Jornalista e professor da ECA-USP, Eugênio Bucci escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|O entretenimento como religião


Não foi o espetáculo televisivo que atendeu com diligência às demandas das profissões de fé – estas é que serviram aos desígnios do espetáculo

Por Eugênio Bucci

Por graça ou interesse, as igrejas se valem dos meios de comunicação para ganhar fiéis. Sabemos disso há coisa de cem anos. Foi nos Estados Unidos, pelas ondas do rádio, que a prática se tornou um expediente assíduo, ainda na primeira metade do século 20. Na década de 1960, os televangelizadores, à imagem e semelhança de Billy Graham, cresceram e se multiplicaram em escalas miraculosas. O cristianismo de raízes protestantes e feições evangélicas se apossou de um filão inteiro das redes de TV, num empuxo que se replicou mundo afora. Então, o linguajar plangente, a cenografia ambientada em templos vastos, o figurino em traje passeio completo e a coreografia expressionista fincaram seus púlpitos em plagas longínquas – algumas verdadeiramente remotas, como as brasileiras. Por aqui, quando baixa o horário nobre, pregadores oram e peroram em quase todos os canais abertos. Todas as religiões, ou virtualmente todas, requisitam os préstimos e os auxílios das tecnologias midiáticas em prol da fé. O divino é um campeão de audiência. O demônio também – depende do ponto de vista do freguês.

Mas disso tudo já sabemos, e não é de hoje. O que não sabemos e teimamos em não saber é que, no instante em que invocaram as energias gentis do entretenimento para arrebatar assembleias maiores, as igrejas selaram um pacto, se não com o satanás em pessoa, com entidades que desconheciam e que podiam devorá-las por dentro. Tanto podiam que devoraram.

O resultado está aí, diante dos nossos olhos incrédulos. Não foi o espetáculo televisivo que atendeu com diligência às demandas das múltiplas profissões de fé – estas é que serviram, sem se dar conta, aos desígnios do espetáculo. Quem tomou vulto ao longo das décadas não foi a caridade, não foi o amor ao próximo, não foi o recolhimento pio, não foi a fraternidade, não foi o retiro espiritual, não foi o voto de pobreza – foi, isto sim, o transe do showbiz, foi o êxtase das receitas publicitárias, foi a indústria do sagrado lucrativo, foi o mercado do pastoreio próspero e galante.

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Não importa o tema da programação, importa somente a forma da diversão catártica – a religiosidade está na forma, não no conteúdo. Você pode achar que estamos em meio ao politeísmo pluralista de credos distintos que convivem entre si num ambiente ecumênico. Você pode acreditar que os megaeventos na cidade comprovam o que temos chamado de diversidade. Você pode até argumentar que a Marcha para Jesus lança mensagens opostas às da Parada Gay, e vice-versa. No entanto, por trás do aparente “multiculturalismo”, imperam as leis ocultas do espetáculo, que a tudo igualam, padronizam e uniformizam. Olhe e comprove. Na sua forma, a Parada Gay e a Marcha para Jesus são, mais do que equivalentes, idênticas: ambas se espelham como gêmeas siamesas e simétricas. As duas, supondo tirar proveito das turbinas do entretenimento, ofertam a essas turbinas, em sacrifício, o combustível precioso das almas fervorosas e dos corpos ferventes.

O entretenimento é o altar dos altares: não é uma ferramenta pronta para entregar as encomendas que lhe chegam das seitas – ele é, antes, a forma social da religião, de qualquer religião possível no nosso tempo. Toda espécie de religação – seja como vínculo identitário, seja como laço comunitário – só se realiza se passar pela mediação da malha comunicacional orientada para o mercado e apenas para o mercado. É como empresa privada que uma igreja se faz ativar pelos meios de comunicação.

As religiões não têm o poder de impor nenhuma liturgia às telas eletrônicas – estas é que plasmam sua liturgia vaga sobre o ser etéreo das religiões. Isso significa que, quando fala a língua do rádio, da TV ou da internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet.

