Jornalista e professor da ECA-USP, Eugênio Bucci escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|O fator humanista das emissoras públicas


A democracia depende da existência de uma população educada, culta e questionadora, assim como a pregação totalitária depende de massas ignorantes, raivosas e obedientes

Por Eugênio Bucci

Desde o final de semana, protestos eclodiram em dúzias de cidades da Alemanha. Nas ruas de Berlim, Munique, Hamburgo, Dresden, Colônia e outros centros urbanos, centenas de milhares de manifestantes marcharam juntos. O objetivo foi um só: repudiar os planos da extrema direita de expulsar do país milhões de imigrantes, mesmo aqueles que já tenham cidadania.

A conspiração de xenofobia era mantida em segredo, mas foi revelada por uma reportagem investigativa do Correctiv, um site jornalístico independente, apartidário e sem fins lucrativos. Logo após veiculação da notícia, as passeatas vieram. Foram a primeira reação, em tempo devido e em bom volume, e foram bem recebidas pela opinião pública internacional.

Mas, como sabemos, passeatas não bastarão para barrar a intolerância e o ódio que grassam na Europa. No ano passado, extremistas de direita ganharam posições mais altas na Suécia e na Holanda. Agora, de modo perturbador, surge esse fato novo na Alemanha. O que mais vem por aí? Será que estamos à beira de um revival da distopia da morte, na terra que é o berço e o túmulo do nazismo?

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Não, passeatas não bastam e todas as preocupações procedem. Conforme noticiou o Estadão, o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), que tem integrantes diretamente envolvidos nos planos de xenofobia, coopta mais adeptos a cada dia. Fundado em 2013 com um discurso de oposição à União Europeia, o AfD logo se firmou como referência de ideários reacionários, encantando os saudosistas enrustidos de Hitler. Já nas eleições federais de 2021, obteve 10,3% dos votos. Pouco depois, em 2023, despontou nas pesquisas com 23% das preferências do eleitorado. O quadro faz soar o alarme, sobretudo quando se leva em conta que as bandeiras contra os estrangeiros e contra a União Europeia são apenas a ponta do iceberg. O mal maior corre por baixo, e está correndo solto.

E agora? O campo democrático, alicerçado na cultura dos direitos humanos, será capaz de resistir? Com todas as cautelas de praxe, temos motivos para acreditar que sim. No caso alemão, diferentemente do que se viu na Argentina e do que começa a se desenhar nos Estados Unidos, a confiança nas forças democráticas se justifica. As razões são pelo menos três.

Em primeiro lugar, o Estado alemão soube institucionalizar de modo eficiente – e juridicamente eficaz – a proteção das liberdades e da dignidade humana, proibindo a propaganda abertamente nazista. Essa vedação nada tem de limitadora, como pode parecer aos desavisados. Trata-se, antes, do contrário: o veto ao culto do nazismo – que se comprovou historicamente (e traumaticamente) a antítese da liberdade – não diminui, mas amplia a diversidade e a pluralidade no debate público.

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Em segundo lugar, o regramento para combater a desinformação pelas mídias digitais deu bons resultados na Alemanha. A legislação limita e inibe a difusão das mentiras deslavadas que, em outros países, têm sido a principal arma do neofascismo e do neonazismo. Pelo menos na Alemanha, as fraudes informativas prosperam menos.

Há, por fim, a terceira razão, que quase não tem sido comentada. A democracia alemã conta com um dos melhores sistemas de comunicação pública do mundo. No Brasil, nós conhecemos mais a Deutsche Welle, mas essa é apenas a face internacional de um modelo inteligente e original, que se firmou como um fator de sustentação da qualidade das discussões e das decisões coletivas de interesse público naquele país. Os telespectadores e os ouvintes alemães, na verdade, não seguem a Deutsche Welle, que é feita para o mercado externo – o que eles acompanham internamente são duas outras grandes redes de emissoras públicas: a ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen), que cuida da programação e dos telejornais nacionais, e a ARD (Arbeitsgemeinschaft der öffentlich-rechtlichen Rundfunkanstalten der Bundesrepublik Deutschland), dedicada aos conteúdos regionais.

