Opinião|Um estado de exceção em legítima defesa


Além da descompostura, havia uma questão fora dos ritos – mas ela não era nova e não foi revelada pelos gigabytes colhidos de um celular

Por Marcelo Semer

Quando um assessor, desembargador de carreira, manda recado a um perito para que use a criatividade ao montar relatório que vai subsidiar decisões do ministro da Suprema Corte, não é possível fingir naturalidade. Alguma coisa está fora da ordem. A questão é saber exatamente o quê.

Não se pode dizer que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) forjava provas, porque a reunião de impropérios proferidos por quem pretendia dinamitar a democracia era um exercício até desnecessário. As manifestações eram públicas. O ministro podia recolhê-las em pesquisa rápida nas redes sociais.

Tudo isso seria, como se alardeou, “fora dos ritos”, mas não havia rito para que o condutor do inquérito tomasse ciência dos discursos de ódio. O poder de polícia do presidente do TSE não deveria se misturar com o do relator no Supremo Tribunal Federal (STF) – mas Alexandre de Moraes ocupava ambos os cargos e a vinculação entre a desinformação eleitoral e o objeto da apuração criminal era evidente.

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O poder da Justiça Eleitoral pode até ser exagerado: mais do que um tribunal que só julga, tem competência de editar normas e executá-las. Mas a verdade é que a existência de uma Justiça Eleitoral alheia ao Poder Executivo e aos partidos revelou-se essencial na história. A realização dos pleitos e declaração dos resultados só incomoda a quem se voltou contra o processo, mais do que contra o juiz.

Além da descompostura, havia, no entanto, uma questão fora dos ritos – mas ela não era nova e não foi revelada pelos gigabytes colhidos de um celular. Ela não residia na indiscrição do desembargador ou na licenciosidade dos diálogos, tomados pelo suposto manto da privacidade.

O que esteve fora de ordem, e por mais de cinco anos, foi justamente o inquérito das fake news ou, depois, dos atos antidemocráticos. Voltemos no tempo. O sinal amarelo soou no STF a partir das críticas pesadas formuladas pelos procuradores Diogo Castor e Deltan Dallagnol, que jogaram a opinião pública contra o STF, quando foi reconhecida a incompetência da vara de Curitiba para julgar questões eleitorais, como contribuições de empreiteiras a políticos candidatos.

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A seu turno, Jair Bolsonaro estimulava aliados com agudas críticas aos demais Poderes, na linha contra tudo e contra todos, aproveitando de fantasiosas conspirações para ocultar maus resultados. No conjunto da obra, um Poder sob fogo cerrado.

O inquérito nasceu de uma interpretação exageradamente elástica do que seriam crimes cometidos dentro no tribunal. E foi distribuído sem sorteio, como se fosse possível escolher um secretário de Segurança entre os ministros. É natural que essa escolha recaísse sobre Moraes, mas nada jurídica.

O inquérito subverteu o sistema acusatório, não há como negar. Navegou sem e muitas vezes contra manifestações do Ministério Público (MP), a quem os autos deveriam ser, em última instância, endereçados. Edson Fachin, relator do acórdão que reconheceu a constitucionalidade no plenário, chegou a dizer que era possível na fase pré-investigativa – até para o STF saber para que órgão do MP encaminhá-lo. Mas o inquérito deu cria a decisões cautelares de caráter jurisdicional que eram muito mais do que exercício de investigação. Abriu a porta para vulnerar o princípio da inércia e virou uma chave mestra para lidar com os que conspiravam, ainda que sem o foro privativo. E as conexões se mostraram ilimitadas.

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Funcionou como instrumento próprio de um estado de exceção, mas com uma circunstância fortemente atenuante: um estado de exceção em legítima defesa.

Quando o presidente da República, com palavras e atos, assacou contra a Suprema Corte, avalizando movimentos antidemocráticos, ameaçando comprimir o poder dos juízes, quem estava lá para limitar seus movimentos? O MP não estava. Capturado pelo poder que deveria fiscalizar, a Procuradoria-Geral da República mesclou a omissão em face dos crimes à adesão aos propósitos do governo. Como depender do sistema acusatório, se o acusador estava entrelaçado com o agressor e agia apenas para imunizá-lo das leis?

Não devemos naturalizar os princípios que ficaram soterrados, mas compreender que o estado maior de exceção que se formava sobre o País ameaçou o Direito em sua totalidade, a democracia até em seu mínimo existencial. Se o golpismo tivesse êxito, antes, durante ou depois das eleições, era um país inteiro que navegaria fora dos ritos.