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Fundamentalista, o entretenimento rege os seres humanos com a força de um monoteísmo sem deus. Mesmo quando não trata de santos ou de orixás, mesmo quando não fala sobre Jesus ou sobre Jeová, mesmo quando só se ocupa de mercadorias banais, de atrizes sorridentes, de cantoras estridentes e de jogadores de futebol, o entretenimento impera com seus cânones draconianos (a sujeição à imagem, por exemplo), seus hábitos regulares (as togas dos ministros do STF são envergadas como se fossem a capa do Batman), seus ritos rígidos (os celulares de luzes acesas ondulando nos estádios) e seus códigos aparentemente profanos, mas dogmáticos (vigaristas fazendo coraçãozinho com as duas mãos juntas).

O cardápio dos sentimentos e o contorno dos afetos foram consolidados pela indústria da diversão. Ela definiu o sentido do amor, da justiça, da beleza, da comiseração e do ódio. O sujeito que vê em Donald Trump um herói destemido projeta nele o que aprendeu nos filmes de Bruce Willis. Apenas isso.

A religião do entretenimento fez do público uma plateia fanática, para a qual a democracia é só mais uma atração. Não adianta pedir que a plateia pense sobre o que faz. Na doutrina que ela abraçou com devoção, o pensamento é o maior dos pecados mortais. Talvez seja o único.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Por graça ou interesse, as igrejas se valem dos meios de comunicação para ganhar fiéis. Sabemos disso há coisa de cem anos. Foi nos Estados Unidos, pelas ondas do rádio, que a prática se tornou um expediente assíduo, ainda na primeira metade do século 20. Na década de 1960, os televangelizadores, à imagem e semelhança de Billy Graham, cresceram e se multiplicaram em escalas miraculosas. O cristianismo de raízes protestantes e feições evangélicas se apossou de um filão inteiro das redes de TV, num empuxo que se replicou mundo afora. Então, o linguajar plangente, a cenografia ambientada em templos vastos, o figurino em traje passeio completo e a coreografia expressionista fincaram seus púlpitos em plagas longínquas – algumas verdadeiramente remotas, como as brasileiras. Por aqui, quando baixa o horário nobre, pregadores oram e peroram em quase todos os canais abertos. Todas as religiões, ou virtualmente todas, requisitam os préstimos e os auxílios das tecnologias midiáticas em prol da fé. O divino é um campeão de audiência. O demônio também – depende do ponto de vista do freguês.

Mas disso tudo já sabemos, e não é de hoje. O que não sabemos e teimamos em não saber é que, no instante em que invocaram as energias gentis do entretenimento para arrebatar assembleias maiores, as igrejas selaram um pacto, se não com o satanás em pessoa, com entidades que desconheciam e que podiam devorá-las por dentro. Tanto podiam que devoraram.

O resultado está aí, diante dos nossos olhos incrédulos. Não foi o espetáculo televisivo que atendeu com diligência às demandas das múltiplas profissões de fé – estas é que serviram, sem se dar conta, aos desígnios do espetáculo. Quem tomou vulto ao longo das décadas não foi a caridade, não foi o amor ao próximo, não foi o recolhimento pio, não foi a fraternidade, não foi o retiro espiritual, não foi o voto de pobreza – foi, isto sim, o transe do showbiz, foi o êxtase das receitas publicitárias, foi a indústria do sagrado lucrativo, foi o mercado do pastoreio próspero e galante.

Não importa o tema da programação, importa somente a forma da diversão catártica – a religiosidade está na forma, não no conteúdo. Você pode achar que estamos em meio ao politeísmo pluralista de credos distintos que convivem entre si num ambiente ecumênico. Você pode acreditar que os megaeventos na cidade comprovam o que temos chamado de diversidade. Você pode até argumentar que a Marcha para Jesus lança mensagens opostas às da Parada Gay, e vice-versa. No entanto, por trás do aparente “multiculturalismo”, imperam as leis ocultas do espetáculo, que a tudo igualam, padronizam e uniformizam. Olhe e comprove. Na sua forma, a Parada Gay e a Marcha para Jesus são, mais do que equivalentes, idênticas: ambas se espelham como gêmeas siamesas e simétricas. As duas, supondo tirar proveito das turbinas do entretenimento, ofertam a essas turbinas, em sacrifício, o combustível precioso das almas fervorosas e dos corpos ferventes.

