Opinião|Uma declaração católica sobre direitos humanos


Meio-termo presente na ‘Dignitas infinita’ responde a um conservadorismo renovado, que se mostra ativo na Igreja e em plataformas digitais

Por Lilian Sales e Renata Nagamine

O Dicastério para a Doutrina da Fé publicou em 8 de abril uma instrução chamada Dignitas infinita. Trata-se de uma declaração sobre direitos humanos preparada durante cinco anos a pedido do papa Francisco por ocasião dos 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Nela, a Igreja aborda temáticas que considera “graves violações aos direitos humanos” e à dignidade humana.

As primeiras notícias sobre o documento destacaram a condenação ao aborto, à teoria do gênero (chamada de ideologia), à mudança de sexo e às novas tecnologias reprodutivas. Apontaram a reprovação de temáticas relacionadas à bioética, ao gênero e à reprodução da vida, na tradição de documentos publicados nos papados de João Paulo II e Bento XVI.

Figuras de proa do catolicismo que são críticas habituais do papa Francisco repercutiram a Dignitas infinita positivamente. Consideraram-na ortodoxa.

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A Dignitas infinita foi lançada apenas quatro meses após a instrução Fiducia supplicans, que permitiu a bênção sacerdotal de casais formados por pessoas do mesmo sexo. A autorização para a bênção gerou reações negativas em alas mais conservadoras da Igreja Católica. Nesse contexto, o documento surge como uma bandeira conciliatória do papa a grupos conservadores no interior do catolicismo.

Na declaração do Magistério da Igreja sobre direitos humanos, as noções de vida e dignidade humana são ampliadas para incluir entre as graves violações a exploração da “pessoa humana” para fins econômicos, seja na forma do tráfico e da escravização, seja na precarização do trabalho e na produção da pobreza. É uma marca do papado de Francisco, mas o documento cita Bento XVI ao enquadrar a pobreza como “uma das maiores injustiças do mundo contemporâneo”, que ele relaciona com os processos globais de concentração de riqueza entre os países e dentro de cada país.

Na declaração, o pedido do papa de atenção especial ao problema é escorado na reiterada prática católica de interpretar a Bíblia e orientar o cuidado pastoral tendo por fiadora a figura do pobre. A Teologia da Libertação se notabilizou por prestigiá-la; em seu novo documento, a Igreja agora dá à centralidade teológica do pobre uma história mais longa e mais difusa no catolicismo.

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A julgar pela repercussão da Dignitas infinita, a Igreja faz, com ela, dois movimentos. Visibiliza o lugar teológico do pobre, referenciando documentos de dois papas distantes, quando não críticos, da Teologia da Libertação: João Paulo II e Bento XVI. Justifica esse lugar com base na ideia de dignidade ontológica da “pessoa humana”, ou seja, na dignidade intrínseca à vida humana, como encarnação à imagem do filho de Deus.

A “dignidade ontológica da pessoa humana” aparece na Dignitas infinita em termos semelhantes aos documentos jurídicos de direitos humanos elaborados no século 20, da já mencionada Declaração de 1948 à Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993. Ambos afirmam o caráter “inato” e, portanto, “inalienável” da “dignidade da pessoa humana”.

Trabalhos de história intelectual, como Christian Human Rights, de Samuel Moyn, mostram a influência do pensamento católico não só na construção das ideias de “dignidade humana” e “pessoa humana”, como também na inscrição delas na Declaração de 1948, a partir da qual se difundiram. A Dignitas infinita explicita essa filiação, ao mesmo tempo que evidencia a ambivalência dela.

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De um lado, a ideia de “dignidade ontológica da pessoa humana” abre espaço para críticos de Francisco e da Teologia da Libertação se reposicionarem em relação ao tratamento do problema da pobreza. Com a Dignitas infinita, a Igreja se desloca para o centro do discurso de autodeclarados católicos conservadores.

