Jornalista e professor da ECA-USP, Eugênio Bucci escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|O entretenimento engole a política


Quando as decisões que afetam a ordem do comum repelem o entendimento do que seja o bem comum, é porque vai dar ruim. O conceito de República se desfaz na poeira do tempo

Por Eugênio Bucci

Você olha e fica boquiaberto. Mas como pode ser? Você esfrega os olhos, não é possível que esteja vendo o que vê. O modo como as pessoas reagem às notícias desperta no seu espírito uma incredulidade perplexa. Tudo na política – tudo mesmo, sem exceção – virou uma questão de torcida organizada, de arrebatamento de almas (pequenas) e de furor irracional. Nos tempos da covid a gente viu de perto: a hidroxicloroquina vai dar certo porque eu tenho fé; a ivermectina vai salvar vidas porque eu acredito; a vacina chinesa carrega um chip oculto que vai rastrear os desejos de consumo da vizinha, eu sei, eu vi um vídeo na internet. Parece loucura. É loucura.

A polarização se faz de ânimos conflagrados, não mais de opiniões divergentes. A metáfora da ágora grega não serve mais para representar o debate público. A imagem da disputa de pontos de vista entre seres racionais perdeu a validade. Agora, as multidões se sentem em guerras santas, em cruzadas sanguinárias, se sentem no Coliseu de Roma apontando o polegar para baixo. O script do tempo são os linchamentos virtuais. O fundamentalismo corre solto. Intolerância na veia. Nos Estados Unidos, os numerosos radicais do Partido Republicano trabalham com o dogma tácito de que as eleições de 2020 foram roubadas, e ai de quem discordar. Para muita gente, o aquecimento global é um mito fabricado. Eis o colégio eleitoral do nosso tempo.

Como explicar esses efeitos de estrondos e de fúria? As hipóteses são múltiplas, não necessariamente excludentes, mas uma delas fala mais alto: o universo da política foi inteiramente tragado pela linguagem do entretenimento – e, no entretenimento, a reafirmação do ego (ou do eu) vale mais do que a verdade dos fatos. Ponto. Parágrafo.

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É verdade que, desde que o mundo é imundo, a política traz na sua fórmula ingredientes teatrais, elementos lúdicos e temperos passionais. Sempre foi assim. A partir da prevalência das plataformas sociais, contudo, a coisa mudou de patamar. Todas as escolhas que antes se resolviam na esfera da pólis hoje se decidem num imenso reality show interativo, onde o desejo íntimo sobrepuja com folga (e com gozo) o interesse público. A razão e a objetividade escasseiam, enquanto as emoções eclodem, em apoteoses surdas.

O que vemos diante de nós não combina mais com os conceitos que valiam até algumas décadas atrás. É outra coisa, outro bicho. Já deram a esse ambiente, em que as questões políticas se comportam como atrações circenses, o nome de “era da pós-verdade”. Foi com essa expressão, aliás, que a revista The Economist se referiu à campanha presidencial de Donald Trump, numa reportagem de capa em setembro de 2016. Por certo, podemos nos referir à nova geleia geral como a “era da pós-verdade”, mas o fenômeno é maior do que imaginávamos em 2016. É mais monstruoso e mais profundo.

Vejamos o que se passa com a comunicação dos partidos, das autoridades estatais, das ONGs ou dos organismos internacionais. Essa comunicação já não interpela a razão, mas a emoção – e faz isso em formatos melodramáticos. Ou a mensagem segue o alfabeto visual estabelecido pela indústria do entretenimento, quer dizer, ou a propaganda assimila as narrativas baseadas no modelo bonzinhos-contra-malvados, ou não encontrará eco nas mentes e nos corações.

