Opinião|Venezuela: hora da verdade para a esquerda


Setores da esquerda ainda têm oportunidade de interromper uma trajetória de erros que põe em xeque suas credenciais democráticas

Por Sergio Fausto

A ambiguidade de setores da esquerda frente à fraude eleitoral na Venezuela é um capítulo especialmente deplorável de uma longa história de conivências com o regime chavista.

Não tenho em mente os setores minoritários da esquerda que defendem violações dos direitos humanos no país vizinho. Estes estão à margem do campo democrático, amarrados a um antiamericanismo primário e a uma versão autoritária do marxismo.

Penso nos que mantêm posições ambíguas ou omissas. Estes ainda têm a oportunidade de interromper uma trajetória de erros que põe em xeque suas credenciais democráticas. Se permanecerem imóveis, darão ao bolsonarismo uma arma retórica poderosa para reforçar o pânico infundado de que o Brasil pode “virar uma Venezuela”.

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Está mais do que na hora de terem o seu “momento José Saramago”. Em 2003, diante de mais uma onda de encarceramentos políticos em Cuba, o grande escritor português, Prêmio Nobel de Literatura, militante histórico do Partido Comunista de seu país, publicou uma carta em que começava dizendo “Até aqui cheguei”, para em seguida anunciar sua dissidência em relação ao regime castrista. Antes tarde do que nunca.

No plano interno, desde a distensão do regime autoritário, a esquerda tem jogado o jogo da democracia e contribuído para alargar a sua base, com a incorporação de novos atores sociais à política institucional. Na prática, deixou para trás a visão instrumental da democracia. Manteve, porém, posição esquizofrênica no plano externo apoiando regimes iliberais ou “ditaduras amigas”.

O custo dessa esquizofrenia é crescente. Num mundo em que potências autoritárias ganham terreno na geopolítica global e a democracia está em crise mesmo nos países onde ela tem raízes históricas mais profundas, sobra cada vez menos espaço para posições permanentemente ambíguas. Não se trata de sustentar uma visão rígida, simplista e ingênua que divide o mundo entre “maus” e “bons”, cabendo aos Estados Unidos o papel do mocinho e à(s) potência(s) antagonista(s), o de vilão. Mas há momentos em que o preço da ambiguidade se torna exorbitante e suas consequências, virtualmente irremediáveis. O recrudescimento do regime chavista na Venezuela é um desses momentos.

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O atual processo político na Venezuela difere de ondas repressivas desencadeadas em anos recentes em Cuba e Nicarágua. Não resta dúvida de que foi e continua sendo moralmente repulsivo o silêncio frente à condenação a longas penas de prisão de artistas que lideraram os protestos contra o regime cubano em 2021 e 2022, para não falar dos assassinatos cometidos a mando de Daniel Ortega na repressão às manifestações populares que tomaram Manágua em 2018. Mas há diferenças. A primeira delas é de natureza geográfica, já que nem Cuba nem Nicarágua são países vizinhos, fronteiriços ao Brasil. A segunda é geopolítica. A consolidação de uma ditadura na Venezuela fará com que tensões globais entre Estados Unidos, de um lado, Rússia e China, de outro, passem a condicionar a dinâmica das relações entre os países sul-americanos e a ter influência maior na política doméstica de cada um deles. Nada disso interessa ao Brasil.

A deterioração política e econômica na Venezuela é de tal ordem que a manutenção do regime chavista só é viável à custa da sua total subserviência aos interesses de Rússia e China e de doses cavalares de coerção política. Está disposta a esquerda brasileira a ser complacente com um regime assim? Em nome de que valores, em favor de que projeto de futuro?

O Brasil precisa de uma esquerda plena e inequivocamente democrática (os advérbios aqui são tão importantes quanto o adjetivo). Por seu enraizamento social e força político-eleitoral, o PT, em especial, teve um papel importante na correção parcial das enormes desigualdades que marcam a sociedade brasileira, apesar do atavismo corporativista que o leva a defender privilégios de categorias profissionais ligadas ao setor público.