As duas organizações compõem um complexo cujo orçamento é da ordem dos dez bilhões de euros por ano. Ambas são bem-sucedidas. Os noticiários da ZDF e da ARD figuram entre os mais vistos e os mais respeitados do país, com uma credibilidade indiscutível. A exemplo de outras instituições de comunicação pública no mundo, como a BBC, do Reino Unido, a ZDF e a ARD não são governistas. Nenhuma das duas é comandada ou teleguiada por autoridades do Estado. Em vez disso, ambas observam os cânones da independência editorial, o que faz delas veículos confiáveis e valorizados aos olhos, aos ouvidos e ao juízo livre de cidadãs e cidadãos.

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Conclusão: a sociedade alemã tem mais antídotos contra o fanatismo, pois tem mais acesso à informação desinteressada (que não quer instrumentalizar a vontade de ninguém) e, consequentemente, tem mais acesso ao conhecimento crítico. A democracia depende da existência de uma população educada, culta e questionadora, assim como a pregação totalitária depende de massas ignorantes, raivosas e obedientes. Onde existem emissoras públicas de qualidade, o populismo autoritário e o totalitarismo são menos prováveis.

*

JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Desde o final de semana, protestos eclodiram em dúzias de cidades da Alemanha. Nas ruas de Berlim, Munique, Hamburgo, Dresden, Colônia e outros centros urbanos, centenas de milhares de manifestantes marcharam juntos. O objetivo foi um só: repudiar os planos da extrema direita de expulsar do país milhões de imigrantes, mesmo aqueles que já tenham cidadania.

A conspiração de xenofobia era mantida em segredo, mas foi revelada por uma reportagem investigativa do Correctiv, um site jornalístico independente, apartidário e sem fins lucrativos. Logo após veiculação da notícia, as passeatas vieram. Foram a primeira reação, em tempo devido e em bom volume, e foram bem recebidas pela opinião pública internacional.

Mas, como sabemos, passeatas não bastarão para barrar a intolerância e o ódio que grassam na Europa. No ano passado, extremistas de direita ganharam posições mais altas na Suécia e na Holanda. Agora, de modo perturbador, surge esse fato novo na Alemanha. O que mais vem por aí? Será que estamos à beira de um revival da distopia da morte, na terra que é o berço e o túmulo do nazismo?

Não, passeatas não bastam e todas as preocupações procedem. Conforme noticiou o Estadão, o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), que tem integrantes diretamente envolvidos nos planos de xenofobia, coopta mais adeptos a cada dia. Fundado em 2013 com um discurso de oposição à União Europeia, o AfD logo se firmou como referência de ideários reacionários, encantando os saudosistas enrustidos de Hitler. Já nas eleições federais de 2021, obteve 10,3% dos votos. Pouco depois, em 2023, despontou nas pesquisas com 23% das preferências do eleitorado. O quadro faz soar o alarme, sobretudo quando se leva em conta que as bandeiras contra os estrangeiros e contra a União Europeia são apenas a ponta do iceberg. O mal maior corre por baixo, e está correndo solto.

E agora? O campo democrático, alicerçado na cultura dos direitos humanos, será capaz de resistir? Com todas as cautelas de praxe, temos motivos para acreditar que sim. No caso alemão, diferentemente do que se viu na Argentina e do que começa a se desenhar nos Estados Unidos, a confiança nas forças democráticas se justifica. As razões são pelo menos três.

Em primeiro lugar, o Estado alemão soube institucionalizar de modo eficiente – e juridicamente eficaz – a proteção das liberdades e da dignidade humana, proibindo a propaganda abertamente nazista. Essa vedação nada tem de limitadora, como pode parecer aos desavisados. Trata-se, antes, do contrário: o veto ao culto do nazismo – que se comprovou historicamente (e traumaticamente) a antítese da liberdade – não diminui, mas amplia a diversidade e a pluralidade no debate público.

Em segundo lugar, o regramento para combater a desinformação pelas mídias digitais deu bons resultados na Alemanha. A legislação limita e inibe a difusão das mentiras deslavadas que, em outros países, têm sido a principal arma do neofascismo e do neonazismo. Pelo menos na Alemanha, as fraudes informativas prosperam menos.

