Jornalista e professor da ECA-USP, Eugênio Bucci escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Os dez mandamentos do desmando


Verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder

Por Eugênio Bucci

1 – Profanarás o Estado laico.

A maior notícia da temporada não tem que ver com sepultamentos noturnos extenuantes ou com reuniões angustiantes entre empresários e o presidente da República. A maior notícia é que entrou em cartaz na TV Brasil – emissora da Empresa Brasil de Comunicações, a EBC, vinculada ao governo federal – a novela Os Dez Mandamentos, produzida e já exaustivamente exibida pela TV Record. Segundo foi noticiado, a EBC pagou R$ 3,2 milhões pelos direitos de sua nova atração. Com isso vem abaixo qualquer aparência de laicidade que pudesse ainda resistir na comunicação pública da União. É verdade que a TV Cultura, de São Paulo, exibe desde sempre a missa dominical de Aparecida, mas Os Dez Mandamentos chegam à TV Brasil para explodir com todos os limites. Se a TV Cultura tem uma face de coroinha, a EBC é agora um canal escancaradamente missionário, com préstimos do dízimo do erário.

2 – Transformarás a política em fanatismo.

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A mistificadora novela na TV governamental pode ser vista como um curso de formação (e de deformação) política. Nela se encena a regressão do neopentecostalismo a uma forma religiosa pré-cristã, decalcada no monoteísmo judaico. O objetivo não é espiritual. Não se trata de expandir os horizontes da fé. Trata-se apenas de catequizar as massas para convertê-las às maravilhas da autocracia.

Moisés, na trama da Record, é um líder acima de todos porque está em linha direta com Deus, alegadamente acima de tudo. Em vez de dialogar, ordena. Sua liderança exige obediência, em lugar de raciocínio. Ele não tem aliados, mas fiéis. A novela reduz a fanatismo o que há de política no Velho Testamento.

3 – Xingarás a ciência de bruxaria.

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Na cosmogonia fraudulenta da novela em reprise na EBC, só a renúncia à razão pode salvar os aflitos. Somente os milagres produzem soluções – e os milagres não são acessíveis à compreensão humana. Quem busca de entender os mistérios da natureza por meio da experiência e da crítica atenta contra o sagrado. Melhor morrer cumprindo as ordens do profeta do que buscar a cura pela inteligência. A ciência é um tipo de feitiçaria e seus praticantes são apóstatas, assim como a democracia é uma tentação demoníaca.

4 – Invocarás o nome de Deus em vão, sim, Senhor.

O mandatário maior fica autorizado a, mesmo sem crer, imitar Moisés, agindo como se tivesse parte com aquilo que está acima de tudo e de todos. Assim aglomerará crédulos ao seu redor, enquanto outros se amontoarão em seu nome. Primeiro, vivos. Depois, mortos.

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5 – Não te compadecerás dos que padecem no abandono.

Dizendo de outro modo: verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder. O anjo da morte na porta do teu próximo avivará tua vaidade.

6 – Não honrarás a verdade dos fatos.

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O site da TV Brasil promete sensações indescritíveis, gozosas, fáceis e falsas: “A novela Os Dez Mandamentos é repleta de conflitos familiares, intrigas, luta pelo poder, traições, inveja, ódio, paixões proibidas e amores impossíveis, em tramas recheadas de muita emoção”. Eis a que se reduz o nome de Moisés na programação da emissora estatal. A propaganda, em tempos de asfixia generalizada, é de perder o fôlego. Enquanto isso, fora do site da TV Brasil, proliferam as garantias de que tudo não passará de uma “gripezinha”, sob aplausos excitados. O discurso do Planalto leva os desinformados a crer que a moléstia que os consome não passa de um embuste armado por jornalistas, cientistas, comunistas, professores, intelectuais e artistas, todos em conluio. Fechar o comércio é fazer o jogo dos covardes, diz alguém. Os autoproclamados corajosos exultam.

7 – Matarás.

Ele se olha no espelho e se vê mito. Crê ter sido predestinado a livrar o Brasil da praga do comunismo. Está acima do certo e do errado. O que é a morte de alguém, ainda que famoso, diante de tão grandiosa missão? No stalinismo, tudo era permitido em nome da classe. No nazismo, tudo era imperativo em nome da raça, incluído o genocídio: os que morreram nos campos de extermínio eram a doença, eram um vírus maligno. Ele repete: morrer faz parte. Está convicto: se todos vamos morrer um dia, que partam antes os fracos e os maricas.

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8 – Conspurcarás todas as profecias.

Trazida para a TV Brasil, altar de todos os falsos testemunhos, a novela Os Dez Mandamentos tem o propósito indigno de urdir a mensagem de que as autoridades cumprem desígnios divinos. O que pode haver de mais antimoderno?

9 – Amaldiçoarás pensamentos e desejos.

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Nada que não seja a obediência tem status de virtude na EBC. O pensamento foi declarado uma ameaça. O desejo, perdição – a não ser o do chefe.