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O fortalecimento das políticas sociais não foi obra de um só partido, longe disso, mas é inegável a contribuição do PT para dar consequência prática às diretrizes e princípios social-democratas da Constituição de 1988. A concretização das promessas não cumpridas de maior igualdade e reconhecimento de grupos sociais historicamente subalternos é uma tarefa pendente. Não se pode dissociar a realização dessa tarefa – para a qual a relevância da esquerda é indiscutível – do fortalecimento da democracia como valor universal e conquista civilizatória.

Não há mais tempo e espaço para omissão e ambiguidade. A esquerda brasileira terá de escolher entre duas vertentes históricas: a do socialismo democrático, que se expressou concretamente na social-democracia, ou a do marxismo-leninismo, que na América Latina se afeiçoou a líderes populistas autoritários ou ditadores anti-imperialistas. Ela tem os pés na primeira vertente, mas continua com o rabo preso à segunda.

A democracia não pode ser relativizada. Para a esquerda brasileira, a Venezuela é a hora da verdade.

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*

DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO GACINT-USP

A ambiguidade de setores da esquerda frente à fraude eleitoral na Venezuela é um capítulo especialmente deplorável de uma longa história de conivências com o regime chavista.

Não tenho em mente os setores minoritários da esquerda que defendem violações dos direitos humanos no país vizinho. Estes estão à margem do campo democrático, amarrados a um antiamericanismo primário e a uma versão autoritária do marxismo.

Penso nos que mantêm posições ambíguas ou omissas. Estes ainda têm a oportunidade de interromper uma trajetória de erros que põe em xeque suas credenciais democráticas. Se permanecerem imóveis, darão ao bolsonarismo uma arma retórica poderosa para reforçar o pânico infundado de que o Brasil pode “virar uma Venezuela”.

Está mais do que na hora de terem o seu “momento José Saramago”. Em 2003, diante de mais uma onda de encarceramentos políticos em Cuba, o grande escritor português, Prêmio Nobel de Literatura, militante histórico do Partido Comunista de seu país, publicou uma carta em que começava dizendo “Até aqui cheguei”, para em seguida anunciar sua dissidência em relação ao regime castrista. Antes tarde do que nunca.

No plano interno, desde a distensão do regime autoritário, a esquerda tem jogado o jogo da democracia e contribuído para alargar a sua base, com a incorporação de novos atores sociais à política institucional. Na prática, deixou para trás a visão instrumental da democracia. Manteve, porém, posição esquizofrênica no plano externo apoiando regimes iliberais ou “ditaduras amigas”.

O custo dessa esquizofrenia é crescente. Num mundo em que potências autoritárias ganham terreno na geopolítica global e a democracia está em crise mesmo nos países onde ela tem raízes históricas mais profundas, sobra cada vez menos espaço para posições permanentemente ambíguas. Não se trata de sustentar uma visão rígida, simplista e ingênua que divide o mundo entre “maus” e “bons”, cabendo aos Estados Unidos o papel do mocinho e à(s) potência(s) antagonista(s), o de vilão. Mas há momentos em que o preço da ambiguidade se torna exorbitante e suas consequências, virtualmente irremediáveis. O recrudescimento do regime chavista na Venezuela é um desses momentos.

O atual processo político na Venezuela difere de ondas repressivas desencadeadas em anos recentes em Cuba e Nicarágua. Não resta dúvida de que foi e continua sendo moralmente repulsivo o silêncio frente à condenação a longas penas de prisão de artistas que lideraram os protestos contra o regime cubano em 2021 e 2022, para não falar dos assassinatos cometidos a mando de Daniel Ortega na repressão às manifestações populares que tomaram Manágua em 2018. Mas há diferenças. A primeira delas é de natureza geográfica, já que nem Cuba nem Nicarágua são países vizinhos, fronteiriços ao Brasil. A segunda é geopolítica. A consolidação de uma ditadura na Venezuela fará com que tensões globais entre Estados Unidos, de um lado, Rússia e China, de outro, passem a condicionar a dinâmica das relações entre os países sul-americanos e a ter influência maior na política doméstica de cada um deles. Nada disso interessa ao Brasil.