O entretenimento é o altar dos altares: não é uma ferramenta pronta para entregar as encomendas que lhe chegam das seitas – ele é, antes, a forma social da religião, de qualquer religião possível no nosso tempo. Toda espécie de religação – seja como vínculo identitário, seja como laço comunitário – só se realiza se passar pela mediação da malha comunicacional orientada para o mercado e apenas para o mercado. É como empresa privada que uma igreja se faz ativar pelos meios de comunicação.

As religiões não têm o poder de impor nenhuma liturgia às telas eletrônicas – estas é que plasmam sua liturgia vaga sobre o ser etéreo das religiões. Isso significa que, quando fala a língua do rádio, da TV ou da internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet.

Fundamentalista, o entretenimento rege os seres humanos com a força de um monoteísmo sem deus. Mesmo quando não trata de santos ou de orixás, mesmo quando não fala sobre Jesus ou sobre Jeová, mesmo quando só se ocupa de mercadorias banais, de atrizes sorridentes, de cantoras estridentes e de jogadores de futebol, o entretenimento impera com seus cânones draconianos (a sujeição à imagem, por exemplo), seus hábitos regulares (as togas dos ministros do STF são envergadas como se fossem a capa do Batman), seus ritos rígidos (os celulares de luzes acesas ondulando nos estádios) e seus códigos aparentemente profanos, mas dogmáticos (vigaristas fazendo coraçãozinho com as duas mãos juntas).

O cardápio dos sentimentos e o contorno dos afetos foram consolidados pela indústria da diversão. Ela definiu o sentido do amor, da justiça, da beleza, da comiseração e do ódio. O sujeito que vê em Donald Trump um herói destemido projeta nele o que aprendeu nos filmes de Bruce Willis. Apenas isso.

A religião do entretenimento fez do público uma plateia fanática, para a qual a democracia é só mais uma atração. Não adianta pedir que a plateia pense sobre o que faz. Na doutrina que ela abraçou com devoção, o pensamento é o maior dos pecados mortais. Talvez seja o único.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Por graça ou interesse, as igrejas se valem dos meios de comunicação para ganhar fiéis. Sabemos disso há coisa de cem anos. Foi nos Estados Unidos, pelas ondas do rádio, que a prática se tornou um expediente assíduo, ainda na primeira metade do século 20. Na década de 1960, os televangelizadores, à imagem e semelhança de Billy Graham, cresceram e se multiplicaram em escalas miraculosas. O cristianismo de raízes protestantes e feições evangélicas se apossou de um filão inteiro das redes de TV, num empuxo que se replicou mundo afora. Então, o linguajar plangente, a cenografia ambientada em templos vastos, o figurino em traje passeio completo e a coreografia expressionista fincaram seus púlpitos em plagas longínquas – algumas verdadeiramente remotas, como as brasileiras. Por aqui, quando baixa o horário nobre, pregadores oram e peroram em quase todos os canais abertos. Todas as religiões, ou virtualmente todas, requisitam os préstimos e os auxílios das tecnologias midiáticas em prol da fé. O divino é um campeão de audiência. O demônio também – depende do ponto de vista do freguês.

Mas disso tudo já sabemos, e não é de hoje. O que não sabemos e teimamos em não saber é que, no instante em que invocaram as energias gentis do entretenimento para arrebatar assembleias maiores, as igrejas selaram um pacto, se não com o satanás em pessoa, com entidades que desconheciam e que podiam devorá-las por dentro. Tanto podiam que devoraram.

O resultado está aí, diante dos nossos olhos incrédulos. Não foi o espetáculo televisivo que atendeu com diligência às demandas das múltiplas profissões de fé – estas é que serviram, sem se dar conta, aos desígnios do espetáculo. Quem tomou vulto ao longo das décadas não foi a caridade, não foi o amor ao próximo, não foi o recolhimento pio, não foi a fraternidade, não foi o retiro espiritual, não foi o voto de pobreza – foi, isto sim, o transe do showbiz, foi o êxtase das receitas publicitárias, foi a indústria do sagrado lucrativo, foi o mercado do pastoreio próspero e galante.

