Jornalista e professor da ECA-USP, Eugênio Bucci escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|O totalitarismo escópico


No totalitarismo dos nossos dias, o medo dominante é o medo da invisibilidade. É por aí que o poder dos algoritmos aterroriza todo mundo

Por Eugênio Bucci

O mundo digital jogou a humanidade num novo tipo de totalitarismo. Não há outra palavra para definir a relação entre a massa de bilhões de seres humanos e os conglomerados monopolistas globais, como Amazon, Apple, Meta (dona do Facebook e do WhatsApp) e Alphabet (dona do Google e do YouTube), sem falar nas chinesas. As pessoas não sabem nada, absolutamente nada, sobre o funcionamento dos algoritmos que controlam milimetricamente o fluxo das informações e das diversões pelas redes afora. Na outra ponta, os algoritmos sabem tudo sobre o psiquismo de qualquer um que acesse um computador, um celular, um tablet ou um simples reloginho de pulso, destes que monitoram exercícios físicos, batimentos cardíacos, pressão arterial, passos e braçadas. Estamos na sociedade do controle total – controle totalitário.

O mais espantoso é que esse controle só se viabiliza graças à docilidade contente das multidões. Em frêmitos de excitação exibicionista, elas escancaram suas próprias intimidades para as máquinas. Em seguida, não satisfeitas com o furor do exibicionismo, entregam-se ao voyeurismo cavernoso para bisbilhotar a vida alheia. Olhando e sendo olhadas, trabalham feericamente a serviço do imenso extrativismo de dados pessoais, que, depois de capturados, são comercializados a preços estratosféricos.

Você não acredita? Pois deveria acreditar. De onde você acha que vem o valor de mercado dos conglomerados? Resposta: vem da captura (gratuita) e da venda dos dados pessoais das multidões. O mundo digital conseguiu a proeza de instaurar uma ordem de vigilância total, em que todos vigiam todos e ainda por cima se deliciam com isso. E quem sai ganhando no fim das contas? Sim, eles mesmos, os conglomerados – ele mesmo, o capital.

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Chega de ilusões otimistas. Um pacto de convivência em que os algoritmos enxergam tudo e mais um pouco das privacidades individuais, enquanto os indivíduos nada enxergam dos algoritmos, que são o centro do poder digital, só pode ser chamado de pacto totalitário.

Hannah Arendt ensina que a adesão de todos é uma das marcas distintivas do totalitarismo. Ela viu que, no nazismo e no stalinismo, cada cidadão se apressava em agir como um funcionário da polícia política e delatava até mesmo os familiares. Hitler e Stalin contavam com os préstimos voluntários das pessoas comuns para dizimar dissidentes. “A colaboração da população na denúncia de opositores políticos e no serviço voluntário como informantes”, escreve a filósofa em Origens do totalitarismo, “é tão bem organizada que o trabalho de especialistas é quase supérfluo”.

No totalitarismo descrito pela grande pensadora, o medo impele toda gente a obedecer. Hoje sabemos que o medo não age sozinho. Além dele, existe a paixão: as massas nutrem um desejo libidinal pela figura do líder. “Sede de submissão”, nas palavras de Freud. Há um prazer inconfessável na servidão.

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No totalitarismo dos nossos dias, o medo dominante é o medo da invisibilidade. É por aí que o poder dos algoritmos aterroriza todo mundo. Quanto ao desejo, este se manifesta como um arrebatamento imperioso que leva um adolescente a matar e morrer em troca de um instante de holofote sobre o seu nome e sua fotografia. A tara extremada por algum contato, mesmo que remoto, com as estrelas que reluzem nos palcos virtuais leva à sujeição total.

Que o trabalho escravo aflore neste universo de gozo e pânico não surpreende. As pessoas, carinhosa e cinicamente chamadas de “usuárias”, trabalham de graça para as redes. Dedicam horas e mais horas de seus dias plúmbeos para abarrotar as plataformas com seus textos, suas imagens, suas musiquinhas prediletas, seus áudios e suas misérias afetivas. E é precisamente o produto desse trabalho – escravo – que atrai bilhões de outros “usuários”. Os conglomerados não precisam contratar fotógrafos, cantores, atrizes, redatores, jornalistas, nada disso, pois já contam com seus adeptos fanatizados e escravizados. Nunca, em toda a história do capitalismo, a exploração do trabalho – e dos sentimentos – chegou a níveis tão absurdos.