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A que se reduziu o impasse da guerra do Oriente Médio? A uma disputa interminável sobre quem é que merece ser posto no papel de vítima. Os escombros da Faixa de Gaza – escombros urbanos, escombros humanos – são apenas o epicentro cenográfico de uma imensa guerra de imagem para ver quem consegue tomar para si o papel de vítima. Quem fizer jus a esse lugar merecerá o amor incondicional da plateia (antes conhecida como opinião pública). Acostume-se. A realidade se comporta como um filme de aventura, com princesinhas desprotegidas, cavalos suados e rapazes incultos, mas valentes.

Assim como o ideólogo do início do século 20 cedeu seu posto ao marqueteiro do início do século 21, o instituto da razão perdeu terreno para as identificações pulsionais, libidinais, fáceis e acachapantes propiciadas pelas técnicas industriais do entretenimento. A política hoje integra o vasto comércio das diversões públicas. O cidadão, que era a fonte de todo o poder, acomodou-se na condição de consumidor voraz de sensações estupefacientes. Não é mais como cidadão que ele se mobiliza, mas como torcedor fanático, como religioso fiel ou, ainda, como fã ardoroso. Se você ainda tem dúvidas, releia as mensagens que chegam nos grupos de WhatsApp. Lá estão os sintomas: os abaixo-assinados sentimentais, as figurinhas animadas que defendem uma tese em um único segundo, as subcelebridades desocupadas pontificando sobre assuntos complexos como se discorressem sobre o uso da cebola numa receita vegana. Está na cara, não está?

Não, isso aí não vai dar certo. Quando as decisões que afetam a ordem do comum repelem o entendimento do que seja o bem comum, é porque vai dar ruim. O conceito de República se desfaz na poeira do tempo.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Você olha e fica boquiaberto. Mas como pode ser? Você esfrega os olhos, não é possível que esteja vendo o que vê. O modo como as pessoas reagem às notícias desperta no seu espírito uma incredulidade perplexa. Tudo na política – tudo mesmo, sem exceção – virou uma questão de torcida organizada, de arrebatamento de almas (pequenas) e de furor irracional. Nos tempos da covid a gente viu de perto: a hidroxicloroquina vai dar certo porque eu tenho fé; a ivermectina vai salvar vidas porque eu acredito; a vacina chinesa carrega um chip oculto que vai rastrear os desejos de consumo da vizinha, eu sei, eu vi um vídeo na internet. Parece loucura. É loucura.

A polarização se faz de ânimos conflagrados, não mais de opiniões divergentes. A metáfora da ágora grega não serve mais para representar o debate público. A imagem da disputa de pontos de vista entre seres racionais perdeu a validade. Agora, as multidões se sentem em guerras santas, em cruzadas sanguinárias, se sentem no Coliseu de Roma apontando o polegar para baixo. O script do tempo são os linchamentos virtuais. O fundamentalismo corre solto. Intolerância na veia. Nos Estados Unidos, os numerosos radicais do Partido Republicano trabalham com o dogma tácito de que as eleições de 2020 foram roubadas, e ai de quem discordar. Para muita gente, o aquecimento global é um mito fabricado. Eis o colégio eleitoral do nosso tempo.

Como explicar esses efeitos de estrondos e de fúria? As hipóteses são múltiplas, não necessariamente excludentes, mas uma delas fala mais alto: o universo da política foi inteiramente tragado pela linguagem do entretenimento – e, no entretenimento, a reafirmação do ego (ou do eu) vale mais do que a verdade dos fatos. Ponto. Parágrafo.

É verdade que, desde que o mundo é imundo, a política traz na sua fórmula ingredientes teatrais, elementos lúdicos e temperos passionais. Sempre foi assim. A partir da prevalência das plataformas sociais, contudo, a coisa mudou de patamar. Todas as escolhas que antes se resolviam na esfera da pólis hoje se decidem num imenso reality show interativo, onde o desejo íntimo sobrepuja com folga (e com gozo) o interesse público. A razão e a objetividade escasseiam, enquanto as emoções eclodem, em apoteoses surdas.