Há, por fim, a terceira razão, que quase não tem sido comentada. A democracia alemã conta com um dos melhores sistemas de comunicação pública do mundo. No Brasil, nós conhecemos mais a Deutsche Welle, mas essa é apenas a face internacional de um modelo inteligente e original, que se firmou como um fator de sustentação da qualidade das discussões e das decisões coletivas de interesse público naquele país. Os telespectadores e os ouvintes alemães, na verdade, não seguem a Deutsche Welle, que é feita para o mercado externo – o que eles acompanham internamente são duas outras grandes redes de emissoras públicas: a ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen), que cuida da programação e dos telejornais nacionais, e a ARD (Arbeitsgemeinschaft der öffentlich-rechtlichen Rundfunkanstalten der Bundesrepublik Deutschland), dedicada aos conteúdos regionais.

As duas organizações compõem um complexo cujo orçamento é da ordem dos dez bilhões de euros por ano. Ambas são bem-sucedidas. Os noticiários da ZDF e da ARD figuram entre os mais vistos e os mais respeitados do país, com uma credibilidade indiscutível. A exemplo de outras instituições de comunicação pública no mundo, como a BBC, do Reino Unido, a ZDF e a ARD não são governistas. Nenhuma das duas é comandada ou teleguiada por autoridades do Estado. Em vez disso, ambas observam os cânones da independência editorial, o que faz delas veículos confiáveis e valorizados aos olhos, aos ouvidos e ao juízo livre de cidadãs e cidadãos.

Conclusão: a sociedade alemã tem mais antídotos contra o fanatismo, pois tem mais acesso à informação desinteressada (que não quer instrumentalizar a vontade de ninguém) e, consequentemente, tem mais acesso ao conhecimento crítico. A democracia depende da existência de uma população educada, culta e questionadora, assim como a pregação totalitária depende de massas ignorantes, raivosas e obedientes. Onde existem emissoras públicas de qualidade, o populismo autoritário e o totalitarismo são menos prováveis.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Desde o final de semana, protestos eclodiram em dúzias de cidades da Alemanha. Nas ruas de Berlim, Munique, Hamburgo, Dresden, Colônia e outros centros urbanos, centenas de milhares de manifestantes marcharam juntos. O objetivo foi um só: repudiar os planos da extrema direita de expulsar do país milhões de imigrantes, mesmo aqueles que já tenham cidadania.

A conspiração de xenofobia era mantida em segredo, mas foi revelada por uma reportagem investigativa do Correctiv, um site jornalístico independente, apartidário e sem fins lucrativos. Logo após veiculação da notícia, as passeatas vieram. Foram a primeira reação, em tempo devido e em bom volume, e foram bem recebidas pela opinião pública internacional.

Mas, como sabemos, passeatas não bastarão para barrar a intolerância e o ódio que grassam na Europa. No ano passado, extremistas de direita ganharam posições mais altas na Suécia e na Holanda. Agora, de modo perturbador, surge esse fato novo na Alemanha. O que mais vem por aí? Será que estamos à beira de um revival da distopia da morte, na terra que é o berço e o túmulo do nazismo?

Não, passeatas não bastam e todas as preocupações procedem. Conforme noticiou o Estadão, o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), que tem integrantes diretamente envolvidos nos planos de xenofobia, coopta mais adeptos a cada dia. Fundado em 2013 com um discurso de oposição à União Europeia, o AfD logo se firmou como referência de ideários reacionários, encantando os saudosistas enrustidos de Hitler. Já nas eleições federais de 2021, obteve 10,3% dos votos. Pouco depois, em 2023, despontou nas pesquisas com 23% das preferências do eleitorado. O quadro faz soar o alarme, sobretudo quando se leva em conta que as bandeiras contra os estrangeiros e contra a União Europeia são apenas a ponta do iceberg. O mal maior corre por baixo, e está correndo solto.

E agora? O campo democrático, alicerçado na cultura dos direitos humanos, será capaz de resistir? Com todas as cautelas de praxe, temos motivos para acreditar que sim. No caso alemão, diferentemente do que se viu na Argentina e do que começa a se desenhar nos Estados Unidos, a confiança nas forças democráticas se justifica. As razões são pelo menos três.