Não importa o tema da programação, importa somente a forma da diversão catártica – a religiosidade está na forma, não no conteúdo. Você pode achar que estamos em meio ao politeísmo pluralista de credos distintos que convivem entre si num ambiente ecumênico. Você pode acreditar que os megaeventos na cidade comprovam o que temos chamado de diversidade. Você pode até argumentar que a Marcha para Jesus lança mensagens opostas às da Parada Gay, e vice-versa. No entanto, por trás do aparente “multiculturalismo”, imperam as leis ocultas do espetáculo, que a tudo igualam, padronizam e uniformizam. Olhe e comprove. Na sua forma, a Parada Gay e a Marcha para Jesus são, mais do que equivalentes, idênticas: ambas se espelham como gêmeas siamesas e simétricas. As duas, supondo tirar proveito das turbinas do entretenimento, ofertam a essas turbinas, em sacrifício, o combustível precioso das almas fervorosas e dos corpos ferventes.

O entretenimento é o altar dos altares: não é uma ferramenta pronta para entregar as encomendas que lhe chegam das seitas – ele é, antes, a forma social da religião, de qualquer religião possível no nosso tempo. Toda espécie de religação – seja como vínculo identitário, seja como laço comunitário – só se realiza se passar pela mediação da malha comunicacional orientada para o mercado e apenas para o mercado. É como empresa privada que uma igreja se faz ativar pelos meios de comunicação.

As religiões não têm o poder de impor nenhuma liturgia às telas eletrônicas – estas é que plasmam sua liturgia vaga sobre o ser etéreo das religiões. Isso significa que, quando fala a língua do rádio, da TV ou da internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet.

Fundamentalista, o entretenimento rege os seres humanos com a força de um monoteísmo sem deus. Mesmo quando não trata de santos ou de orixás, mesmo quando não fala sobre Jesus ou sobre Jeová, mesmo quando só se ocupa de mercadorias banais, de atrizes sorridentes, de cantoras estridentes e de jogadores de futebol, o entretenimento impera com seus cânones draconianos (a sujeição à imagem, por exemplo), seus hábitos regulares (as togas dos ministros do STF são envergadas como se fossem a capa do Batman), seus ritos rígidos (os celulares de luzes acesas ondulando nos estádios) e seus códigos aparentemente profanos, mas dogmáticos (vigaristas fazendo coraçãozinho com as duas mãos juntas).

O cardápio dos sentimentos e o contorno dos afetos foram consolidados pela indústria da diversão. Ela definiu o sentido do amor, da justiça, da beleza, da comiseração e do ódio. O sujeito que vê em Donald Trump um herói destemido projeta nele o que aprendeu nos filmes de Bruce Willis. Apenas isso.

A religião do entretenimento fez do público uma plateia fanática, para a qual a democracia é só mais uma atração. Não adianta pedir que a plateia pense sobre o que faz. Na doutrina que ela abraçou com devoção, o pensamento é o maior dos pecados mortais. Talvez seja o único.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Por graça ou interesse, as igrejas se valem dos meios de comunicação para ganhar fiéis. Sabemos disso há coisa de cem anos. Foi nos Estados Unidos, pelas ondas do rádio, que a prática se tornou um expediente assíduo, ainda na primeira metade do século 20. Na década de 1960, os televangelizadores, à imagem e semelhança de Billy Graham, cresceram e se multiplicaram em escalas miraculosas. O cristianismo de raízes protestantes e feições evangélicas se apossou de um filão inteiro das redes de TV, num empuxo que se replicou mundo afora. Então, o linguajar plangente, a cenografia ambientada em templos vastos, o figurino em traje passeio completo e a coreografia expressionista fincaram seus púlpitos em plagas longínquas – algumas verdadeiramente remotas, como as brasileiras. Por aqui, quando baixa o horário nobre, pregadores oram e peroram em quase todos os canais abertos. Todas as religiões, ou virtualmente todas, requisitam os préstimos e os auxílios das tecnologias midiáticas em prol da fé. O divino é um campeão de audiência. O demônio também – depende do ponto de vista do freguês.

Mas disso tudo já sabemos, e não é de hoje. O que não sabemos e teimamos em não saber é que, no instante em que invocaram as energias gentis do entretenimento para arrebatar assembleias maiores, as igrejas selaram um pacto, se não com o satanás em pessoa, com entidades que desconheciam e que podiam devorá-las por dentro. Tanto podiam que devoraram.