O que vemos diante de nós não combina mais com os conceitos que valiam até algumas décadas atrás. É outra coisa, outro bicho. Já deram a esse ambiente, em que as questões políticas se comportam como atrações circenses, o nome de “era da pós-verdade”. Foi com essa expressão, aliás, que a revista The Economist se referiu à campanha presidencial de Donald Trump, numa reportagem de capa em setembro de 2016. Por certo, podemos nos referir à nova geleia geral como a “era da pós-verdade”, mas o fenômeno é maior do que imaginávamos em 2016. É mais monstruoso e mais profundo.

Vejamos o que se passa com a comunicação dos partidos, das autoridades estatais, das ONGs ou dos organismos internacionais. Essa comunicação já não interpela a razão, mas a emoção – e faz isso em formatos melodramáticos. Ou a mensagem segue o alfabeto visual estabelecido pela indústria do entretenimento, quer dizer, ou a propaganda assimila as narrativas baseadas no modelo bonzinhos-contra-malvados, ou não encontrará eco nas mentes e nos corações.

A que se reduziu o impasse da guerra do Oriente Médio? A uma disputa interminável sobre quem é que merece ser posto no papel de vítima. Os escombros da Faixa de Gaza – escombros urbanos, escombros humanos – são apenas o epicentro cenográfico de uma imensa guerra de imagem para ver quem consegue tomar para si o papel de vítima. Quem fizer jus a esse lugar merecerá o amor incondicional da plateia (antes conhecida como opinião pública). Acostume-se. A realidade se comporta como um filme de aventura, com princesinhas desprotegidas, cavalos suados e rapazes incultos, mas valentes.

Assim como o ideólogo do início do século 20 cedeu seu posto ao marqueteiro do início do século 21, o instituto da razão perdeu terreno para as identificações pulsionais, libidinais, fáceis e acachapantes propiciadas pelas técnicas industriais do entretenimento. A política hoje integra o vasto comércio das diversões públicas. O cidadão, que era a fonte de todo o poder, acomodou-se na condição de consumidor voraz de sensações estupefacientes. Não é mais como cidadão que ele se mobiliza, mas como torcedor fanático, como religioso fiel ou, ainda, como fã ardoroso. Se você ainda tem dúvidas, releia as mensagens que chegam nos grupos de WhatsApp. Lá estão os sintomas: os abaixo-assinados sentimentais, as figurinhas animadas que defendem uma tese em um único segundo, as subcelebridades desocupadas pontificando sobre assuntos complexos como se discorressem sobre o uso da cebola numa receita vegana. Está na cara, não está?

Não, isso aí não vai dar certo. Quando as decisões que afetam a ordem do comum repelem o entendimento do que seja o bem comum, é porque vai dar ruim. O conceito de República se desfaz na poeira do tempo.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Você olha e fica boquiaberto. Mas como pode ser? Você esfrega os olhos, não é possível que esteja vendo o que vê. O modo como as pessoas reagem às notícias desperta no seu espírito uma incredulidade perplexa. Tudo na política – tudo mesmo, sem exceção – virou uma questão de torcida organizada, de arrebatamento de almas (pequenas) e de furor irracional. Nos tempos da covid a gente viu de perto: a hidroxicloroquina vai dar certo porque eu tenho fé; a ivermectina vai salvar vidas porque eu acredito; a vacina chinesa carrega um chip oculto que vai rastrear os desejos de consumo da vizinha, eu sei, eu vi um vídeo na internet. Parece loucura. É loucura.

A polarização se faz de ânimos conflagrados, não mais de opiniões divergentes. A metáfora da ágora grega não serve mais para representar o debate público. A imagem da disputa de pontos de vista entre seres racionais perdeu a validade. Agora, as multidões se sentem em guerras santas, em cruzadas sanguinárias, se sentem no Coliseu de Roma apontando o polegar para baixo. O script do tempo são os linchamentos virtuais. O fundamentalismo corre solto. Intolerância na veia. Nos Estados Unidos, os numerosos radicais do Partido Republicano trabalham com o dogma tácito de que as eleições de 2020 foram roubadas, e ai de quem discordar. Para muita gente, o aquecimento global é um mito fabricado. Eis o colégio eleitoral do nosso tempo.