10 – Não amarás a ninguém, mas adorarás a ti mesmo.

Na novela, um Moisés fake. Fora dela, um imitador barato. Cidadãos fanatizados acreditam na liberdade de levar o contágio uns aos outros. Julgam-se livres para matar e morrer. Adoram quem os condenou a parar de respirar. Não amam ninguém. Não sabem o que é amor.

JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

1 – Profanarás o Estado laico.

A maior notícia da temporada não tem que ver com sepultamentos noturnos extenuantes ou com reuniões angustiantes entre empresários e o presidente da República. A maior notícia é que entrou em cartaz na TV Brasil – emissora da Empresa Brasil de Comunicações, a EBC, vinculada ao governo federal – a novela Os Dez Mandamentos, produzida e já exaustivamente exibida pela TV Record. Segundo foi noticiado, a EBC pagou R$ 3,2 milhões pelos direitos de sua nova atração. Com isso vem abaixo qualquer aparência de laicidade que pudesse ainda resistir na comunicação pública da União. É verdade que a TV Cultura, de São Paulo, exibe desde sempre a missa dominical de Aparecida, mas Os Dez Mandamentos chegam à TV Brasil para explodir com todos os limites. Se a TV Cultura tem uma face de coroinha, a EBC é agora um canal escancaradamente missionário, com préstimos do dízimo do erário.

2 – Transformarás a política em fanatismo.

A mistificadora novela na TV governamental pode ser vista como um curso de formação (e de deformação) política. Nela se encena a regressão do neopentecostalismo a uma forma religiosa pré-cristã, decalcada no monoteísmo judaico. O objetivo não é espiritual. Não se trata de expandir os horizontes da fé. Trata-se apenas de catequizar as massas para convertê-las às maravilhas da autocracia.

Moisés, na trama da Record, é um líder acima de todos porque está em linha direta com Deus, alegadamente acima de tudo. Em vez de dialogar, ordena. Sua liderança exige obediência, em lugar de raciocínio. Ele não tem aliados, mas fiéis. A novela reduz a fanatismo o que há de política no Velho Testamento.

3 – Xingarás a ciência de bruxaria.

Na cosmogonia fraudulenta da novela em reprise na EBC, só a renúncia à razão pode salvar os aflitos. Somente os milagres produzem soluções – e os milagres não são acessíveis à compreensão humana. Quem busca de entender os mistérios da natureza por meio da experiência e da crítica atenta contra o sagrado. Melhor morrer cumprindo as ordens do profeta do que buscar a cura pela inteligência. A ciência é um tipo de feitiçaria e seus praticantes são apóstatas, assim como a democracia é uma tentação demoníaca.

4 – Invocarás o nome de Deus em vão, sim, Senhor.

O mandatário maior fica autorizado a, mesmo sem crer, imitar Moisés, agindo como se tivesse parte com aquilo que está acima de tudo e de todos. Assim aglomerará crédulos ao seu redor, enquanto outros se amontoarão em seu nome. Primeiro, vivos. Depois, mortos.

5 – Não te compadecerás dos que padecem no abandono.

Dizendo de outro modo: verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder. O anjo da morte na porta do teu próximo avivará tua vaidade.

6 – Não honrarás a verdade dos fatos.

O site da TV Brasil promete sensações indescritíveis, gozosas, fáceis e falsas: “A novela Os Dez Mandamentos é repleta de conflitos familiares, intrigas, luta pelo poder, traições, inveja, ódio, paixões proibidas e amores impossíveis, em tramas recheadas de muita emoção”. Eis a que se reduz o nome de Moisés na programação da emissora estatal. A propaganda, em tempos de asfixia generalizada, é de perder o fôlego. Enquanto isso, fora do site da TV Brasil, proliferam as garantias de que tudo não passará de uma “gripezinha”, sob aplausos excitados. O discurso do Planalto leva os desinformados a crer que a moléstia que os consome não passa de um embuste armado por jornalistas, cientistas, comunistas, professores, intelectuais e artistas, todos em conluio. Fechar o comércio é fazer o jogo dos covardes, diz alguém. Os autoproclamados corajosos exultam.

7 – Matarás.

Ele se olha no espelho e se vê mito. Crê ter sido predestinado a livrar o Brasil da praga do comunismo. Está acima do certo e do errado. O que é a morte de alguém, ainda que famoso, diante de tão grandiosa missão? No stalinismo, tudo era permitido em nome da classe. No nazismo, tudo era imperativo em nome da raça, incluído o genocídio: os que morreram nos campos de extermínio eram a doença, eram um vírus maligno. Ele repete: morrer faz parte. Está convicto: se todos vamos morrer um dia, que partam antes os fracos e os maricas.

8 – Conspurcarás todas as profecias.

Trazida para a TV Brasil, altar de todos os falsos testemunhos, a novela Os Dez Mandamentos tem o propósito indigno de urdir a mensagem de que as autoridades cumprem desígnios divinos. O que pode haver de mais antimoderno?

9 – Amaldiçoarás pensamentos e desejos.