A deterioração política e econômica na Venezuela é de tal ordem que a manutenção do regime chavista só é viável à custa da sua total subserviência aos interesses de Rússia e China e de doses cavalares de coerção política. Está disposta a esquerda brasileira a ser complacente com um regime assim? Em nome de que valores, em favor de que projeto de futuro?

O Brasil precisa de uma esquerda plena e inequivocamente democrática (os advérbios aqui são tão importantes quanto o adjetivo). Por seu enraizamento social e força político-eleitoral, o PT, em especial, teve um papel importante na correção parcial das enormes desigualdades que marcam a sociedade brasileira, apesar do atavismo corporativista que o leva a defender privilégios de categorias profissionais ligadas ao setor público.

O fortalecimento das políticas sociais não foi obra de um só partido, longe disso, mas é inegável a contribuição do PT para dar consequência prática às diretrizes e princípios social-democratas da Constituição de 1988. A concretização das promessas não cumpridas de maior igualdade e reconhecimento de grupos sociais historicamente subalternos é uma tarefa pendente. Não se pode dissociar a realização dessa tarefa – para a qual a relevância da esquerda é indiscutível – do fortalecimento da democracia como valor universal e conquista civilizatória.

Não há mais tempo e espaço para omissão e ambiguidade. A esquerda brasileira terá de escolher entre duas vertentes históricas: a do socialismo democrático, que se expressou concretamente na social-democracia, ou a do marxismo-leninismo, que na América Latina se afeiçoou a líderes populistas autoritários ou ditadores anti-imperialistas. Ela tem os pés na primeira vertente, mas continua com o rabo preso à segunda.

A democracia não pode ser relativizada. Para a esquerda brasileira, a Venezuela é a hora da verdade.

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DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO GACINT-USP

A ambiguidade de setores da esquerda frente à fraude eleitoral na Venezuela é um capítulo especialmente deplorável de uma longa história de conivências com o regime chavista.

Não tenho em mente os setores minoritários da esquerda que defendem violações dos direitos humanos no país vizinho. Estes estão à margem do campo democrático, amarrados a um antiamericanismo primário e a uma versão autoritária do marxismo.

Penso nos que mantêm posições ambíguas ou omissas. Estes ainda têm a oportunidade de interromper uma trajetória de erros que põe em xeque suas credenciais democráticas. Se permanecerem imóveis, darão ao bolsonarismo uma arma retórica poderosa para reforçar o pânico infundado de que o Brasil pode “virar uma Venezuela”.

Está mais do que na hora de terem o seu “momento José Saramago”. Em 2003, diante de mais uma onda de encarceramentos políticos em Cuba, o grande escritor português, Prêmio Nobel de Literatura, militante histórico do Partido Comunista de seu país, publicou uma carta em que começava dizendo “Até aqui cheguei”, para em seguida anunciar sua dissidência em relação ao regime castrista. Antes tarde do que nunca.

No plano interno, desde a distensão do regime autoritário, a esquerda tem jogado o jogo da democracia e contribuído para alargar a sua base, com a incorporação de novos atores sociais à política institucional. Na prática, deixou para trás a visão instrumental da democracia. Manteve, porém, posição esquizofrênica no plano externo apoiando regimes iliberais ou “ditaduras amigas”.

O custo dessa esquizofrenia é crescente. Num mundo em que potências autoritárias ganham terreno na geopolítica global e a democracia está em crise mesmo nos países onde ela tem raízes históricas mais profundas, sobra cada vez menos espaço para posições permanentemente ambíguas. Não se trata de sustentar uma visão rígida, simplista e ingênua que divide o mundo entre “maus” e “bons”, cabendo aos Estados Unidos o papel do mocinho e à(s) potência(s) antagonista(s), o de vilão. Mas há momentos em que o preço da ambiguidade se torna exorbitante e suas consequências, virtualmente irremediáveis. O recrudescimento do regime chavista na Venezuela é um desses momentos.

