Opinião|Vacina obrigatória


Campanha contra a vacinação por motivos políticos pode ser crime de responsabilidade

Por Miguel Reale Júnior

O obscurantismo bolsonariano faz-nos retroceder no tempo mais de um século. Em 1900 a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, era conhecida como empesteada, vítima de febre amarela, peste bubônica e cólera. Oswaldo Cruz, diretor de saúde pública no governo Rodrigues Alves, enfrentou as duas primeiras a partir de 1902 e em 1904 deu início ao combate à varíola, cuja imunização poderia dar-se pela aplicação de vacina já conhecida havia décadas.

Depois de muita discussão, foi aprovada no Congresso Nacional a Lei n.º 1.261, de outubro de 1904, que determinava a vacinação compulsória. Houve, então, já naquele tempo, tanto fake news, difundindo ser perniciosa a vacina, como exploração política de positivistas, seguidores de Augusto Comte, e florianistas, adeptos de Floriano Peixoto, que tomaram a questão da vacina como pretexto para tentar derrubar o presidente.

A contestação à obrigatoriedade, liderada por parlamentares, antes oficiais do Exército, ganhou cores gravíssimas, pois entre 10 e 20 de novembro as ruas foram ocupadas por revoltosos, com um saldo terrível de 30 mortos e mais de 900 presos, dos quais 450, por antecedentes criminais, foram enviados para o Acre. Muitos feridos.

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Até Rui Barbosa se pôs contra a vacina, ponderando que, “assim como o Direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme”. A obrigatoriedade foi revogada. Em 1908 muitos morreram de cólera e a população acorreu, então, para tomar a vacina. Rui alterou sua posição e em 1917 homenageou Oswaldo Cruz, reconhecendo dever-se a ele a vitória sobre o flagelo e a diferença entre o “Brasil pesteado, que encontrou, e o Brasil desinfectado, que nos veio a legar”.

Em plena pandemia, antes do meio do mandato, Jair só pensa na reeleição. E por interesse político, como em 1904, lança suspeitas sobre a vacina e nega sua obrigatoriedade para contentar seguidores e atacar governadores, contrariando os valores básicos da Constituição e os termos da legislação específica por ele mesmo sancionada. E daí?

No campo legal, a Lei n.º 6.259/75 e o Decreto n.º 78.231/76 impõem a obrigatoriedade da vacina a todos os adultos, aos quais incumbe submeter à vacinação os menores sob sua guarda.

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A prevenção da contaminação da covid-19 é, especificamente, disciplinada pela Lei n.º 13.979/20. No artigo 3.º da lei, dispõe-se: “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (...) III - determinação compulsória de (...) d) vacinação”. Essa conduta pode ser adotada, segundo o parágrafo 7.º desse artigo 3.º, pelos gestores locais de saúde, ou seja, pelos governadores, desde que cientificamente recomendada a providência.

Na Constituição da República consagra-se o valor da solidariedade no artigo 3.º, segundo o qual é objetivo fundamental da República construir uma sociedade livre, justa e solidária. Ser vacinado é ser solidário, pois não apenas se protege a si mesmo, mas todos da comunidade, visando a alcançar a imunização. A solidariedade, na expressão de Dworkin, vem a ser “considerar a vida dos outros como parte de suas próprias vidas” (Uma Questão de Direito, pág. 297), significando “a pessoa se abrir à outra, pensá-la, sofrer com”, no dizer de Arias Bustamante (Alternativa Ideológica: Comunitarismo, pág. 40), unidos todos por grande cordão umbilical.

Pela via da solidariedade social pode-se cimentar, orientar e construir concretamente nossa unidade como povo, surgindo em face desse objetivo da República o dever de solidariedade que a todos vincula (André Corrêa, Solidariedade e Responsabilidade, pág. 313).

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Como transmissores, somos todos iguais perante o vírus. Ninguém, por nenhuma razão, pode colocar-se acima dos demais e negar-se a colaborar com a comunidade na precaução contra o malefício da infecção. Rejeitar a vacina, autorizada pela Anvisa, é atuar com desprezo pelo outro, em superioridade antissolidária.

