A identidade de uma Constituição, a nosso ver, está na resistência que ela oferece contra o arbítrio. Por óbvio, ela não se reduz a isso, mas pensamos que esse é o seu fundamento.
Os limites materiais de reforma constitucional descritos nos incisos do artigo 60, parágrafo 4.º, da Constituição da República Federativa do Brasil são seu caráter pétreo e essencial, ao menos por expressa determinação do poder constituinte originário. Eles são padrões mínimos comportamentais legalmente estabelecidos, aos quais a atuação dos agentes públicos deve se adaptar. No entanto, os elementos constitucionais essenciais contemplados nesses dispositivos encobrem a sua real função; são mecanismos de limite e de controle do poder, tanto no plano horizontal (separação dos Poderes) quanto no plano vertical (federalismo, voto, direitos e garantias individuais). A bem da verdade, a lógica subjacente a uma república é que todo poder tem seu respectivo controle, sob pena de sujeitar-se ao arbítrio. Por isso, a existência de limites sem controles é inócua, e esses últimos se portam como elementos indispensáveis para a Constituição e inseparáveis dela.
Nossa tese é que o federalismo, o voto, a separação dos Poderes e os direitos e garantias fundamentais individuais são, respectivamente, modos de descentralização, alternância, fragmentação e resistência ao poder. E, entre esses elementos inalteráveis, não há dúvidas de que o voto, em especial, é um mecanismo de participação, mas também se relaciona com o controle do poder político. O sufrágio é um direito fundamental de escolha para a mudança de poder, que se manifesta por meio do voto direto, secreto, universal e periódico. A escolha por esse método é uma forma de distinguir, entre os elegíveis, quem irá exercer o poder em nome do povo. E, em um Estado constitucional, ninguém exerce o poder de forma indefinida, mas apenas periodicamente.
Para essa discussão, é oportuno trazer à baila a fórmula popperiana para pensar uma teoria democrática do controle. Nela, a democracia consiste na estruturação de mecanismos para a seleção dos políticos e na limitação prática do poder, visando a criar, desenvolver e proteger as instituições adequadas para manter um governo antiarbitrário.
Essa compreensão do princípio democrático sob o prisma de uma teoria do controle é útil para pensarmos a limitação temporal dos mandatos de cargos eletivos e a capacidade de resposta contra a corrupção política. Além da importância dos processos que legitimam os políticos eleitos, ganha destaque a perspectiva do processo de deslegitimação, que afasta os titulares de tais cargos. O foco desse pensamento não se concentra apenas na justiça de um governo da maioria, mas na preocupação em evitar a tirania e em resistir a ela.
É nesse sentido que as eleições gerais ganham relevância, pois, mais do que um processo legitimador – cuja incerteza sobre a escolha correta sempre existirá –, temos a possibilidade de retirar do poder, sem percalços antidemocráticos, os políticos incompetentes. Por isso, as eleições servem como um meio de controle prospectivo dos acertos e dos erros no exercício do mandato.
A adoção desse princípio sustenta que uma péssima administração ou legislatura pode até acontecer – o que obviamente tentamos evitar –, todavia seria possível mudá-la pacificamente. Tal cenário nos parece preferível à submissão a um déspota, mesmo que tenha sido legitimamente alçado ao poder.
A democracia, nesses moldes, afasta-se da pergunta platônica “Quem deve governar?” para assumir a questão “Como podemos nos livrar de políticos ruins com o menor dano possível à sociedade?”. Notemos que o primeiro questionamento não teve uma resposta satisfatória até os dias atuais, e a resposta para o segundo concentra-se no afastamento de governantes e legisladores autoritários, tirânicos ou mesmo incompetentes, sem que nesse processo haja sobressaltos indesejados no sistema democrático.
Feitos esses apontamentos e admitindo essa teoria, teríamos uma percepção diferente do fenômeno. A teoria do controle democrático, nesse contexto, não se basearia primordialmente no princípio de que a maioria deve governar, o que, obviamente, é indispensável. A base dessa ideia estaria atenta aos diversos métodos igualitários para o controle.
As consequências desse pensamento não forçariam o cidadão a encarar o resultado de uma votação como justo. Isso porque, embora o eleitor respeite o resultado de uma decisão majoritária, pois assim funcionam as instituições democráticas, ele estaria livre, no dia seguinte, para trabalhar legalmente pela revisão do resultado indesejado.
Portanto, a escolha popular pelo voto, especialmente em virtude de sua periodicidade, é uma forma de limitação, pois alterna os representantes no poder e, assim, cria demarcações. Com isso, os representantes eleitos já compreendem os limites impostos pelo voto popular, porque estão cientes da alternância que lhes é previamente determinada. E, por fim, parafraseando o jurista Ronaldo Cunha Campos, podemos arrematar que participar do poder não deixa de ser um modo de limitá-lo, e essa é a relação implícita entre voto, participação e controle, que devemos escancarar durante os ciclos eleitorais.
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DOUTOR EM DIREITO, BACHAREL EM FILOSOFIA, É ADVOGADO