Não surpreende, também, que a propaganda da extrema direita antidemocrática se saia tão bem nesse ambiente. O totalitarismo das redes repele o discurso da democracia com a mesma força que impulsiona mensagens autocráticas. É óbvio. A política democrática precisa de homens e mulheres livres, que tenham autonomia crítica e valorizem os direitos. Esses estão em baixa. A autocracia é o contrário: só se alastra entre grupos violentos, inebriados pelo ódio e impelidos por crenças irracionais, que estão em alta.

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Como o totalitarismo dos nossos dias se tece pela exploração e pelo direcionamento do olhar, deve ser chamado de “totalitarismo escópico”. O olhar é o cimento que cola o desejo de cada um e cada uma à ordem avassaladora. Se queremos uma regulação para enfrentá-la, devemos começar por exigir transparência incondicional dos algoritmos. É inaceitável que uma caixa preta opaca e impenetrável presida a comunicação social na esfera pública. Mais que inaceitável, é totalitário.

*

JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

O mundo digital jogou a humanidade num novo tipo de totalitarismo. Não há outra palavra para definir a relação entre a massa de bilhões de seres humanos e os conglomerados monopolistas globais, como Amazon, Apple, Meta (dona do Facebook e do WhatsApp) e Alphabet (dona do Google e do YouTube), sem falar nas chinesas. As pessoas não sabem nada, absolutamente nada, sobre o funcionamento dos algoritmos que controlam milimetricamente o fluxo das informações e das diversões pelas redes afora. Na outra ponta, os algoritmos sabem tudo sobre o psiquismo de qualquer um que acesse um computador, um celular, um tablet ou um simples reloginho de pulso, destes que monitoram exercícios físicos, batimentos cardíacos, pressão arterial, passos e braçadas. Estamos na sociedade do controle total – controle totalitário.

O mais espantoso é que esse controle só se viabiliza graças à docilidade contente das multidões. Em frêmitos de excitação exibicionista, elas escancaram suas próprias intimidades para as máquinas. Em seguida, não satisfeitas com o furor do exibicionismo, entregam-se ao voyeurismo cavernoso para bisbilhotar a vida alheia. Olhando e sendo olhadas, trabalham feericamente a serviço do imenso extrativismo de dados pessoais, que, depois de capturados, são comercializados a preços estratosféricos.

Você não acredita? Pois deveria acreditar. De onde você acha que vem o valor de mercado dos conglomerados? Resposta: vem da captura (gratuita) e da venda dos dados pessoais das multidões. O mundo digital conseguiu a proeza de instaurar uma ordem de vigilância total, em que todos vigiam todos e ainda por cima se deliciam com isso. E quem sai ganhando no fim das contas? Sim, eles mesmos, os conglomerados – ele mesmo, o capital.

Chega de ilusões otimistas. Um pacto de convivência em que os algoritmos enxergam tudo e mais um pouco das privacidades individuais, enquanto os indivíduos nada enxergam dos algoritmos, que são o centro do poder digital, só pode ser chamado de pacto totalitário.

Hannah Arendt ensina que a adesão de todos é uma das marcas distintivas do totalitarismo. Ela viu que, no nazismo e no stalinismo, cada cidadão se apressava em agir como um funcionário da polícia política e delatava até mesmo os familiares. Hitler e Stalin contavam com os préstimos voluntários das pessoas comuns para dizimar dissidentes. “A colaboração da população na denúncia de opositores políticos e no serviço voluntário como informantes”, escreve a filósofa em Origens do totalitarismo, “é tão bem organizada que o trabalho de especialistas é quase supérfluo”.

No totalitarismo descrito pela grande pensadora, o medo impele toda gente a obedecer. Hoje sabemos que o medo não age sozinho. Além dele, existe a paixão: as massas nutrem um desejo libidinal pela figura do líder. “Sede de submissão”, nas palavras de Freud. Há um prazer inconfessável na servidão.

No totalitarismo dos nossos dias, o medo dominante é o medo da invisibilidade. É por aí que o poder dos algoritmos aterroriza todo mundo. Quanto ao desejo, este se manifesta como um arrebatamento imperioso que leva um adolescente a matar e morrer em troca de um instante de holofote sobre o seu nome e sua fotografia. A tara extremada por algum contato, mesmo que remoto, com as estrelas que reluzem nos palcos virtuais leva à sujeição total.