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Reconhecer a emergência da exceção não significa fazê-la regra; o inquérito das fake news não deve ser encarado como precedente constitucional – como foi, aliás, no julgamento do STF que retalhou, mais por conveniência que por princípio, o juiz das garantias.

É preciso restaurar veias esgarçadas, o princípio do juiz natural, o sistema acusatório e a inércia da jurisdição. Eles protegem a todos. Mas, para restabelecer a plenitude democrática, é essencial que o golpismo seja julgado – como pretende evitar, muitas vezes sem dizer, grande parte dos críticos de Moraes. Que se encerrem os inquéritos judiciais e se promova a regular distribuição das denúncias que já tardam.

É desse rito, de passagem, que não podemos nos furtar.

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*

DESEMBARGADOR DO TJSP, ESCRITOR, MESTRE EM DIREITO PENAL E DOUTOR EM CRIMINOLOGIA PELA FACULDADE DE DIREITO DA USP, É AUTOR DE ‘OS PARADOXOS DA JUSTIÇA: JUDICIÁRIO E POLÍTICA NO BRASIL’ (CONTRACORRENTE, 2021)

Quando um assessor, desembargador de carreira, manda recado a um perito para que use a criatividade ao montar relatório que vai subsidiar decisões do ministro da Suprema Corte, não é possível fingir naturalidade. Alguma coisa está fora da ordem. A questão é saber exatamente o quê.

Não se pode dizer que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) forjava provas, porque a reunião de impropérios proferidos por quem pretendia dinamitar a democracia era um exercício até desnecessário. As manifestações eram públicas. O ministro podia recolhê-las em pesquisa rápida nas redes sociais.

Tudo isso seria, como se alardeou, “fora dos ritos”, mas não havia rito para que o condutor do inquérito tomasse ciência dos discursos de ódio. O poder de polícia do presidente do TSE não deveria se misturar com o do relator no Supremo Tribunal Federal (STF) – mas Alexandre de Moraes ocupava ambos os cargos e a vinculação entre a desinformação eleitoral e o objeto da apuração criminal era evidente.

O poder da Justiça Eleitoral pode até ser exagerado: mais do que um tribunal que só julga, tem competência de editar normas e executá-las. Mas a verdade é que a existência de uma Justiça Eleitoral alheia ao Poder Executivo e aos partidos revelou-se essencial na história. A realização dos pleitos e declaração dos resultados só incomoda a quem se voltou contra o processo, mais do que contra o juiz.

Além da descompostura, havia, no entanto, uma questão fora dos ritos – mas ela não era nova e não foi revelada pelos gigabytes colhidos de um celular. Ela não residia na indiscrição do desembargador ou na licenciosidade dos diálogos, tomados pelo suposto manto da privacidade.

O que esteve fora de ordem, e por mais de cinco anos, foi justamente o inquérito das fake news ou, depois, dos atos antidemocráticos. Voltemos no tempo. O sinal amarelo soou no STF a partir das críticas pesadas formuladas pelos procuradores Diogo Castor e Deltan Dallagnol, que jogaram a opinião pública contra o STF, quando foi reconhecida a incompetência da vara de Curitiba para julgar questões eleitorais, como contribuições de empreiteiras a políticos candidatos.

A seu turno, Jair Bolsonaro estimulava aliados com agudas críticas aos demais Poderes, na linha contra tudo e contra todos, aproveitando de fantasiosas conspirações para ocultar maus resultados. No conjunto da obra, um Poder sob fogo cerrado.

O inquérito nasceu de uma interpretação exageradamente elástica do que seriam crimes cometidos dentro no tribunal. E foi distribuído sem sorteio, como se fosse possível escolher um secretário de Segurança entre os ministros. É natural que essa escolha recaísse sobre Moraes, mas nada jurídica.

O inquérito subverteu o sistema acusatório, não há como negar. Navegou sem e muitas vezes contra manifestações do Ministério Público (MP), a quem os autos deveriam ser, em última instância, endereçados. Edson Fachin, relator do acórdão que reconheceu a constitucionalidade no plenário, chegou a dizer que era possível na fase pré-investigativa – até para o STF saber para que órgão do MP encaminhá-lo. Mas o inquérito deu cria a decisões cautelares de caráter jurisdicional que eram muito mais do que exercício de investigação. Abriu a porta para vulnerar o princípio da inércia e virou uma chave mestra para lidar com os que conspiravam, ainda que sem o foro privativo. E as conexões se mostraram ilimitadas.