De outro lado, a declaração reafirma que a vida humana tem início na concepção. Estende a ideia de “dignidade ontológica” e todo o discurso sobre direitos que ela escora tanto à vida “da pessoa não nascida”, que não deve ser excluída por meio do aborto, nem manipulada pelas novas tecnologias de reprodução, quanto à vida da “pessoa moribunda”, que deve ser assistida, mas não ter o fim de sua vida antecipado.

A Igreja encontra na ideia de dignidade ontológica, assim, uma justificativa para não recuar em relação aos temas da bioética. Pelo contrário, apoia-se nessa para reafirmar posições sobre gênero e reprodução da vida desenvolvidas e amplamente disseminadas nos papados de João Paulo II e de Bento XVI.

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Em relação à homossexualidade, a Dignitas infinita mantém a ambiguidade da Igreja. Reforça a postura de acolhimento ao homossexual da declaração Fiducia supplicans. Porém, condena a transexualidade, considerando a mudança de sexo uma violação do princípio divino da criação humana, um atentado contra a integridade física da “pessoa humana”.

A construção desse meio-termo entre o que vinha sendo o papado de Francisco e o autodeclarado conservadorismo católico responde a um conservadorismo renovado, que se mostra crescentemente articulado e ativo dentro da Igreja e em plataformas digitais. Ele tem se lançado com ímpeto no espaço público brasileiro.

*

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSORA NA FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIFESP; E PESQUISADORA DE PÓS-DOUTORADO NO NÚCLEO DE RELIGIÕES NO MUNDO CONTEMPORÂNEO DO CEBRAP

O Dicastério para a Doutrina da Fé publicou em 8 de abril uma instrução chamada Dignitas infinita. Trata-se de uma declaração sobre direitos humanos preparada durante cinco anos a pedido do papa Francisco por ocasião dos 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Nela, a Igreja aborda temáticas que considera “graves violações aos direitos humanos” e à dignidade humana.

As primeiras notícias sobre o documento destacaram a condenação ao aborto, à teoria do gênero (chamada de ideologia), à mudança de sexo e às novas tecnologias reprodutivas. Apontaram a reprovação de temáticas relacionadas à bioética, ao gênero e à reprodução da vida, na tradição de documentos publicados nos papados de João Paulo II e Bento XVI.

Figuras de proa do catolicismo que são críticas habituais do papa Francisco repercutiram a Dignitas infinita positivamente. Consideraram-na ortodoxa.

A Dignitas infinita foi lançada apenas quatro meses após a instrução Fiducia supplicans, que permitiu a bênção sacerdotal de casais formados por pessoas do mesmo sexo. A autorização para a bênção gerou reações negativas em alas mais conservadoras da Igreja Católica. Nesse contexto, o documento surge como uma bandeira conciliatória do papa a grupos conservadores no interior do catolicismo.

Na declaração do Magistério da Igreja sobre direitos humanos, as noções de vida e dignidade humana são ampliadas para incluir entre as graves violações a exploração da “pessoa humana” para fins econômicos, seja na forma do tráfico e da escravização, seja na precarização do trabalho e na produção da pobreza. É uma marca do papado de Francisco, mas o documento cita Bento XVI ao enquadrar a pobreza como “uma das maiores injustiças do mundo contemporâneo”, que ele relaciona com os processos globais de concentração de riqueza entre os países e dentro de cada país.

Na declaração, o pedido do papa de atenção especial ao problema é escorado na reiterada prática católica de interpretar a Bíblia e orientar o cuidado pastoral tendo por fiadora a figura do pobre. A Teologia da Libertação se notabilizou por prestigiá-la; em seu novo documento, a Igreja agora dá à centralidade teológica do pobre uma história mais longa e mais difusa no catolicismo.

A julgar pela repercussão da Dignitas infinita, a Igreja faz, com ela, dois movimentos. Visibiliza o lugar teológico do pobre, referenciando documentos de dois papas distantes, quando não críticos, da Teologia da Libertação: João Paulo II e Bento XVI. Justifica esse lugar com base na ideia de dignidade ontológica da “pessoa humana”, ou seja, na dignidade intrínseca à vida humana, como encarnação à imagem do filho de Deus.