Que o trabalho escravo aflore neste universo de gozo e pânico não surpreende. As pessoas, carinhosa e cinicamente chamadas de “usuárias”, trabalham de graça para as redes. Dedicam horas e mais horas de seus dias plúmbeos para abarrotar as plataformas com seus textos, suas imagens, suas musiquinhas prediletas, seus áudios e suas misérias afetivas. E é precisamente o produto desse trabalho – escravo – que atrai bilhões de outros “usuários”. Os conglomerados não precisam contratar fotógrafos, cantores, atrizes, redatores, jornalistas, nada disso, pois já contam com seus adeptos fanatizados e escravizados. Nunca, em toda a história do capitalismo, a exploração do trabalho – e dos sentimentos – chegou a níveis tão absurdos.

Não surpreende, também, que a propaganda da extrema direita antidemocrática se saia tão bem nesse ambiente. O totalitarismo das redes repele o discurso da democracia com a mesma força que impulsiona mensagens autocráticas. É óbvio. A política democrática precisa de homens e mulheres livres, que tenham autonomia crítica e valorizem os direitos. Esses estão em baixa. A autocracia é o contrário: só se alastra entre grupos violentos, inebriados pelo ódio e impelidos por crenças irracionais, que estão em alta.

Como o totalitarismo dos nossos dias se tece pela exploração e pelo direcionamento do olhar, deve ser chamado de “totalitarismo escópico”. O olhar é o cimento que cola o desejo de cada um e cada uma à ordem avassaladora. Se queremos uma regulação para enfrentá-la, devemos começar por exigir transparência incondicional dos algoritmos. É inaceitável que uma caixa preta opaca e impenetrável presida a comunicação social na esfera pública. Mais que inaceitável, é totalitário.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

O mundo digital jogou a humanidade num novo tipo de totalitarismo. Não há outra palavra para definir a relação entre a massa de bilhões de seres humanos e os conglomerados monopolistas globais, como Amazon, Apple, Meta (dona do Facebook e do WhatsApp) e Alphabet (dona do Google e do YouTube), sem falar nas chinesas. As pessoas não sabem nada, absolutamente nada, sobre o funcionamento dos algoritmos que controlam milimetricamente o fluxo das informações e das diversões pelas redes afora. Na outra ponta, os algoritmos sabem tudo sobre o psiquismo de qualquer um que acesse um computador, um celular, um tablet ou um simples reloginho de pulso, destes que monitoram exercícios físicos, batimentos cardíacos, pressão arterial, passos e braçadas. Estamos na sociedade do controle total – controle totalitário.

O mais espantoso é que esse controle só se viabiliza graças à docilidade contente das multidões. Em frêmitos de excitação exibicionista, elas escancaram suas próprias intimidades para as máquinas. Em seguida, não satisfeitas com o furor do exibicionismo, entregam-se ao voyeurismo cavernoso para bisbilhotar a vida alheia. Olhando e sendo olhadas, trabalham feericamente a serviço do imenso extrativismo de dados pessoais, que, depois de capturados, são comercializados a preços estratosféricos.

Você não acredita? Pois deveria acreditar. De onde você acha que vem o valor de mercado dos conglomerados? Resposta: vem da captura (gratuita) e da venda dos dados pessoais das multidões. O mundo digital conseguiu a proeza de instaurar uma ordem de vigilância total, em que todos vigiam todos e ainda por cima se deliciam com isso. E quem sai ganhando no fim das contas? Sim, eles mesmos, os conglomerados – ele mesmo, o capital.

Chega de ilusões otimistas. Um pacto de convivência em que os algoritmos enxergam tudo e mais um pouco das privacidades individuais, enquanto os indivíduos nada enxergam dos algoritmos, que são o centro do poder digital, só pode ser chamado de pacto totalitário.

Hannah Arendt ensina que a adesão de todos é uma das marcas distintivas do totalitarismo. Ela viu que, no nazismo e no stalinismo, cada cidadão se apressava em agir como um funcionário da polícia política e delatava até mesmo os familiares. Hitler e Stalin contavam com os préstimos voluntários das pessoas comuns para dizimar dissidentes. “A colaboração da população na denúncia de opositores políticos e no serviço voluntário como informantes”, escreve a filósofa em Origens do totalitarismo, “é tão bem organizada que o trabalho de especialistas é quase supérfluo”.