Funcionou como instrumento próprio de um estado de exceção, mas com uma circunstância fortemente atenuante: um estado de exceção em legítima defesa.

Quando o presidente da República, com palavras e atos, assacou contra a Suprema Corte, avalizando movimentos antidemocráticos, ameaçando comprimir o poder dos juízes, quem estava lá para limitar seus movimentos? O MP não estava. Capturado pelo poder que deveria fiscalizar, a Procuradoria-Geral da República mesclou a omissão em face dos crimes à adesão aos propósitos do governo. Como depender do sistema acusatório, se o acusador estava entrelaçado com o agressor e agia apenas para imunizá-lo das leis?

Não devemos naturalizar os princípios que ficaram soterrados, mas compreender que o estado maior de exceção que se formava sobre o País ameaçou o Direito em sua totalidade, a democracia até em seu mínimo existencial. Se o golpismo tivesse êxito, antes, durante ou depois das eleições, era um país inteiro que navegaria fora dos ritos.

Reconhecer a emergência da exceção não significa fazê-la regra; o inquérito das fake news não deve ser encarado como precedente constitucional – como foi, aliás, no julgamento do STF que retalhou, mais por conveniência que por princípio, o juiz das garantias.

É preciso restaurar veias esgarçadas, o princípio do juiz natural, o sistema acusatório e a inércia da jurisdição. Eles protegem a todos. Mas, para restabelecer a plenitude democrática, é essencial que o golpismo seja julgado – como pretende evitar, muitas vezes sem dizer, grande parte dos críticos de Moraes. Que se encerrem os inquéritos judiciais e se promova a regular distribuição das denúncias que já tardam.

É desse rito, de passagem, que não podemos nos furtar.

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DESEMBARGADOR DO TJSP, ESCRITOR, MESTRE EM DIREITO PENAL E DOUTOR EM CRIMINOLOGIA PELA FACULDADE DE DIREITO DA USP, É AUTOR DE ‘OS PARADOXOS DA JUSTIÇA: JUDICIÁRIO E POLÍTICA NO BRASIL’ (CONTRACORRENTE, 2021)

Quando um assessor, desembargador de carreira, manda recado a um perito para que use a criatividade ao montar relatório que vai subsidiar decisões do ministro da Suprema Corte, não é possível fingir naturalidade. Alguma coisa está fora da ordem. A questão é saber exatamente o quê.

Não se pode dizer que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) forjava provas, porque a reunião de impropérios proferidos por quem pretendia dinamitar a democracia era um exercício até desnecessário. As manifestações eram públicas. O ministro podia recolhê-las em pesquisa rápida nas redes sociais.

Tudo isso seria, como se alardeou, “fora dos ritos”, mas não havia rito para que o condutor do inquérito tomasse ciência dos discursos de ódio. O poder de polícia do presidente do TSE não deveria se misturar com o do relator no Supremo Tribunal Federal (STF) – mas Alexandre de Moraes ocupava ambos os cargos e a vinculação entre a desinformação eleitoral e o objeto da apuração criminal era evidente.

O poder da Justiça Eleitoral pode até ser exagerado: mais do que um tribunal que só julga, tem competência de editar normas e executá-las. Mas a verdade é que a existência de uma Justiça Eleitoral alheia ao Poder Executivo e aos partidos revelou-se essencial na história. A realização dos pleitos e declaração dos resultados só incomoda a quem se voltou contra o processo, mais do que contra o juiz.

Além da descompostura, havia, no entanto, uma questão fora dos ritos – mas ela não era nova e não foi revelada pelos gigabytes colhidos de um celular. Ela não residia na indiscrição do desembargador ou na licenciosidade dos diálogos, tomados pelo suposto manto da privacidade.

O que esteve fora de ordem, e por mais de cinco anos, foi justamente o inquérito das fake news ou, depois, dos atos antidemocráticos. Voltemos no tempo. O sinal amarelo soou no STF a partir das críticas pesadas formuladas pelos procuradores Diogo Castor e Deltan Dallagnol, que jogaram a opinião pública contra o STF, quando foi reconhecida a incompetência da vara de Curitiba para julgar questões eleitorais, como contribuições de empreiteiras a políticos candidatos.

A seu turno, Jair Bolsonaro estimulava aliados com agudas críticas aos demais Poderes, na linha contra tudo e contra todos, aproveitando de fantasiosas conspirações para ocultar maus resultados. No conjunto da obra, um Poder sob fogo cerrado.