Como explicar esses efeitos de estrondos e de fúria? As hipóteses são múltiplas, não necessariamente excludentes, mas uma delas fala mais alto: o universo da política foi inteiramente tragado pela linguagem do entretenimento – e, no entretenimento, a reafirmação do ego (ou do eu) vale mais do que a verdade dos fatos. Ponto. Parágrafo.

É verdade que, desde que o mundo é imundo, a política traz na sua fórmula ingredientes teatrais, elementos lúdicos e temperos passionais. Sempre foi assim. A partir da prevalência das plataformas sociais, contudo, a coisa mudou de patamar. Todas as escolhas que antes se resolviam na esfera da pólis hoje se decidem num imenso reality show interativo, onde o desejo íntimo sobrepuja com folga (e com gozo) o interesse público. A razão e a objetividade escasseiam, enquanto as emoções eclodem, em apoteoses surdas.

O que vemos diante de nós não combina mais com os conceitos que valiam até algumas décadas atrás. É outra coisa, outro bicho. Já deram a esse ambiente, em que as questões políticas se comportam como atrações circenses, o nome de “era da pós-verdade”. Foi com essa expressão, aliás, que a revista The Economist se referiu à campanha presidencial de Donald Trump, numa reportagem de capa em setembro de 2016. Por certo, podemos nos referir à nova geleia geral como a “era da pós-verdade”, mas o fenômeno é maior do que imaginávamos em 2016. É mais monstruoso e mais profundo.

Vejamos o que se passa com a comunicação dos partidos, das autoridades estatais, das ONGs ou dos organismos internacionais. Essa comunicação já não interpela a razão, mas a emoção – e faz isso em formatos melodramáticos. Ou a mensagem segue o alfabeto visual estabelecido pela indústria do entretenimento, quer dizer, ou a propaganda assimila as narrativas baseadas no modelo bonzinhos-contra-malvados, ou não encontrará eco nas mentes e nos corações.

A que se reduziu o impasse da guerra do Oriente Médio? A uma disputa interminável sobre quem é que merece ser posto no papel de vítima. Os escombros da Faixa de Gaza – escombros urbanos, escombros humanos – são apenas o epicentro cenográfico de uma imensa guerra de imagem para ver quem consegue tomar para si o papel de vítima. Quem fizer jus a esse lugar merecerá o amor incondicional da plateia (antes conhecida como opinião pública). Acostume-se. A realidade se comporta como um filme de aventura, com princesinhas desprotegidas, cavalos suados e rapazes incultos, mas valentes.

Assim como o ideólogo do início do século 20 cedeu seu posto ao marqueteiro do início do século 21, o instituto da razão perdeu terreno para as identificações pulsionais, libidinais, fáceis e acachapantes propiciadas pelas técnicas industriais do entretenimento. A política hoje integra o vasto comércio das diversões públicas. O cidadão, que era a fonte de todo o poder, acomodou-se na condição de consumidor voraz de sensações estupefacientes. Não é mais como cidadão que ele se mobiliza, mas como torcedor fanático, como religioso fiel ou, ainda, como fã ardoroso. Se você ainda tem dúvidas, releia as mensagens que chegam nos grupos de WhatsApp. Lá estão os sintomas: os abaixo-assinados sentimentais, as figurinhas animadas que defendem uma tese em um único segundo, as subcelebridades desocupadas pontificando sobre assuntos complexos como se discorressem sobre o uso da cebola numa receita vegana. Está na cara, não está?

Não, isso aí não vai dar certo. Quando as decisões que afetam a ordem do comum repelem o entendimento do que seja o bem comum, é porque vai dar ruim. O conceito de República se desfaz na poeira do tempo.

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