No totalitarismo descrito pela grande pensadora, o medo impele toda gente a obedecer. Hoje sabemos que o medo não age sozinho. Além dele, existe a paixão: as massas nutrem um desejo libidinal pela figura do líder. “Sede de submissão”, nas palavras de Freud. Há um prazer inconfessável na servidão.

No totalitarismo dos nossos dias, o medo dominante é o medo da invisibilidade. É por aí que o poder dos algoritmos aterroriza todo mundo. Quanto ao desejo, este se manifesta como um arrebatamento imperioso que leva um adolescente a matar e morrer em troca de um instante de holofote sobre o seu nome e sua fotografia. A tara extremada por algum contato, mesmo que remoto, com as estrelas que reluzem nos palcos virtuais leva à sujeição total.

Que o trabalho escravo aflore neste universo de gozo e pânico não surpreende. As pessoas, carinhosa e cinicamente chamadas de “usuárias”, trabalham de graça para as redes. Dedicam horas e mais horas de seus dias plúmbeos para abarrotar as plataformas com seus textos, suas imagens, suas musiquinhas prediletas, seus áudios e suas misérias afetivas. E é precisamente o produto desse trabalho – escravo – que atrai bilhões de outros “usuários”. Os conglomerados não precisam contratar fotógrafos, cantores, atrizes, redatores, jornalistas, nada disso, pois já contam com seus adeptos fanatizados e escravizados. Nunca, em toda a história do capitalismo, a exploração do trabalho – e dos sentimentos – chegou a níveis tão absurdos.

Não surpreende, também, que a propaganda da extrema direita antidemocrática se saia tão bem nesse ambiente. O totalitarismo das redes repele o discurso da democracia com a mesma força que impulsiona mensagens autocráticas. É óbvio. A política democrática precisa de homens e mulheres livres, que tenham autonomia crítica e valorizem os direitos. Esses estão em baixa. A autocracia é o contrário: só se alastra entre grupos violentos, inebriados pelo ódio e impelidos por crenças irracionais, que estão em alta.

Como o totalitarismo dos nossos dias se tece pela exploração e pelo direcionamento do olhar, deve ser chamado de “totalitarismo escópico”. O olhar é o cimento que cola o desejo de cada um e cada uma à ordem avassaladora. Se queremos uma regulação para enfrentá-la, devemos começar por exigir transparência incondicional dos algoritmos. É inaceitável que uma caixa preta opaca e impenetrável presida a comunicação social na esfera pública. Mais que inaceitável, é totalitário.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

O mundo digital jogou a humanidade num novo tipo de totalitarismo. Não há outra palavra para definir a relação entre a massa de bilhões de seres humanos e os conglomerados monopolistas globais, como Amazon, Apple, Meta (dona do Facebook e do WhatsApp) e Alphabet (dona do Google e do YouTube), sem falar nas chinesas. As pessoas não sabem nada, absolutamente nada, sobre o funcionamento dos algoritmos que controlam milimetricamente o fluxo das informações e das diversões pelas redes afora. Na outra ponta, os algoritmos sabem tudo sobre o psiquismo de qualquer um que acesse um computador, um celular, um tablet ou um simples reloginho de pulso, destes que monitoram exercícios físicos, batimentos cardíacos, pressão arterial, passos e braçadas. Estamos na sociedade do controle total – controle totalitário.

O mais espantoso é que esse controle só se viabiliza graças à docilidade contente das multidões. Em frêmitos de excitação exibicionista, elas escancaram suas próprias intimidades para as máquinas. Em seguida, não satisfeitas com o furor do exibicionismo, entregam-se ao voyeurismo cavernoso para bisbilhotar a vida alheia. Olhando e sendo olhadas, trabalham feericamente a serviço do imenso extrativismo de dados pessoais, que, depois de capturados, são comercializados a preços estratosféricos.

Você não acredita? Pois deveria acreditar. De onde você acha que vem o valor de mercado dos conglomerados? Resposta: vem da captura (gratuita) e da venda dos dados pessoais das multidões. O mundo digital conseguiu a proeza de instaurar uma ordem de vigilância total, em que todos vigiam todos e ainda por cima se deliciam com isso. E quem sai ganhando no fim das contas? Sim, eles mesmos, os conglomerados – ele mesmo, o capital.