Em primeiro lugar, o Estado alemão soube institucionalizar de modo eficiente – e juridicamente eficaz – a proteção das liberdades e da dignidade humana, proibindo a propaganda abertamente nazista. Essa vedação nada tem de limitadora, como pode parecer aos desavisados. Trata-se, antes, do contrário: o veto ao culto do nazismo – que se comprovou historicamente (e traumaticamente) a antítese da liberdade – não diminui, mas amplia a diversidade e a pluralidade no debate público.

Em segundo lugar, o regramento para combater a desinformação pelas mídias digitais deu bons resultados na Alemanha. A legislação limita e inibe a difusão das mentiras deslavadas que, em outros países, têm sido a principal arma do neofascismo e do neonazismo. Pelo menos na Alemanha, as fraudes informativas prosperam menos.

Há, por fim, a terceira razão, que quase não tem sido comentada. A democracia alemã conta com um dos melhores sistemas de comunicação pública do mundo. No Brasil, nós conhecemos mais a Deutsche Welle, mas essa é apenas a face internacional de um modelo inteligente e original, que se firmou como um fator de sustentação da qualidade das discussões e das decisões coletivas de interesse público naquele país. Os telespectadores e os ouvintes alemães, na verdade, não seguem a Deutsche Welle, que é feita para o mercado externo – o que eles acompanham internamente são duas outras grandes redes de emissoras públicas: a ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen), que cuida da programação e dos telejornais nacionais, e a ARD (Arbeitsgemeinschaft der öffentlich-rechtlichen Rundfunkanstalten der Bundesrepublik Deutschland), dedicada aos conteúdos regionais.

As duas organizações compõem um complexo cujo orçamento é da ordem dos dez bilhões de euros por ano. Ambas são bem-sucedidas. Os noticiários da ZDF e da ARD figuram entre os mais vistos e os mais respeitados do país, com uma credibilidade indiscutível. A exemplo de outras instituições de comunicação pública no mundo, como a BBC, do Reino Unido, a ZDF e a ARD não são governistas. Nenhuma das duas é comandada ou teleguiada por autoridades do Estado. Em vez disso, ambas observam os cânones da independência editorial, o que faz delas veículos confiáveis e valorizados aos olhos, aos ouvidos e ao juízo livre de cidadãs e cidadãos.

Conclusão: a sociedade alemã tem mais antídotos contra o fanatismo, pois tem mais acesso à informação desinteressada (que não quer instrumentalizar a vontade de ninguém) e, consequentemente, tem mais acesso ao conhecimento crítico. A democracia depende da existência de uma população educada, culta e questionadora, assim como a pregação totalitária depende de massas ignorantes, raivosas e obedientes. Onde existem emissoras públicas de qualidade, o populismo autoritário e o totalitarismo são menos prováveis.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Desde o final de semana, protestos eclodiram em dúzias de cidades da Alemanha. Nas ruas de Berlim, Munique, Hamburgo, Dresden, Colônia e outros centros urbanos, centenas de milhares de manifestantes marcharam juntos. O objetivo foi um só: repudiar os planos da extrema direita de expulsar do país milhões de imigrantes, mesmo aqueles que já tenham cidadania.

A conspiração de xenofobia era mantida em segredo, mas foi revelada por uma reportagem investigativa do Correctiv, um site jornalístico independente, apartidário e sem fins lucrativos. Logo após veiculação da notícia, as passeatas vieram. Foram a primeira reação, em tempo devido e em bom volume, e foram bem recebidas pela opinião pública internacional.

Mas, como sabemos, passeatas não bastarão para barrar a intolerância e o ódio que grassam na Europa. No ano passado, extremistas de direita ganharam posições mais altas na Suécia e na Holanda. Agora, de modo perturbador, surge esse fato novo na Alemanha. O que mais vem por aí? Será que estamos à beira de um revival da distopia da morte, na terra que é o berço e o túmulo do nazismo?

Não, passeatas não bastam e todas as preocupações procedem. Conforme noticiou o Estadão, o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), que tem integrantes diretamente envolvidos nos planos de xenofobia, coopta mais adeptos a cada dia. Fundado em 2013 com um discurso de oposição à União Europeia, o AfD logo se firmou como referência de ideários reacionários, encantando os saudosistas enrustidos de Hitler. Já nas eleições federais de 2021, obteve 10,3% dos votos. Pouco depois, em 2023, despontou nas pesquisas com 23% das preferências do eleitorado. O quadro faz soar o alarme, sobretudo quando se leva em conta que as bandeiras contra os estrangeiros e contra a União Europeia são apenas a ponta do iceberg. O mal maior corre por baixo, e está correndo solto.