O inquérito nasceu de uma interpretação exageradamente elástica do que seriam crimes cometidos dentro no tribunal. E foi distribuído sem sorteio, como se fosse possível escolher um secretário de Segurança entre os ministros. É natural que essa escolha recaísse sobre Moraes, mas nada jurídica.

O inquérito subverteu o sistema acusatório, não há como negar. Navegou sem e muitas vezes contra manifestações do Ministério Público (MP), a quem os autos deveriam ser, em última instância, endereçados. Edson Fachin, relator do acórdão que reconheceu a constitucionalidade no plenário, chegou a dizer que era possível na fase pré-investigativa – até para o STF saber para que órgão do MP encaminhá-lo. Mas o inquérito deu cria a decisões cautelares de caráter jurisdicional que eram muito mais do que exercício de investigação. Abriu a porta para vulnerar o princípio da inércia e virou uma chave mestra para lidar com os que conspiravam, ainda que sem o foro privativo. E as conexões se mostraram ilimitadas.

Funcionou como instrumento próprio de um estado de exceção, mas com uma circunstância fortemente atenuante: um estado de exceção em legítima defesa.

Quando o presidente da República, com palavras e atos, assacou contra a Suprema Corte, avalizando movimentos antidemocráticos, ameaçando comprimir o poder dos juízes, quem estava lá para limitar seus movimentos? O MP não estava. Capturado pelo poder que deveria fiscalizar, a Procuradoria-Geral da República mesclou a omissão em face dos crimes à adesão aos propósitos do governo. Como depender do sistema acusatório, se o acusador estava entrelaçado com o agressor e agia apenas para imunizá-lo das leis?

Não devemos naturalizar os princípios que ficaram soterrados, mas compreender que o estado maior de exceção que se formava sobre o País ameaçou o Direito em sua totalidade, a democracia até em seu mínimo existencial. Se o golpismo tivesse êxito, antes, durante ou depois das eleições, era um país inteiro que navegaria fora dos ritos.

Reconhecer a emergência da exceção não significa fazê-la regra; o inquérito das fake news não deve ser encarado como precedente constitucional – como foi, aliás, no julgamento do STF que retalhou, mais por conveniência que por princípio, o juiz das garantias.

É preciso restaurar veias esgarçadas, o princípio do juiz natural, o sistema acusatório e a inércia da jurisdição. Eles protegem a todos. Mas, para restabelecer a plenitude democrática, é essencial que o golpismo seja julgado – como pretende evitar, muitas vezes sem dizer, grande parte dos críticos de Moraes. Que se encerrem os inquéritos judiciais e se promova a regular distribuição das denúncias que já tardam.

É desse rito, de passagem, que não podemos nos furtar.

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DESEMBARGADOR DO TJSP, ESCRITOR, MESTRE EM DIREITO PENAL E DOUTOR EM CRIMINOLOGIA PELA FACULDADE DE DIREITO DA USP, É AUTOR DE ‘OS PARADOXOS DA JUSTIÇA: JUDICIÁRIO E POLÍTICA NO BRASIL’ (CONTRACORRENTE, 2021)

Quando um assessor, desembargador de carreira, manda recado a um perito para que use a criatividade ao montar relatório que vai subsidiar decisões do ministro da Suprema Corte, não é possível fingir naturalidade. Alguma coisa está fora da ordem. A questão é saber exatamente o quê.

Não se pode dizer que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) forjava provas, porque a reunião de impropérios proferidos por quem pretendia dinamitar a democracia era um exercício até desnecessário. As manifestações eram públicas. O ministro podia recolhê-las em pesquisa rápida nas redes sociais.

Tudo isso seria, como se alardeou, “fora dos ritos”, mas não havia rito para que o condutor do inquérito tomasse ciência dos discursos de ódio. O poder de polícia do presidente do TSE não deveria se misturar com o do relator no Supremo Tribunal Federal (STF) – mas Alexandre de Moraes ocupava ambos os cargos e a vinculação entre a desinformação eleitoral e o objeto da apuração criminal era evidente.

O poder da Justiça Eleitoral pode até ser exagerado: mais do que um tribunal que só julga, tem competência de editar normas e executá-las. Mas a verdade é que a existência de uma Justiça Eleitoral alheia ao Poder Executivo e aos partidos revelou-se essencial na história. A realização dos pleitos e declaração dos resultados só incomoda a quem se voltou contra o processo, mais do que contra o juiz.

