Na sexta-feira à tarde, um episódio medonho na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco machucou o espírito de quem ama aquela escola. Perfilados diante das portas do Salão Nobre, policiais militares armados – e muito à vontade – barravam a entrada de estudantes que protestavam contra a presença do governador no recinto. Dentro do auditório mais solene da velha academia, tomava posse o novo procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa. Além do chefe do governo paulista, a cerimônia reuniu ministros do Supremo Tribunal Federal, o prefeito da cidade e mais uma porção de autoridades. Do lado de fora, nos corredores, a juventude que gritava palavras de ordem pacificamente era tratada aos empurrões. Há vídeos em portais noticiosos de grande credibilidade, como o G1. No meio da escaramuça, um policial leva a mão ao coldre, como se quisesse sacar a arma. Professores e professoras, numa prova de coragem e lucidez, se posicionaram como escudos físicos entre o contingente policial e os manifestantes. Foi a forma que encontraram de proteger seus alunos.
Poucos dias antes, no dia 21 de maio, em outra demonstração de insensibilidade, policiais espancaram estudantes que foram até a Assembleia Legislativa para expressar seu repúdio contra o projeto do governo de criar as tais escolas “cívico-militares”. A Ordem dos Advogados, Seção São Paulo, apontou uma ligação entre os dois eventos lamentáveis e, em nota pública, afirmou que essa forma de repressão “revela uso excessivo da força e, mais do que pela dimensão isolada dos episódios, preocupa pelo potencial de repetição e escalada, que podem causar situações mais graves”.
A preocupação procede. Até onde essa “escalada” vai nos levar? Com essa pergunta na cabeça, peço licença ao improvável leitor para uma reminiscência. Vou contar aqui o que vivi há 40 anos.
Na noite de 25 de abril de 1984, a Emenda Dante de Oliveira, que restabeleceria as eleições diretas para presidente da República, foi derrotada na Câmara dos Deputados, em Brasília. Eu era presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto. Eu e meus colegas acompanhávamos a votação num grande comício na Praça da Sé. Alguém no palanque ouvia os votos por um equipamento de rádio e anunciava os números no microfone. Em 1984 não havia celular, nem internet, muito menos democracia – estávamos em plena ditadura militar.
Quando veio o placar final, aterrador, já era bem tarde. Convocamos uma assembleia imediata na Sala dos Estudantes, na faculdade, que ficou lotada de alunas, alunos, populares e policiais disfarçados de populares. Também estavam presentes a deputada estadual Clara Ant, do Partido dos Trabalhadores, e José Dirceu, dirigente da mesma legenda. Os debates se estenderam até cerca de quatro da manhã, quando decidimos realizar um ato público no Largo de São Francisco, em frente à faculdade, no dia seguinte.
Assim foi. No dia 26, em companhia de outros oradores, eu ocupava a Tribuna Livre. Muita gente se aglomerava ao redor. De repente, os policiais militares que já cercavam o largo desde cedo vieram para cima. Pancadaria, gritos, sobressaltos. Prenderam o aluno Flavio Straus, que seria solto poucas horas depois. Eu escapei. Dois funcionários da faculdade me resgataram no meio do corre-corre, abrindo caminho na massa que, acossada pelos cassetetes, buscava abrigo no pátio interno.
Determinados e rápidos, os dois me levaram para o primeiro andar, onde me esperava o vice-diretor, Alexandre Augusto de Castro Corrêa. Ele não era nem de longe um sujeito de esquerda, antes o contrário, mas me aguardava de pé, na porta de sua sala, e me pôs para dentro com presteza bolchevique. Fiquei escondido atrás das cortinas de veludo vermelho. Claro que nenhum policial ousou subir até lá, mas a direção da escola deu seu recado: a polícia não era bem-vinda naquele lugar.
Essa foi a primeira lição que aprendi na ressaca da derrota da Emenda Dante de Oliveira. A segunda lição veio no outro dia, 27 de abril. O então secretário da Segurança Pública do governo de São Paulo fez uma visita oficial à escola para se declarar contrário aos excessos cometidos por seus homens. Esse secretário era Michel Temer. O governador era Franco Montoro. Eu não tinha identidade partidária com nenhum deles, mas reconheci o valor do gesto contido naquela visita. Tratava-se de mais um recado: em tempos de ditadura, o governo paulista procurava firmar seu compromisso com a democracia.
O Estadão guarda até hoje um registro dessa visita, na sua galeria de fotos históricas. Eu apareço ao lado de Temer na fotografia de número 100. Olho para ele com cara de quem quase tomou sopapo de soldado.
Hoje, a ditadura não existe mais. Contudo, a arrogância da repressão parece pior do que em 1984. Não consta que o secretário tenha pedido desculpas pela selvageria fardada. Deveria, mas todo mundo sabe que ele jamais fará isso. Em tempos de democracia, o governo paulista corteja o autoritarismo.
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JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA ECA-USP