E agora? O campo democrático, alicerçado na cultura dos direitos humanos, será capaz de resistir? Com todas as cautelas de praxe, temos motivos para acreditar que sim. No caso alemão, diferentemente do que se viu na Argentina e do que começa a se desenhar nos Estados Unidos, a confiança nas forças democráticas se justifica. As razões são pelo menos três.

Em primeiro lugar, o Estado alemão soube institucionalizar de modo eficiente – e juridicamente eficaz – a proteção das liberdades e da dignidade humana, proibindo a propaganda abertamente nazista. Essa vedação nada tem de limitadora, como pode parecer aos desavisados. Trata-se, antes, do contrário: o veto ao culto do nazismo – que se comprovou historicamente (e traumaticamente) a antítese da liberdade – não diminui, mas amplia a diversidade e a pluralidade no debate público.

Em segundo lugar, o regramento para combater a desinformação pelas mídias digitais deu bons resultados na Alemanha. A legislação limita e inibe a difusão das mentiras deslavadas que, em outros países, têm sido a principal arma do neofascismo e do neonazismo. Pelo menos na Alemanha, as fraudes informativas prosperam menos.

Há, por fim, a terceira razão, que quase não tem sido comentada. A democracia alemã conta com um dos melhores sistemas de comunicação pública do mundo. No Brasil, nós conhecemos mais a Deutsche Welle, mas essa é apenas a face internacional de um modelo inteligente e original, que se firmou como um fator de sustentação da qualidade das discussões e das decisões coletivas de interesse público naquele país. Os telespectadores e os ouvintes alemães, na verdade, não seguem a Deutsche Welle, que é feita para o mercado externo – o que eles acompanham internamente são duas outras grandes redes de emissoras públicas: a ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen), que cuida da programação e dos telejornais nacionais, e a ARD (Arbeitsgemeinschaft der öffentlich-rechtlichen Rundfunkanstalten der Bundesrepublik Deutschland), dedicada aos conteúdos regionais.

As duas organizações compõem um complexo cujo orçamento é da ordem dos dez bilhões de euros por ano. Ambas são bem-sucedidas. Os noticiários da ZDF e da ARD figuram entre os mais vistos e os mais respeitados do país, com uma credibilidade indiscutível. A exemplo de outras instituições de comunicação pública no mundo, como a BBC, do Reino Unido, a ZDF e a ARD não são governistas. Nenhuma das duas é comandada ou teleguiada por autoridades do Estado. Em vez disso, ambas observam os cânones da independência editorial, o que faz delas veículos confiáveis e valorizados aos olhos, aos ouvidos e ao juízo livre de cidadãs e cidadãos.

Conclusão: a sociedade alemã tem mais antídotos contra o fanatismo, pois tem mais acesso à informação desinteressada (que não quer instrumentalizar a vontade de ninguém) e, consequentemente, tem mais acesso ao conhecimento crítico. A democracia depende da existência de uma população educada, culta e questionadora, assim como a pregação totalitária depende de massas ignorantes, raivosas e obedientes. Onde existem emissoras públicas de qualidade, o populismo autoritário e o totalitarismo são menos prováveis.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Desde o final de semana, protestos eclodiram em dúzias de cidades da Alemanha. Nas ruas de Berlim, Munique, Hamburgo, Dresden, Colônia e outros centros urbanos, centenas de milhares de manifestantes marcharam juntos. O objetivo foi um só: repudiar os planos da extrema direita de expulsar do país milhões de imigrantes, mesmo aqueles que já tenham cidadania.

A conspiração de xenofobia era mantida em segredo, mas foi revelada por uma reportagem investigativa do Correctiv, um site jornalístico independente, apartidário e sem fins lucrativos. Logo após veiculação da notícia, as passeatas vieram. Foram a primeira reação, em tempo devido e em bom volume, e foram bem recebidas pela opinião pública internacional.