Como elucida o Supremo Tribunal Federal (Oscar Vilhena, Direitos Fundamentais, pág. 388, reproduzindo votos de Celso de Mello), “a proteção à saúde representa um fator que associado a um imperativo de solidariedade social impõe-se ao Poder Público”, em qualquer plano da organização federativa, tomando medidas preventivas e curativas.

Em outro voto, Celso de Mello observa que a negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida com base nos direitos sociais significa a renúncia a “reconhecê-los como verdadeiros direitos” (pág. 399), em arrepio ao princípio da solidariedade.

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Assim, campanha contra futura vacinação, por motivação política, significa não reconhecer a precaução eficaz contra o vírus como um direito da comunidade, a ser explicado e exigido de todos pelo chefe da Nação. Tal conduta infringe o artigo 7.º da Lei n.º 1.079/50, ou seja, pode ser crime de responsabilidade consistente em violar o direito social à saúde, pois incita a impedir a imunização, objetivo solidário de todo o povo. Que flagelo!

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA

ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

O obscurantismo bolsonariano faz-nos retroceder no tempo mais de um século. Em 1900 a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, era conhecida como empesteada, vítima de febre amarela, peste bubônica e cólera. Oswaldo Cruz, diretor de saúde pública no governo Rodrigues Alves, enfrentou as duas primeiras a partir de 1902 e em 1904 deu início ao combate à varíola, cuja imunização poderia dar-se pela aplicação de vacina já conhecida havia décadas.

Depois de muita discussão, foi aprovada no Congresso Nacional a Lei n.º 1.261, de outubro de 1904, que determinava a vacinação compulsória. Houve, então, já naquele tempo, tanto fake news, difundindo ser perniciosa a vacina, como exploração política de positivistas, seguidores de Augusto Comte, e florianistas, adeptos de Floriano Peixoto, que tomaram a questão da vacina como pretexto para tentar derrubar o presidente.

A contestação à obrigatoriedade, liderada por parlamentares, antes oficiais do Exército, ganhou cores gravíssimas, pois entre 10 e 20 de novembro as ruas foram ocupadas por revoltosos, com um saldo terrível de 30 mortos e mais de 900 presos, dos quais 450, por antecedentes criminais, foram enviados para o Acre. Muitos feridos.

Até Rui Barbosa se pôs contra a vacina, ponderando que, “assim como o Direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme”. A obrigatoriedade foi revogada. Em 1908 muitos morreram de cólera e a população acorreu, então, para tomar a vacina. Rui alterou sua posição e em 1917 homenageou Oswaldo Cruz, reconhecendo dever-se a ele a vitória sobre o flagelo e a diferença entre o “Brasil pesteado, que encontrou, e o Brasil desinfectado, que nos veio a legar”.

Em plena pandemia, antes do meio do mandato, Jair só pensa na reeleição. E por interesse político, como em 1904, lança suspeitas sobre a vacina e nega sua obrigatoriedade para contentar seguidores e atacar governadores, contrariando os valores básicos da Constituição e os termos da legislação específica por ele mesmo sancionada. E daí?

No campo legal, a Lei n.º 6.259/75 e o Decreto n.º 78.231/76 impõem a obrigatoriedade da vacina a todos os adultos, aos quais incumbe submeter à vacinação os menores sob sua guarda.

A prevenção da contaminação da covid-19 é, especificamente, disciplinada pela Lei n.º 13.979/20. No artigo 3.º da lei, dispõe-se: “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (...) III - determinação compulsória de (...) d) vacinação”. Essa conduta pode ser adotada, segundo o parágrafo 7.º desse artigo 3.º, pelos gestores locais de saúde, ou seja, pelos governadores, desde que cientificamente recomendada a providência.