O atual processo político na Venezuela difere de ondas repressivas desencadeadas em anos recentes em Cuba e Nicarágua. Não resta dúvida de que foi e continua sendo moralmente repulsivo o silêncio frente à condenação a longas penas de prisão de artistas que lideraram os protestos contra o regime cubano em 2021 e 2022, para não falar dos assassinatos cometidos a mando de Daniel Ortega na repressão às manifestações populares que tomaram Manágua em 2018. Mas há diferenças. A primeira delas é de natureza geográfica, já que nem Cuba nem Nicarágua são países vizinhos, fronteiriços ao Brasil. A segunda é geopolítica. A consolidação de uma ditadura na Venezuela fará com que tensões globais entre Estados Unidos, de um lado, Rússia e China, de outro, passem a condicionar a dinâmica das relações entre os países sul-americanos e a ter influência maior na política doméstica de cada um deles. Nada disso interessa ao Brasil.

A deterioração política e econômica na Venezuela é de tal ordem que a manutenção do regime chavista só é viável à custa da sua total subserviência aos interesses de Rússia e China e de doses cavalares de coerção política. Está disposta a esquerda brasileira a ser complacente com um regime assim? Em nome de que valores, em favor de que projeto de futuro?

O Brasil precisa de uma esquerda plena e inequivocamente democrática (os advérbios aqui são tão importantes quanto o adjetivo). Por seu enraizamento social e força político-eleitoral, o PT, em especial, teve um papel importante na correção parcial das enormes desigualdades que marcam a sociedade brasileira, apesar do atavismo corporativista que o leva a defender privilégios de categorias profissionais ligadas ao setor público.

O fortalecimento das políticas sociais não foi obra de um só partido, longe disso, mas é inegável a contribuição do PT para dar consequência prática às diretrizes e princípios social-democratas da Constituição de 1988. A concretização das promessas não cumpridas de maior igualdade e reconhecimento de grupos sociais historicamente subalternos é uma tarefa pendente. Não se pode dissociar a realização dessa tarefa – para a qual a relevância da esquerda é indiscutível – do fortalecimento da democracia como valor universal e conquista civilizatória.

Não há mais tempo e espaço para omissão e ambiguidade. A esquerda brasileira terá de escolher entre duas vertentes históricas: a do socialismo democrático, que se expressou concretamente na social-democracia, ou a do marxismo-leninismo, que na América Latina se afeiçoou a líderes populistas autoritários ou ditadores anti-imperialistas. Ela tem os pés na primeira vertente, mas continua com o rabo preso à segunda.

A democracia não pode ser relativizada. Para a esquerda brasileira, a Venezuela é a hora da verdade.

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DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO GACINT-USP

A ambiguidade de setores da esquerda frente à fraude eleitoral na Venezuela é um capítulo especialmente deplorável de uma longa história de conivências com o regime chavista.

Não tenho em mente os setores minoritários da esquerda que defendem violações dos direitos humanos no país vizinho. Estes estão à margem do campo democrático, amarrados a um antiamericanismo primário e a uma versão autoritária do marxismo.

Penso nos que mantêm posições ambíguas ou omissas. Estes ainda têm a oportunidade de interromper uma trajetória de erros que põe em xeque suas credenciais democráticas. Se permanecerem imóveis, darão ao bolsonarismo uma arma retórica poderosa para reforçar o pânico infundado de que o Brasil pode “virar uma Venezuela”.

Está mais do que na hora de terem o seu “momento José Saramago”. Em 2003, diante de mais uma onda de encarceramentos políticos em Cuba, o grande escritor português, Prêmio Nobel de Literatura, militante histórico do Partido Comunista de seu país, publicou uma carta em que começava dizendo “Até aqui cheguei”, para em seguida anunciar sua dissidência em relação ao regime castrista. Antes tarde do que nunca.

No plano interno, desde a distensão do regime autoritário, a esquerda tem jogado o jogo da democracia e contribuído para alargar a sua base, com a incorporação de novos atores sociais à política institucional. Na prática, deixou para trás a visão instrumental da democracia. Manteve, porém, posição esquizofrênica no plano externo apoiando regimes iliberais ou “ditaduras amigas”.