Além da descompostura, havia, no entanto, uma questão fora dos ritos – mas ela não era nova e não foi revelada pelos gigabytes colhidos de um celular. Ela não residia na indiscrição do desembargador ou na licenciosidade dos diálogos, tomados pelo suposto manto da privacidade.

O que esteve fora de ordem, e por mais de cinco anos, foi justamente o inquérito das fake news ou, depois, dos atos antidemocráticos. Voltemos no tempo. O sinal amarelo soou no STF a partir das críticas pesadas formuladas pelos procuradores Diogo Castor e Deltan Dallagnol, que jogaram a opinião pública contra o STF, quando foi reconhecida a incompetência da vara de Curitiba para julgar questões eleitorais, como contribuições de empreiteiras a políticos candidatos.

A seu turno, Jair Bolsonaro estimulava aliados com agudas críticas aos demais Poderes, na linha contra tudo e contra todos, aproveitando de fantasiosas conspirações para ocultar maus resultados. No conjunto da obra, um Poder sob fogo cerrado.

O inquérito nasceu de uma interpretação exageradamente elástica do que seriam crimes cometidos dentro no tribunal. E foi distribuído sem sorteio, como se fosse possível escolher um secretário de Segurança entre os ministros. É natural que essa escolha recaísse sobre Moraes, mas nada jurídica.

O inquérito subverteu o sistema acusatório, não há como negar. Navegou sem e muitas vezes contra manifestações do Ministério Público (MP), a quem os autos deveriam ser, em última instância, endereçados. Edson Fachin, relator do acórdão que reconheceu a constitucionalidade no plenário, chegou a dizer que era possível na fase pré-investigativa – até para o STF saber para que órgão do MP encaminhá-lo. Mas o inquérito deu cria a decisões cautelares de caráter jurisdicional que eram muito mais do que exercício de investigação. Abriu a porta para vulnerar o princípio da inércia e virou uma chave mestra para lidar com os que conspiravam, ainda que sem o foro privativo. E as conexões se mostraram ilimitadas.

Funcionou como instrumento próprio de um estado de exceção, mas com uma circunstância fortemente atenuante: um estado de exceção em legítima defesa.

Quando o presidente da República, com palavras e atos, assacou contra a Suprema Corte, avalizando movimentos antidemocráticos, ameaçando comprimir o poder dos juízes, quem estava lá para limitar seus movimentos? O MP não estava. Capturado pelo poder que deveria fiscalizar, a Procuradoria-Geral da República mesclou a omissão em face dos crimes à adesão aos propósitos do governo. Como depender do sistema acusatório, se o acusador estava entrelaçado com o agressor e agia apenas para imunizá-lo das leis?

Não devemos naturalizar os princípios que ficaram soterrados, mas compreender que o estado maior de exceção que se formava sobre o País ameaçou o Direito em sua totalidade, a democracia até em seu mínimo existencial. Se o golpismo tivesse êxito, antes, durante ou depois das eleições, era um país inteiro que navegaria fora dos ritos.

Reconhecer a emergência da exceção não significa fazê-la regra; o inquérito das fake news não deve ser encarado como precedente constitucional – como foi, aliás, no julgamento do STF que retalhou, mais por conveniência que por princípio, o juiz das garantias.

É preciso restaurar veias esgarçadas, o princípio do juiz natural, o sistema acusatório e a inércia da jurisdição. Eles protegem a todos. Mas, para restabelecer a plenitude democrática, é essencial que o golpismo seja julgado – como pretende evitar, muitas vezes sem dizer, grande parte dos críticos de Moraes. Que se encerrem os inquéritos judiciais e se promova a regular distribuição das denúncias que já tardam.

É desse rito, de passagem, que não podemos nos furtar.

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DESEMBARGADOR DO TJSP, ESCRITOR, MESTRE EM DIREITO PENAL E DOUTOR EM CRIMINOLOGIA PELA FACULDADE DE DIREITO DA USP, É AUTOR DE ‘OS PARADOXOS DA JUSTIÇA: JUDICIÁRIO E POLÍTICA NO BRASIL’ (CONTRACORRENTE, 2021)

Opinião por Marcelo Semer

Desembargador do TJSP, escritor, mestre em Direito Penal e doutor em Criminologia ambos pela Faculdade de Direito da USP, é autor de 'Os Paradoxos da Justiça: Judiciário e Política no Brasil' (Contracorrente, 2021)

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