

Diante da repercussão geral reconhecida, a decisão do STF trará reflexos em casos de todo o País.

O ministro Gilmar Mendes, relator do processo, votou para descriminalizar o porte para consumo de forma ampla, sem especificar o tipo da droga, e defendeu a manutenção de sanções administrativas, com exceção da pena de prestação de serviços à comunidade. Afirmou que a criminalização estigmatiza o usuário e compromete medidas de prevenção e redução de danos, além de gerar uma punição desproporcional, e ressaltou que a descriminalização do uso não significa a legalização ou liberalização da droga.

Barroso propôs que seja adotado como referência para diferenciação o porte de até 25 gramas de maconha ou a plantação de até seis mudas. Esses critérios valeriam até que o Congresso Nacional regulamentasse o assunto.

Fachin também foi no sentido de delegar a outros Poderes a função de definir algum parâmetro. Ele propôs que o STF declarasse como atribuição legislativa o estabelecimento de quantidades mínimas que sirvam de parâmetro para diferenciar usuário e traficante, e que órgãos do Poder Executivo emitissem parâmetros provisórios de quantidade para a diferenciação.

Alexandre de Moraes defendeu a descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal e argumentou que é preciso fixar uma quantidade mínima para diferenciar o usuário do traficante entre 25 a 60 gramas, para garantir a aplicação isonômica da lei, sem levar em conta cor da pele, classe social, idade e grau de instrução de pessoas que são presas em flagrante, entre outros fatores. Entretanto, ressaltou que a quantidade não pode ser o único critério que defina o porte para uso pessoal, pois policiais podem fazer a prisão em flagrante de pessoas que estejam portando uma quantidade menor do que a prevista, “desde que, de maneira fundamentada, comprovem a presença de outros critérios caracterizadores do tráfico de entorpecentes”, conclui o ministro.

Diferenciar consumidor do traficante nunca foi tarefa fácil.

Sem entrar no mérito se o STF estaria ou não legislando ao sugerir parâmetros de quantidade de droga admissível para caracterizar o uso pessoal, pretende-se aqui analisar somente a redação do artigo 28 e suas nuances.

Prescreve o artigo 28 da Lei 11.343/06: “Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1.º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

§ 2.º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”

Notem: o parágrafo segundo não leva somente em conta a quantidade, mas também a natureza da droga, o local, as condições onde a ação foi desenvolvida, as circunstâncias sociais e pessoais do portador da droga, além da conduta e dos antecedentes do agente.

Ao tratar da quantidade, muitos acreditam que ela está intrinsecamente relacionado ao tráfico. Mas isso é relativo, pois há casos em que o usuário prefere adquirir uma quantidade maior para seu consumo, a fim de evitar a ida repetida aos locais de venda, onde o risco de prisão e até de sua própria vida existe.

Por outro lado, uma pequena quantidade pode estar sendo destinada à venda. Por isso, a análise deve ser sempre ampla e exaustiva, observando-se, por exemplo, se há uma variedade de entorpecentes ou apreensão de outros instrumentos, tais como balança de precisão, anotações, conversas de WhatsApp, bem como o local e outras circunstâncias no momento da apreensão.

Logo, a quantidade não é, necessariamente, um indicativo seguro.

Quanto às condições e ao local, focaliza-se muito o lugar onde há o comércio de drogas. Ocorre que, às vezes, quem acabou de comprar está próximo da boca e, por vezes, com vários pacotes, pois assim a droga é vendida (fracionada). E só por isso poderá o julgador concluir pelo tráfico? É delicada essa conclusão.

Circunstâncias sociais e pessoais, por sua vez, podem gerar até um juízo preconceituoso. Imaginemos uma pessoa de grande poder aquisitivo que é flagrada com 250 gramas de maconha. Ela pode alegar que não precisa do tráfico para sobreviver e que só usa a droga para lazer. Já diante uma pessoa pobre, flagrada com 30 gramas, fracionadas em vários cigarros de maconha, pode-se aferir que ela esteja vendendo para sobreviver, pois ela não tem dinheiro para adquirir os cigarros? Parece uma dose muito forte de preconceito.

A conduta e os antecedentes são outros indicativos péssimos, porque, se você levanta a ficha de um indivíduo que já tem uma condenação por tráfico, por exemplo, isso importa dizer que ele será traficante para sempre?

Em verdade, o artigo 28 precisa ser revisto, de repente ganhar novos critérios, pois, apesar de fornecer todo um conjunto de circunstâncias para verificar se o indivíduo é mesmo usuário ou traficante, na prática, muitas vezes, é difícil ter certeza.

Por fim, ressalta-se o perigo de dar crédito excessivo à quantidade da droga apreendida para fins de diferenciar o usuário do traficante, discordando de eventual fixação de limite para consumo próprio, pelas razões expostas.

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ADVOGADO CRIMINALISTA, CONSELHEIRO MUNICIPAL DE SEGURANÇA DE FLORIANÓPOLIS, É ESPECIALISTA EM DIREITO PÚBLICO PELA ESCOLA DA MAGISTRATURA DE SANTA CATARINA (ESMESC)

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