Na Constituição da República consagra-se o valor da solidariedade no artigo 3.º, segundo o qual é objetivo fundamental da República construir uma sociedade livre, justa e solidária. Ser vacinado é ser solidário, pois não apenas se protege a si mesmo, mas todos da comunidade, visando a alcançar a imunização. A solidariedade, na expressão de Dworkin, vem a ser “considerar a vida dos outros como parte de suas próprias vidas” (Uma Questão de Direito, pág. 297), significando “a pessoa se abrir à outra, pensá-la, sofrer com”, no dizer de Arias Bustamante (Alternativa Ideológica: Comunitarismo, pág. 40), unidos todos por grande cordão umbilical.

Pela via da solidariedade social pode-se cimentar, orientar e construir concretamente nossa unidade como povo, surgindo em face desse objetivo da República o dever de solidariedade que a todos vincula (André Corrêa, Solidariedade e Responsabilidade, pág. 313).

Como transmissores, somos todos iguais perante o vírus. Ninguém, por nenhuma razão, pode colocar-se acima dos demais e negar-se a colaborar com a comunidade na precaução contra o malefício da infecção. Rejeitar a vacina, autorizada pela Anvisa, é atuar com desprezo pelo outro, em superioridade antissolidária.

Como elucida o Supremo Tribunal Federal (Oscar Vilhena, Direitos Fundamentais, pág. 388, reproduzindo votos de Celso de Mello), “a proteção à saúde representa um fator que associado a um imperativo de solidariedade social impõe-se ao Poder Público”, em qualquer plano da organização federativa, tomando medidas preventivas e curativas.

Em outro voto, Celso de Mello observa que a negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida com base nos direitos sociais significa a renúncia a “reconhecê-los como verdadeiros direitos” (pág. 399), em arrepio ao princípio da solidariedade.

Assim, campanha contra futura vacinação, por motivação política, significa não reconhecer a precaução eficaz contra o vírus como um direito da comunidade, a ser explicado e exigido de todos pelo chefe da Nação. Tal conduta infringe o artigo 7.º da Lei n.º 1.079/50, ou seja, pode ser crime de responsabilidade consistente em violar o direito social à saúde, pois incita a impedir a imunização, objetivo solidário de todo o povo. Que flagelo!

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA

ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

O obscurantismo bolsonariano faz-nos retroceder no tempo mais de um século. Em 1900 a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, era conhecida como empesteada, vítima de febre amarela, peste bubônica e cólera. Oswaldo Cruz, diretor de saúde pública no governo Rodrigues Alves, enfrentou as duas primeiras a partir de 1902 e em 1904 deu início ao combate à varíola, cuja imunização poderia dar-se pela aplicação de vacina já conhecida havia décadas.

Depois de muita discussão, foi aprovada no Congresso Nacional a Lei n.º 1.261, de outubro de 1904, que determinava a vacinação compulsória. Houve, então, já naquele tempo, tanto fake news, difundindo ser perniciosa a vacina, como exploração política de positivistas, seguidores de Augusto Comte, e florianistas, adeptos de Floriano Peixoto, que tomaram a questão da vacina como pretexto para tentar derrubar o presidente.

A contestação à obrigatoriedade, liderada por parlamentares, antes oficiais do Exército, ganhou cores gravíssimas, pois entre 10 e 20 de novembro as ruas foram ocupadas por revoltosos, com um saldo terrível de 30 mortos e mais de 900 presos, dos quais 450, por antecedentes criminais, foram enviados para o Acre. Muitos feridos.

Até Rui Barbosa se pôs contra a vacina, ponderando que, “assim como o Direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme”. A obrigatoriedade foi revogada. Em 1908 muitos morreram de cólera e a população acorreu, então, para tomar a vacina. Rui alterou sua posição e em 1917 homenageou Oswaldo Cruz, reconhecendo dever-se a ele a vitória sobre o flagelo e a diferença entre o “Brasil pesteado, que encontrou, e o Brasil desinfectado, que nos veio a legar”.

Em plena pandemia, antes do meio do mandato, Jair só pensa na reeleição. E por interesse político, como em 1904, lança suspeitas sobre a vacina e nega sua obrigatoriedade para contentar seguidores e atacar governadores, contrariando os valores básicos da Constituição e os termos da legislação específica por ele mesmo sancionada. E daí?