Chega de ilusões otimistas. Um pacto de convivência em que os algoritmos enxergam tudo e mais um pouco das privacidades individuais, enquanto os indivíduos nada enxergam dos algoritmos, que são o centro do poder digital, só pode ser chamado de pacto totalitário.

Hannah Arendt ensina que a adesão de todos é uma das marcas distintivas do totalitarismo. Ela viu que, no nazismo e no stalinismo, cada cidadão se apressava em agir como um funcionário da polícia política e delatava até mesmo os familiares. Hitler e Stalin contavam com os préstimos voluntários das pessoas comuns para dizimar dissidentes. “A colaboração da população na denúncia de opositores políticos e no serviço voluntário como informantes”, escreve a filósofa em Origens do totalitarismo, “é tão bem organizada que o trabalho de especialistas é quase supérfluo”.

No totalitarismo descrito pela grande pensadora, o medo impele toda gente a obedecer. Hoje sabemos que o medo não age sozinho. Além dele, existe a paixão: as massas nutrem um desejo libidinal pela figura do líder. “Sede de submissão”, nas palavras de Freud. Há um prazer inconfessável na servidão.

No totalitarismo dos nossos dias, o medo dominante é o medo da invisibilidade. É por aí que o poder dos algoritmos aterroriza todo mundo. Quanto ao desejo, este se manifesta como um arrebatamento imperioso que leva um adolescente a matar e morrer em troca de um instante de holofote sobre o seu nome e sua fotografia. A tara extremada por algum contato, mesmo que remoto, com as estrelas que reluzem nos palcos virtuais leva à sujeição total.

Que o trabalho escravo aflore neste universo de gozo e pânico não surpreende. As pessoas, carinhosa e cinicamente chamadas de “usuárias”, trabalham de graça para as redes. Dedicam horas e mais horas de seus dias plúmbeos para abarrotar as plataformas com seus textos, suas imagens, suas musiquinhas prediletas, seus áudios e suas misérias afetivas. E é precisamente o produto desse trabalho – escravo – que atrai bilhões de outros “usuários”. Os conglomerados não precisam contratar fotógrafos, cantores, atrizes, redatores, jornalistas, nada disso, pois já contam com seus adeptos fanatizados e escravizados. Nunca, em toda a história do capitalismo, a exploração do trabalho – e dos sentimentos – chegou a níveis tão absurdos.

Não surpreende, também, que a propaganda da extrema direita antidemocrática se saia tão bem nesse ambiente. O totalitarismo das redes repele o discurso da democracia com a mesma força que impulsiona mensagens autocráticas. É óbvio. A política democrática precisa de homens e mulheres livres, que tenham autonomia crítica e valorizem os direitos. Esses estão em baixa. A autocracia é o contrário: só se alastra entre grupos violentos, inebriados pelo ódio e impelidos por crenças irracionais, que estão em alta.

Como o totalitarismo dos nossos dias se tece pela exploração e pelo direcionamento do olhar, deve ser chamado de “totalitarismo escópico”. O olhar é o cimento que cola o desejo de cada um e cada uma à ordem avassaladora. Se queremos uma regulação para enfrentá-la, devemos começar por exigir transparência incondicional dos algoritmos. É inaceitável que uma caixa preta opaca e impenetrável presida a comunicação social na esfera pública. Mais que inaceitável, é totalitário.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

O mundo digital jogou a humanidade num novo tipo de totalitarismo. Não há outra palavra para definir a relação entre a massa de bilhões de seres humanos e os conglomerados monopolistas globais, como Amazon, Apple, Meta (dona do Facebook e do WhatsApp) e Alphabet (dona do Google e do YouTube), sem falar nas chinesas. As pessoas não sabem nada, absolutamente nada, sobre o funcionamento dos algoritmos que controlam milimetricamente o fluxo das informações e das diversões pelas redes afora. Na outra ponta, os algoritmos sabem tudo sobre o psiquismo de qualquer um que acesse um computador, um celular, um tablet ou um simples reloginho de pulso, destes que monitoram exercícios físicos, batimentos cardíacos, pressão arterial, passos e braçadas. Estamos na sociedade do controle total – controle totalitário.