O custo dessa esquizofrenia é crescente. Num mundo em que potências autoritárias ganham terreno na geopolítica global e a democracia está em crise mesmo nos países onde ela tem raízes históricas mais profundas, sobra cada vez menos espaço para posições permanentemente ambíguas. Não se trata de sustentar uma visão rígida, simplista e ingênua que divide o mundo entre “maus” e “bons”, cabendo aos Estados Unidos o papel do mocinho e à(s) potência(s) antagonista(s), o de vilão. Mas há momentos em que o preço da ambiguidade se torna exorbitante e suas consequências, virtualmente irremediáveis. O recrudescimento do regime chavista na Venezuela é um desses momentos.

O atual processo político na Venezuela difere de ondas repressivas desencadeadas em anos recentes em Cuba e Nicarágua. Não resta dúvida de que foi e continua sendo moralmente repulsivo o silêncio frente à condenação a longas penas de prisão de artistas que lideraram os protestos contra o regime cubano em 2021 e 2022, para não falar dos assassinatos cometidos a mando de Daniel Ortega na repressão às manifestações populares que tomaram Manágua em 2018. Mas há diferenças. A primeira delas é de natureza geográfica, já que nem Cuba nem Nicarágua são países vizinhos, fronteiriços ao Brasil. A segunda é geopolítica. A consolidação de uma ditadura na Venezuela fará com que tensões globais entre Estados Unidos, de um lado, Rússia e China, de outro, passem a condicionar a dinâmica das relações entre os países sul-americanos e a ter influência maior na política doméstica de cada um deles. Nada disso interessa ao Brasil.

A deterioração política e econômica na Venezuela é de tal ordem que a manutenção do regime chavista só é viável à custa da sua total subserviência aos interesses de Rússia e China e de doses cavalares de coerção política. Está disposta a esquerda brasileira a ser complacente com um regime assim? Em nome de que valores, em favor de que projeto de futuro?

O Brasil precisa de uma esquerda plena e inequivocamente democrática (os advérbios aqui são tão importantes quanto o adjetivo). Por seu enraizamento social e força político-eleitoral, o PT, em especial, teve um papel importante na correção parcial das enormes desigualdades que marcam a sociedade brasileira, apesar do atavismo corporativista que o leva a defender privilégios de categorias profissionais ligadas ao setor público.

O fortalecimento das políticas sociais não foi obra de um só partido, longe disso, mas é inegável a contribuição do PT para dar consequência prática às diretrizes e princípios social-democratas da Constituição de 1988. A concretização das promessas não cumpridas de maior igualdade e reconhecimento de grupos sociais historicamente subalternos é uma tarefa pendente. Não se pode dissociar a realização dessa tarefa – para a qual a relevância da esquerda é indiscutível – do fortalecimento da democracia como valor universal e conquista civilizatória.

Não há mais tempo e espaço para omissão e ambiguidade. A esquerda brasileira terá de escolher entre duas vertentes históricas: a do socialismo democrático, que se expressou concretamente na social-democracia, ou a do marxismo-leninismo, que na América Latina se afeiçoou a líderes populistas autoritários ou ditadores anti-imperialistas. Ela tem os pés na primeira vertente, mas continua com o rabo preso à segunda.

A democracia não pode ser relativizada. Para a esquerda brasileira, a Venezuela é a hora da verdade.

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DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO GACINT-USP

A ambiguidade de setores da esquerda frente à fraude eleitoral na Venezuela é um capítulo especialmente deplorável de uma longa história de conivências com o regime chavista.

Não tenho em mente os setores minoritários da esquerda que defendem violações dos direitos humanos no país vizinho. Estes estão à margem do campo democrático, amarrados a um antiamericanismo primário e a uma versão autoritária do marxismo.

Penso nos que mantêm posições ambíguas ou omissas. Estes ainda têm a oportunidade de interromper uma trajetória de erros que põe em xeque suas credenciais democráticas. Se permanecerem imóveis, darão ao bolsonarismo uma arma retórica poderosa para reforçar o pânico infundado de que o Brasil pode “virar uma Venezuela”.