O resultado está aí, diante dos nossos olhos incrédulos. Não foi o espetáculo televisivo que atendeu com diligência às demandas das múltiplas profissões de fé – estas é que serviram, sem se dar conta, aos desígnios do espetáculo. Quem tomou vulto ao longo das décadas não foi a caridade, não foi o amor ao próximo, não foi o recolhimento pio, não foi a fraternidade, não foi o retiro espiritual, não foi o voto de pobreza – foi, isto sim, o transe do showbiz, foi o êxtase das receitas publicitárias, foi a indústria do sagrado lucrativo, foi o mercado do pastoreio próspero e galante.

Não importa o tema da programação, importa somente a forma da diversão catártica – a religiosidade está na forma, não no conteúdo. Você pode achar que estamos em meio ao politeísmo pluralista de credos distintos que convivem entre si num ambiente ecumênico. Você pode acreditar que os megaeventos na cidade comprovam o que temos chamado de diversidade. Você pode até argumentar que a Marcha para Jesus lança mensagens opostas às da Parada Gay, e vice-versa. No entanto, por trás do aparente “multiculturalismo”, imperam as leis ocultas do espetáculo, que a tudo igualam, padronizam e uniformizam. Olhe e comprove. Na sua forma, a Parada Gay e a Marcha para Jesus são, mais do que equivalentes, idênticas: ambas se espelham como gêmeas siamesas e simétricas. As duas, supondo tirar proveito das turbinas do entretenimento, ofertam a essas turbinas, em sacrifício, o combustível precioso das almas fervorosas e dos corpos ferventes.

O entretenimento é o altar dos altares: não é uma ferramenta pronta para entregar as encomendas que lhe chegam das seitas – ele é, antes, a forma social da religião, de qualquer religião possível no nosso tempo. Toda espécie de religação – seja como vínculo identitário, seja como laço comunitário – só se realiza se passar pela mediação da malha comunicacional orientada para o mercado e apenas para o mercado. É como empresa privada que uma igreja se faz ativar pelos meios de comunicação.

As religiões não têm o poder de impor nenhuma liturgia às telas eletrônicas – estas é que plasmam sua liturgia vaga sobre o ser etéreo das religiões. Isso significa que, quando fala a língua do rádio, da TV ou da internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet.

Fundamentalista, o entretenimento rege os seres humanos com a força de um monoteísmo sem deus. Mesmo quando não trata de santos ou de orixás, mesmo quando não fala sobre Jesus ou sobre Jeová, mesmo quando só se ocupa de mercadorias banais, de atrizes sorridentes, de cantoras estridentes e de jogadores de futebol, o entretenimento impera com seus cânones draconianos (a sujeição à imagem, por exemplo), seus hábitos regulares (as togas dos ministros do STF são envergadas como se fossem a capa do Batman), seus ritos rígidos (os celulares de luzes acesas ondulando nos estádios) e seus códigos aparentemente profanos, mas dogmáticos (vigaristas fazendo coraçãozinho com as duas mãos juntas).

O cardápio dos sentimentos e o contorno dos afetos foram consolidados pela indústria da diversão. Ela definiu o sentido do amor, da justiça, da beleza, da comiseração e do ódio. O sujeito que vê em Donald Trump um herói destemido projeta nele o que aprendeu nos filmes de Bruce Willis. Apenas isso.

A religião do entretenimento fez do público uma plateia fanática, para a qual a democracia é só mais uma atração. Não adianta pedir que a plateia pense sobre o que faz. Na doutrina que ela abraçou com devoção, o pensamento é o maior dos pecados mortais. Talvez seja o único.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Por graça ou interesse, as igrejas se valem dos meios de comunicação para ganhar fiéis. Sabemos disso há coisa de cem anos. Foi nos Estados Unidos, pelas ondas do rádio, que a prática se tornou um expediente assíduo, ainda na primeira metade do século 20. Na década de 1960, os televangelizadores, à imagem e semelhança de Billy Graham, cresceram e se multiplicaram em escalas miraculosas. O cristianismo de raízes protestantes e feições evangélicas se apossou de um filão inteiro das redes de TV, num empuxo que se replicou mundo afora. Então, o linguajar plangente, a cenografia ambientada em templos vastos, o figurino em traje passeio completo e a coreografia expressionista fincaram seus púlpitos em plagas longínquas – algumas verdadeiramente remotas, como as brasileiras. Por aqui, quando baixa o horário nobre, pregadores oram e peroram em quase todos os canais abertos. Todas as religiões, ou virtualmente todas, requisitam os préstimos e os auxílios das tecnologias midiáticas em prol da fé. O divino é um campeão de audiência. O demônio também – depende do ponto de vista do freguês.