Mas, como sabemos, passeatas não bastarão para barrar a intolerância e o ódio que grassam na Europa. No ano passado, extremistas de direita ganharam posições mais altas na Suécia e na Holanda. Agora, de modo perturbador, surge esse fato novo na Alemanha. O que mais vem por aí? Será que estamos à beira de um revival da distopia da morte, na terra que é o berço e o túmulo do nazismo?

Não, passeatas não bastam e todas as preocupações procedem. Conforme noticiou o Estadão, o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), que tem integrantes diretamente envolvidos nos planos de xenofobia, coopta mais adeptos a cada dia. Fundado em 2013 com um discurso de oposição à União Europeia, o AfD logo se firmou como referência de ideários reacionários, encantando os saudosistas enrustidos de Hitler. Já nas eleições federais de 2021, obteve 10,3% dos votos. Pouco depois, em 2023, despontou nas pesquisas com 23% das preferências do eleitorado. O quadro faz soar o alarme, sobretudo quando se leva em conta que as bandeiras contra os estrangeiros e contra a União Europeia são apenas a ponta do iceberg. O mal maior corre por baixo, e está correndo solto.

E agora? O campo democrático, alicerçado na cultura dos direitos humanos, será capaz de resistir? Com todas as cautelas de praxe, temos motivos para acreditar que sim. No caso alemão, diferentemente do que se viu na Argentina e do que começa a se desenhar nos Estados Unidos, a confiança nas forças democráticas se justifica. As razões são pelo menos três.

Em primeiro lugar, o Estado alemão soube institucionalizar de modo eficiente – e juridicamente eficaz – a proteção das liberdades e da dignidade humana, proibindo a propaganda abertamente nazista. Essa vedação nada tem de limitadora, como pode parecer aos desavisados. Trata-se, antes, do contrário: o veto ao culto do nazismo – que se comprovou historicamente (e traumaticamente) a antítese da liberdade – não diminui, mas amplia a diversidade e a pluralidade no debate público.

Em segundo lugar, o regramento para combater a desinformação pelas mídias digitais deu bons resultados na Alemanha. A legislação limita e inibe a difusão das mentiras deslavadas que, em outros países, têm sido a principal arma do neofascismo e do neonazismo. Pelo menos na Alemanha, as fraudes informativas prosperam menos.

Há, por fim, a terceira razão, que quase não tem sido comentada. A democracia alemã conta com um dos melhores sistemas de comunicação pública do mundo. No Brasil, nós conhecemos mais a Deutsche Welle, mas essa é apenas a face internacional de um modelo inteligente e original, que se firmou como um fator de sustentação da qualidade das discussões e das decisões coletivas de interesse público naquele país. Os telespectadores e os ouvintes alemães, na verdade, não seguem a Deutsche Welle, que é feita para o mercado externo – o que eles acompanham internamente são duas outras grandes redes de emissoras públicas: a ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen), que cuida da programação e dos telejornais nacionais, e a ARD (Arbeitsgemeinschaft der öffentlich-rechtlichen Rundfunkanstalten der Bundesrepublik Deutschland), dedicada aos conteúdos regionais.

As duas organizações compõem um complexo cujo orçamento é da ordem dos dez bilhões de euros por ano. Ambas são bem-sucedidas. Os noticiários da ZDF e da ARD figuram entre os mais vistos e os mais respeitados do país, com uma credibilidade indiscutível. A exemplo de outras instituições de comunicação pública no mundo, como a BBC, do Reino Unido, a ZDF e a ARD não são governistas. Nenhuma das duas é comandada ou teleguiada por autoridades do Estado. Em vez disso, ambas observam os cânones da independência editorial, o que faz delas veículos confiáveis e valorizados aos olhos, aos ouvidos e ao juízo livre de cidadãs e cidadãos.

Conclusão: a sociedade alemã tem mais antídotos contra o fanatismo, pois tem mais acesso à informação desinteressada (que não quer instrumentalizar a vontade de ninguém) e, consequentemente, tem mais acesso ao conhecimento crítico. A democracia depende da existência de uma população educada, culta e questionadora, assim como a pregação totalitária depende de massas ignorantes, raivosas e obedientes. Onde existem emissoras públicas de qualidade, o populismo autoritário e o totalitarismo são menos prováveis.

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