Está mais do que na hora de terem o seu “momento José Saramago”. Em 2003, diante de mais uma onda de encarceramentos políticos em Cuba, o grande escritor português, Prêmio Nobel de Literatura, militante histórico do Partido Comunista de seu país, publicou uma carta em que começava dizendo “Até aqui cheguei”, para em seguida anunciar sua dissidência em relação ao regime castrista. Antes tarde do que nunca.

No plano interno, desde a distensão do regime autoritário, a esquerda tem jogado o jogo da democracia e contribuído para alargar a sua base, com a incorporação de novos atores sociais à política institucional. Na prática, deixou para trás a visão instrumental da democracia. Manteve, porém, posição esquizofrênica no plano externo apoiando regimes iliberais ou “ditaduras amigas”.

O custo dessa esquizofrenia é crescente. Num mundo em que potências autoritárias ganham terreno na geopolítica global e a democracia está em crise mesmo nos países onde ela tem raízes históricas mais profundas, sobra cada vez menos espaço para posições permanentemente ambíguas. Não se trata de sustentar uma visão rígida, simplista e ingênua que divide o mundo entre “maus” e “bons”, cabendo aos Estados Unidos o papel do mocinho e à(s) potência(s) antagonista(s), o de vilão. Mas há momentos em que o preço da ambiguidade se torna exorbitante e suas consequências, virtualmente irremediáveis. O recrudescimento do regime chavista na Venezuela é um desses momentos.

O atual processo político na Venezuela difere de ondas repressivas desencadeadas em anos recentes em Cuba e Nicarágua. Não resta dúvida de que foi e continua sendo moralmente repulsivo o silêncio frente à condenação a longas penas de prisão de artistas que lideraram os protestos contra o regime cubano em 2021 e 2022, para não falar dos assassinatos cometidos a mando de Daniel Ortega na repressão às manifestações populares que tomaram Manágua em 2018. Mas há diferenças. A primeira delas é de natureza geográfica, já que nem Cuba nem Nicarágua são países vizinhos, fronteiriços ao Brasil. A segunda é geopolítica. A consolidação de uma ditadura na Venezuela fará com que tensões globais entre Estados Unidos, de um lado, Rússia e China, de outro, passem a condicionar a dinâmica das relações entre os países sul-americanos e a ter influência maior na política doméstica de cada um deles. Nada disso interessa ao Brasil.

A deterioração política e econômica na Venezuela é de tal ordem que a manutenção do regime chavista só é viável à custa da sua total subserviência aos interesses de Rússia e China e de doses cavalares de coerção política. Está disposta a esquerda brasileira a ser complacente com um regime assim? Em nome de que valores, em favor de que projeto de futuro?

O Brasil precisa de uma esquerda plena e inequivocamente democrática (os advérbios aqui são tão importantes quanto o adjetivo). Por seu enraizamento social e força político-eleitoral, o PT, em especial, teve um papel importante na correção parcial das enormes desigualdades que marcam a sociedade brasileira, apesar do atavismo corporativista que o leva a defender privilégios de categorias profissionais ligadas ao setor público.

O fortalecimento das políticas sociais não foi obra de um só partido, longe disso, mas é inegável a contribuição do PT para dar consequência prática às diretrizes e princípios social-democratas da Constituição de 1988. A concretização das promessas não cumpridas de maior igualdade e reconhecimento de grupos sociais historicamente subalternos é uma tarefa pendente. Não se pode dissociar a realização dessa tarefa – para a qual a relevância da esquerda é indiscutível – do fortalecimento da democracia como valor universal e conquista civilizatória.

Não há mais tempo e espaço para omissão e ambiguidade. A esquerda brasileira terá de escolher entre duas vertentes históricas: a do socialismo democrático, que se expressou concretamente na social-democracia, ou a do marxismo-leninismo, que na América Latina se afeiçoou a líderes populistas autoritários ou ditadores anti-imperialistas. Ela tem os pés na primeira vertente, mas continua com o rabo preso à segunda.

A democracia não pode ser relativizada. Para a esquerda brasileira, a Venezuela é a hora da verdade.

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