A “dignidade ontológica da pessoa humana” aparece na Dignitas infinita em termos semelhantes aos documentos jurídicos de direitos humanos elaborados no século 20, da já mencionada Declaração de 1948 à Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993. Ambos afirmam o caráter “inato” e, portanto, “inalienável” da “dignidade da pessoa humana”.

Trabalhos de história intelectual, como Christian Human Rights, de Samuel Moyn, mostram a influência do pensamento católico não só na construção das ideias de “dignidade humana” e “pessoa humana”, como também na inscrição delas na Declaração de 1948, a partir da qual se difundiram. A Dignitas infinita explicita essa filiação, ao mesmo tempo que evidencia a ambivalência dela.

De um lado, a ideia de “dignidade ontológica da pessoa humana” abre espaço para críticos de Francisco e da Teologia da Libertação se reposicionarem em relação ao tratamento do problema da pobreza. Com a Dignitas infinita, a Igreja se desloca para o centro do discurso de autodeclarados católicos conservadores.

De outro lado, a declaração reafirma que a vida humana tem início na concepção. Estende a ideia de “dignidade ontológica” e todo o discurso sobre direitos que ela escora tanto à vida “da pessoa não nascida”, que não deve ser excluída por meio do aborto, nem manipulada pelas novas tecnologias de reprodução, quanto à vida da “pessoa moribunda”, que deve ser assistida, mas não ter o fim de sua vida antecipado.

A Igreja encontra na ideia de dignidade ontológica, assim, uma justificativa para não recuar em relação aos temas da bioética. Pelo contrário, apoia-se nessa para reafirmar posições sobre gênero e reprodução da vida desenvolvidas e amplamente disseminadas nos papados de João Paulo II e de Bento XVI.

Em relação à homossexualidade, a Dignitas infinita mantém a ambiguidade da Igreja. Reforça a postura de acolhimento ao homossexual da declaração Fiducia supplicans. Porém, condena a transexualidade, considerando a mudança de sexo uma violação do princípio divino da criação humana, um atentado contra a integridade física da “pessoa humana”.

A construção desse meio-termo entre o que vinha sendo o papado de Francisco e o autodeclarado conservadorismo católico responde a um conservadorismo renovado, que se mostra crescentemente articulado e ativo dentro da Igreja e em plataformas digitais. Ele tem se lançado com ímpeto no espaço público brasileiro.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSORA NA FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIFESP; E PESQUISADORA DE PÓS-DOUTORADO NO NÚCLEO DE RELIGIÕES NO MUNDO CONTEMPORÂNEO DO CEBRAP

O Dicastério para a Doutrina da Fé publicou em 8 de abril uma instrução chamada Dignitas infinita. Trata-se de uma declaração sobre direitos humanos preparada durante cinco anos a pedido do papa Francisco por ocasião dos 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Nela, a Igreja aborda temáticas que considera “graves violações aos direitos humanos” e à dignidade humana.

As primeiras notícias sobre o documento destacaram a condenação ao aborto, à teoria do gênero (chamada de ideologia), à mudança de sexo e às novas tecnologias reprodutivas. Apontaram a reprovação de temáticas relacionadas à bioética, ao gênero e à reprodução da vida, na tradição de documentos publicados nos papados de João Paulo II e Bento XVI.

Figuras de proa do catolicismo que são críticas habituais do papa Francisco repercutiram a Dignitas infinita positivamente. Consideraram-na ortodoxa.

A Dignitas infinita foi lançada apenas quatro meses após a instrução Fiducia supplicans, que permitiu a bênção sacerdotal de casais formados por pessoas do mesmo sexo. A autorização para a bênção gerou reações negativas em alas mais conservadoras da Igreja Católica. Nesse contexto, o documento surge como uma bandeira conciliatória do papa a grupos conservadores no interior do catolicismo.