O mais espantoso é que esse controle só se viabiliza graças à docilidade contente das multidões. Em frêmitos de excitação exibicionista, elas escancaram suas próprias intimidades para as máquinas. Em seguida, não satisfeitas com o furor do exibicionismo, entregam-se ao voyeurismo cavernoso para bisbilhotar a vida alheia. Olhando e sendo olhadas, trabalham feericamente a serviço do imenso extrativismo de dados pessoais, que, depois de capturados, são comercializados a preços estratosféricos.

Você não acredita? Pois deveria acreditar. De onde você acha que vem o valor de mercado dos conglomerados? Resposta: vem da captura (gratuita) e da venda dos dados pessoais das multidões. O mundo digital conseguiu a proeza de instaurar uma ordem de vigilância total, em que todos vigiam todos e ainda por cima se deliciam com isso. E quem sai ganhando no fim das contas? Sim, eles mesmos, os conglomerados – ele mesmo, o capital.

Chega de ilusões otimistas. Um pacto de convivência em que os algoritmos enxergam tudo e mais um pouco das privacidades individuais, enquanto os indivíduos nada enxergam dos algoritmos, que são o centro do poder digital, só pode ser chamado de pacto totalitário.

Hannah Arendt ensina que a adesão de todos é uma das marcas distintivas do totalitarismo. Ela viu que, no nazismo e no stalinismo, cada cidadão se apressava em agir como um funcionário da polícia política e delatava até mesmo os familiares. Hitler e Stalin contavam com os préstimos voluntários das pessoas comuns para dizimar dissidentes. “A colaboração da população na denúncia de opositores políticos e no serviço voluntário como informantes”, escreve a filósofa em Origens do totalitarismo, “é tão bem organizada que o trabalho de especialistas é quase supérfluo”.

No totalitarismo descrito pela grande pensadora, o medo impele toda gente a obedecer. Hoje sabemos que o medo não age sozinho. Além dele, existe a paixão: as massas nutrem um desejo libidinal pela figura do líder. “Sede de submissão”, nas palavras de Freud. Há um prazer inconfessável na servidão.

No totalitarismo dos nossos dias, o medo dominante é o medo da invisibilidade. É por aí que o poder dos algoritmos aterroriza todo mundo. Quanto ao desejo, este se manifesta como um arrebatamento imperioso que leva um adolescente a matar e morrer em troca de um instante de holofote sobre o seu nome e sua fotografia. A tara extremada por algum contato, mesmo que remoto, com as estrelas que reluzem nos palcos virtuais leva à sujeição total.

Que o trabalho escravo aflore neste universo de gozo e pânico não surpreende. As pessoas, carinhosa e cinicamente chamadas de “usuárias”, trabalham de graça para as redes. Dedicam horas e mais horas de seus dias plúmbeos para abarrotar as plataformas com seus textos, suas imagens, suas musiquinhas prediletas, seus áudios e suas misérias afetivas. E é precisamente o produto desse trabalho – escravo – que atrai bilhões de outros “usuários”. Os conglomerados não precisam contratar fotógrafos, cantores, atrizes, redatores, jornalistas, nada disso, pois já contam com seus adeptos fanatizados e escravizados. Nunca, em toda a história do capitalismo, a exploração do trabalho – e dos sentimentos – chegou a níveis tão absurdos.

Não surpreende, também, que a propaganda da extrema direita antidemocrática se saia tão bem nesse ambiente. O totalitarismo das redes repele o discurso da democracia com a mesma força que impulsiona mensagens autocráticas. É óbvio. A política democrática precisa de homens e mulheres livres, que tenham autonomia crítica e valorizem os direitos. Esses estão em baixa. A autocracia é o contrário: só se alastra entre grupos violentos, inebriados pelo ódio e impelidos por crenças irracionais, que estão em alta.

Como o totalitarismo dos nossos dias se tece pela exploração e pelo direcionamento do olhar, deve ser chamado de “totalitarismo escópico”. O olhar é o cimento que cola o desejo de cada um e cada uma à ordem avassaladora. Se queremos uma regulação para enfrentá-la, devemos começar por exigir transparência incondicional dos algoritmos. É inaceitável que uma caixa preta opaca e impenetrável presida a comunicação social na esfera pública. Mais que inaceitável, é totalitário.

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