No campo legal, a Lei n.º 6.259/75 e o Decreto n.º 78.231/76 impõem a obrigatoriedade da vacina a todos os adultos, aos quais incumbe submeter à vacinação os menores sob sua guarda.

A prevenção da contaminação da covid-19 é, especificamente, disciplinada pela Lei n.º 13.979/20. No artigo 3.º da lei, dispõe-se: “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (...) III - determinação compulsória de (...) d) vacinação”. Essa conduta pode ser adotada, segundo o parágrafo 7.º desse artigo 3.º, pelos gestores locais de saúde, ou seja, pelos governadores, desde que cientificamente recomendada a providência.

Na Constituição da República consagra-se o valor da solidariedade no artigo 3.º, segundo o qual é objetivo fundamental da República construir uma sociedade livre, justa e solidária. Ser vacinado é ser solidário, pois não apenas se protege a si mesmo, mas todos da comunidade, visando a alcançar a imunização. A solidariedade, na expressão de Dworkin, vem a ser “considerar a vida dos outros como parte de suas próprias vidas” (Uma Questão de Direito, pág. 297), significando “a pessoa se abrir à outra, pensá-la, sofrer com”, no dizer de Arias Bustamante (Alternativa Ideológica: Comunitarismo, pág. 40), unidos todos por grande cordão umbilical.

Pela via da solidariedade social pode-se cimentar, orientar e construir concretamente nossa unidade como povo, surgindo em face desse objetivo da República o dever de solidariedade que a todos vincula (André Corrêa, Solidariedade e Responsabilidade, pág. 313).

Como transmissores, somos todos iguais perante o vírus. Ninguém, por nenhuma razão, pode colocar-se acima dos demais e negar-se a colaborar com a comunidade na precaução contra o malefício da infecção. Rejeitar a vacina, autorizada pela Anvisa, é atuar com desprezo pelo outro, em superioridade antissolidária.

Como elucida o Supremo Tribunal Federal (Oscar Vilhena, Direitos Fundamentais, pág. 388, reproduzindo votos de Celso de Mello), “a proteção à saúde representa um fator que associado a um imperativo de solidariedade social impõe-se ao Poder Público”, em qualquer plano da organização federativa, tomando medidas preventivas e curativas.

Em outro voto, Celso de Mello observa que a negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida com base nos direitos sociais significa a renúncia a “reconhecê-los como verdadeiros direitos” (pág. 399), em arrepio ao princípio da solidariedade.

Assim, campanha contra futura vacinação, por motivação política, significa não reconhecer a precaução eficaz contra o vírus como um direito da comunidade, a ser explicado e exigido de todos pelo chefe da Nação. Tal conduta infringe o artigo 7.º da Lei n.º 1.079/50, ou seja, pode ser crime de responsabilidade consistente em violar o direito social à saúde, pois incita a impedir a imunização, objetivo solidário de todo o povo. Que flagelo!

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA

ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

O obscurantismo bolsonariano faz-nos retroceder no tempo mais de um século. Em 1900 a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, era conhecida como empesteada, vítima de febre amarela, peste bubônica e cólera. Oswaldo Cruz, diretor de saúde pública no governo Rodrigues Alves, enfrentou as duas primeiras a partir de 1902 e em 1904 deu início ao combate à varíola, cuja imunização poderia dar-se pela aplicação de vacina já conhecida havia décadas.

Depois de muita discussão, foi aprovada no Congresso Nacional a Lei n.º 1.261, de outubro de 1904, que determinava a vacinação compulsória. Houve, então, já naquele tempo, tanto fake news, difundindo ser perniciosa a vacina, como exploração política de positivistas, seguidores de Augusto Comte, e florianistas, adeptos de Floriano Peixoto, que tomaram a questão da vacina como pretexto para tentar derrubar o presidente.