Na declaração do Magistério da Igreja sobre direitos humanos, as noções de vida e dignidade humana são ampliadas para incluir entre as graves violações a exploração da “pessoa humana” para fins econômicos, seja na forma do tráfico e da escravização, seja na precarização do trabalho e na produção da pobreza. É uma marca do papado de Francisco, mas o documento cita Bento XVI ao enquadrar a pobreza como “uma das maiores injustiças do mundo contemporâneo”, que ele relaciona com os processos globais de concentração de riqueza entre os países e dentro de cada país.

Na declaração, o pedido do papa de atenção especial ao problema é escorado na reiterada prática católica de interpretar a Bíblia e orientar o cuidado pastoral tendo por fiadora a figura do pobre. A Teologia da Libertação se notabilizou por prestigiá-la; em seu novo documento, a Igreja agora dá à centralidade teológica do pobre uma história mais longa e mais difusa no catolicismo.

A julgar pela repercussão da Dignitas infinita, a Igreja faz, com ela, dois movimentos. Visibiliza o lugar teológico do pobre, referenciando documentos de dois papas distantes, quando não críticos, da Teologia da Libertação: João Paulo II e Bento XVI. Justifica esse lugar com base na ideia de dignidade ontológica da “pessoa humana”, ou seja, na dignidade intrínseca à vida humana, como encarnação à imagem do filho de Deus.

A “dignidade ontológica da pessoa humana” aparece na Dignitas infinita em termos semelhantes aos documentos jurídicos de direitos humanos elaborados no século 20, da já mencionada Declaração de 1948 à Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993. Ambos afirmam o caráter “inato” e, portanto, “inalienável” da “dignidade da pessoa humana”.

Trabalhos de história intelectual, como Christian Human Rights, de Samuel Moyn, mostram a influência do pensamento católico não só na construção das ideias de “dignidade humana” e “pessoa humana”, como também na inscrição delas na Declaração de 1948, a partir da qual se difundiram. A Dignitas infinita explicita essa filiação, ao mesmo tempo que evidencia a ambivalência dela.

De um lado, a ideia de “dignidade ontológica da pessoa humana” abre espaço para críticos de Francisco e da Teologia da Libertação se reposicionarem em relação ao tratamento do problema da pobreza. Com a Dignitas infinita, a Igreja se desloca para o centro do discurso de autodeclarados católicos conservadores.

De outro lado, a declaração reafirma que a vida humana tem início na concepção. Estende a ideia de “dignidade ontológica” e todo o discurso sobre direitos que ela escora tanto à vida “da pessoa não nascida”, que não deve ser excluída por meio do aborto, nem manipulada pelas novas tecnologias de reprodução, quanto à vida da “pessoa moribunda”, que deve ser assistida, mas não ter o fim de sua vida antecipado.

A Igreja encontra na ideia de dignidade ontológica, assim, uma justificativa para não recuar em relação aos temas da bioética. Pelo contrário, apoia-se nessa para reafirmar posições sobre gênero e reprodução da vida desenvolvidas e amplamente disseminadas nos papados de João Paulo II e de Bento XVI.

Em relação à homossexualidade, a Dignitas infinita mantém a ambiguidade da Igreja. Reforça a postura de acolhimento ao homossexual da declaração Fiducia supplicans. Porém, condena a transexualidade, considerando a mudança de sexo uma violação do princípio divino da criação humana, um atentado contra a integridade física da “pessoa humana”.

A construção desse meio-termo entre o que vinha sendo o papado de Francisco e o autodeclarado conservadorismo católico responde a um conservadorismo renovado, que se mostra crescentemente articulado e ativo dentro da Igreja e em plataformas digitais. Ele tem se lançado com ímpeto no espaço público brasileiro.

*

SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSORA NA FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIFESP; E PESQUISADORA DE PÓS-DOUTORADO NO NÚCLEO DE RELIGIÕES NO MUNDO CONTEMPORÂNEO DO CEBRAP

Opinião por Lilian Sales

Professora na Faculdade de Ciências Sociais da Unifesp

Renata Nagamine

Pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Religiões no Mundo Contemporâneo do Cebrap

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