Mas disso tudo já sabemos, e não é de hoje. O que não sabemos e teimamos em não saber é que, no instante em que invocaram as energias gentis do entretenimento para arrebatar assembleias maiores, as igrejas selaram um pacto, se não com o satanás em pessoa, com entidades que desconheciam e que podiam devorá-las por dentro. Tanto podiam que devoraram.

O resultado está aí, diante dos nossos olhos incrédulos. Não foi o espetáculo televisivo que atendeu com diligência às demandas das múltiplas profissões de fé – estas é que serviram, sem se dar conta, aos desígnios do espetáculo. Quem tomou vulto ao longo das décadas não foi a caridade, não foi o amor ao próximo, não foi o recolhimento pio, não foi a fraternidade, não foi o retiro espiritual, não foi o voto de pobreza – foi, isto sim, o transe do showbiz, foi o êxtase das receitas publicitárias, foi a indústria do sagrado lucrativo, foi o mercado do pastoreio próspero e galante.

Não importa o tema da programação, importa somente a forma da diversão catártica – a religiosidade está na forma, não no conteúdo. Você pode achar que estamos em meio ao politeísmo pluralista de credos distintos que convivem entre si num ambiente ecumênico. Você pode acreditar que os megaeventos na cidade comprovam o que temos chamado de diversidade. Você pode até argumentar que a Marcha para Jesus lança mensagens opostas às da Parada Gay, e vice-versa. No entanto, por trás do aparente “multiculturalismo”, imperam as leis ocultas do espetáculo, que a tudo igualam, padronizam e uniformizam. Olhe e comprove. Na sua forma, a Parada Gay e a Marcha para Jesus são, mais do que equivalentes, idênticas: ambas se espelham como gêmeas siamesas e simétricas. As duas, supondo tirar proveito das turbinas do entretenimento, ofertam a essas turbinas, em sacrifício, o combustível precioso das almas fervorosas e dos corpos ferventes.

O entretenimento é o altar dos altares: não é uma ferramenta pronta para entregar as encomendas que lhe chegam das seitas – ele é, antes, a forma social da religião, de qualquer religião possível no nosso tempo. Toda espécie de religação – seja como vínculo identitário, seja como laço comunitário – só se realiza se passar pela mediação da malha comunicacional orientada para o mercado e apenas para o mercado. É como empresa privada que uma igreja se faz ativar pelos meios de comunicação.

As religiões não têm o poder de impor nenhuma liturgia às telas eletrônicas – estas é que plasmam sua liturgia vaga sobre o ser etéreo das religiões. Isso significa que, quando fala a língua do rádio, da TV ou da internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet.

Fundamentalista, o entretenimento rege os seres humanos com a força de um monoteísmo sem deus. Mesmo quando não trata de santos ou de orixás, mesmo quando não fala sobre Jesus ou sobre Jeová, mesmo quando só se ocupa de mercadorias banais, de atrizes sorridentes, de cantoras estridentes e de jogadores de futebol, o entretenimento impera com seus cânones draconianos (a sujeição à imagem, por exemplo), seus hábitos regulares (as togas dos ministros do STF são envergadas como se fossem a capa do Batman), seus ritos rígidos (os celulares de luzes acesas ondulando nos estádios) e seus códigos aparentemente profanos, mas dogmáticos (vigaristas fazendo coraçãozinho com as duas mãos juntas).

O cardápio dos sentimentos e o contorno dos afetos foram consolidados pela indústria da diversão. Ela definiu o sentido do amor, da justiça, da beleza, da comiseração e do ódio. O sujeito que vê em Donald Trump um herói destemido projeta nele o que aprendeu nos filmes de Bruce Willis. Apenas isso.

A religião do entretenimento fez do público uma plateia fanática, para a qual a democracia é só mais uma atração. Não adianta pedir que a plateia pense sobre o que faz. Na doutrina que ela abraçou com devoção, o pensamento é o maior dos pecados mortais. Talvez seja o único.

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