A contestação à obrigatoriedade, liderada por parlamentares, antes oficiais do Exército, ganhou cores gravíssimas, pois entre 10 e 20 de novembro as ruas foram ocupadas por revoltosos, com um saldo terrível de 30 mortos e mais de 900 presos, dos quais 450, por antecedentes criminais, foram enviados para o Acre. Muitos feridos.

Até Rui Barbosa se pôs contra a vacina, ponderando que, “assim como o Direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme”. A obrigatoriedade foi revogada. Em 1908 muitos morreram de cólera e a população acorreu, então, para tomar a vacina. Rui alterou sua posição e em 1917 homenageou Oswaldo Cruz, reconhecendo dever-se a ele a vitória sobre o flagelo e a diferença entre o “Brasil pesteado, que encontrou, e o Brasil desinfectado, que nos veio a legar”.

Em plena pandemia, antes do meio do mandato, Jair só pensa na reeleição. E por interesse político, como em 1904, lança suspeitas sobre a vacina e nega sua obrigatoriedade para contentar seguidores e atacar governadores, contrariando os valores básicos da Constituição e os termos da legislação específica por ele mesmo sancionada. E daí?

No campo legal, a Lei n.º 6.259/75 e o Decreto n.º 78.231/76 impõem a obrigatoriedade da vacina a todos os adultos, aos quais incumbe submeter à vacinação os menores sob sua guarda.

A prevenção da contaminação da covid-19 é, especificamente, disciplinada pela Lei n.º 13.979/20. No artigo 3.º da lei, dispõe-se: “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (...) III - determinação compulsória de (...) d) vacinação”. Essa conduta pode ser adotada, segundo o parágrafo 7.º desse artigo 3.º, pelos gestores locais de saúde, ou seja, pelos governadores, desde que cientificamente recomendada a providência.

Na Constituição da República consagra-se o valor da solidariedade no artigo 3.º, segundo o qual é objetivo fundamental da República construir uma sociedade livre, justa e solidária. Ser vacinado é ser solidário, pois não apenas se protege a si mesmo, mas todos da comunidade, visando a alcançar a imunização. A solidariedade, na expressão de Dworkin, vem a ser “considerar a vida dos outros como parte de suas próprias vidas” (Uma Questão de Direito, pág. 297), significando “a pessoa se abrir à outra, pensá-la, sofrer com”, no dizer de Arias Bustamante (Alternativa Ideológica: Comunitarismo, pág. 40), unidos todos por grande cordão umbilical.

Pela via da solidariedade social pode-se cimentar, orientar e construir concretamente nossa unidade como povo, surgindo em face desse objetivo da República o dever de solidariedade que a todos vincula (André Corrêa, Solidariedade e Responsabilidade, pág. 313).

Como transmissores, somos todos iguais perante o vírus. Ninguém, por nenhuma razão, pode colocar-se acima dos demais e negar-se a colaborar com a comunidade na precaução contra o malefício da infecção. Rejeitar a vacina, autorizada pela Anvisa, é atuar com desprezo pelo outro, em superioridade antissolidária.

Como elucida o Supremo Tribunal Federal (Oscar Vilhena, Direitos Fundamentais, pág. 388, reproduzindo votos de Celso de Mello), “a proteção à saúde representa um fator que associado a um imperativo de solidariedade social impõe-se ao Poder Público”, em qualquer plano da organização federativa, tomando medidas preventivas e curativas.

Em outro voto, Celso de Mello observa que a negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida com base nos direitos sociais significa a renúncia a “reconhecê-los como verdadeiros direitos” (pág. 399), em arrepio ao princípio da solidariedade.

Assim, campanha contra futura vacinação, por motivação política, significa não reconhecer a precaução eficaz contra o vírus como um direito da comunidade, a ser explicado e exigido de todos pelo chefe da Nação. Tal conduta infringe o artigo 7.º da Lei n.º 1.079/50, ou seja, pode ser crime de responsabilidade consistente em violar o direito social à saúde, pois incita a impedir a imunização, objetivo solidário de todo o povo. Que flagelo!

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