Nada que não seja a obediência tem status de virtude na EBC. O pensamento foi declarado uma ameaça. O desejo, perdição – a não ser o do chefe.

10 – Não amarás a ninguém, mas adorarás a ti mesmo.

Na novela, um Moisés fake. Fora dela, um imitador barato. Cidadãos fanatizados acreditam na liberdade de levar o contágio uns aos outros. Julgam-se livres para matar e morrer. Adoram quem os condenou a parar de respirar. Não amam ninguém. Não sabem o que é amor.

JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

1 – Profanarás o Estado laico.

A maior notícia da temporada não tem que ver com sepultamentos noturnos extenuantes ou com reuniões angustiantes entre empresários e o presidente da República. A maior notícia é que entrou em cartaz na TV Brasil – emissora da Empresa Brasil de Comunicações, a EBC, vinculada ao governo federal – a novela Os Dez Mandamentos, produzida e já exaustivamente exibida pela TV Record. Segundo foi noticiado, a EBC pagou R$ 3,2 milhões pelos direitos de sua nova atração. Com isso vem abaixo qualquer aparência de laicidade que pudesse ainda resistir na comunicação pública da União. É verdade que a TV Cultura, de São Paulo, exibe desde sempre a missa dominical de Aparecida, mas Os Dez Mandamentos chegam à TV Brasil para explodir com todos os limites. Se a TV Cultura tem uma face de coroinha, a EBC é agora um canal escancaradamente missionário, com préstimos do dízimo do erário.

2 – Transformarás a política em fanatismo.

A mistificadora novela na TV governamental pode ser vista como um curso de formação (e de deformação) política. Nela se encena a regressão do neopentecostalismo a uma forma religiosa pré-cristã, decalcada no monoteísmo judaico. O objetivo não é espiritual. Não se trata de expandir os horizontes da fé. Trata-se apenas de catequizar as massas para convertê-las às maravilhas da autocracia.

Moisés, na trama da Record, é um líder acima de todos porque está em linha direta com Deus, alegadamente acima de tudo. Em vez de dialogar, ordena. Sua liderança exige obediência, em lugar de raciocínio. Ele não tem aliados, mas fiéis. A novela reduz a fanatismo o que há de política no Velho Testamento.

3 – Xingarás a ciência de bruxaria.

Na cosmogonia fraudulenta da novela em reprise na EBC, só a renúncia à razão pode salvar os aflitos. Somente os milagres produzem soluções – e os milagres não são acessíveis à compreensão humana. Quem busca de entender os mistérios da natureza por meio da experiência e da crítica atenta contra o sagrado. Melhor morrer cumprindo as ordens do profeta do que buscar a cura pela inteligência. A ciência é um tipo de feitiçaria e seus praticantes são apóstatas, assim como a democracia é uma tentação demoníaca.

4 – Invocarás o nome de Deus em vão, sim, Senhor.

O mandatário maior fica autorizado a, mesmo sem crer, imitar Moisés, agindo como se tivesse parte com aquilo que está acima de tudo e de todos. Assim aglomerará crédulos ao seu redor, enquanto outros se amontoarão em seu nome. Primeiro, vivos. Depois, mortos.

5 – Não te compadecerás dos que padecem no abandono.

Dizendo de outro modo: verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder. O anjo da morte na porta do teu próximo avivará tua vaidade.

6 – Não honrarás a verdade dos fatos.

O site da TV Brasil promete sensações indescritíveis, gozosas, fáceis e falsas: “A novela Os Dez Mandamentos é repleta de conflitos familiares, intrigas, luta pelo poder, traições, inveja, ódio, paixões proibidas e amores impossíveis, em tramas recheadas de muita emoção”. Eis a que se reduz o nome de Moisés na programação da emissora estatal. A propaganda, em tempos de asfixia generalizada, é de perder o fôlego. Enquanto isso, fora do site da TV Brasil, proliferam as garantias de que tudo não passará de uma “gripezinha”, sob aplausos excitados. O discurso do Planalto leva os desinformados a crer que a moléstia que os consome não passa de um embuste armado por jornalistas, cientistas, comunistas, professores, intelectuais e artistas, todos em conluio. Fechar o comércio é fazer o jogo dos covardes, diz alguém. Os autoproclamados corajosos exultam.

7 – Matarás.

Ele se olha no espelho e se vê mito. Crê ter sido predestinado a livrar o Brasil da praga do comunismo. Está acima do certo e do errado. O que é a morte de alguém, ainda que famoso, diante de tão grandiosa missão? No stalinismo, tudo era permitido em nome da classe. No nazismo, tudo era imperativo em nome da raça, incluído o genocídio: os que morreram nos campos de extermínio eram a doença, eram um vírus maligno. Ele repete: morrer faz parte. Está convicto: se todos vamos morrer um dia, que partam antes os fracos e os maricas.

8 – Conspurcarás todas as profecias.

Trazida para a TV Brasil, altar de todos os falsos testemunhos, a novela Os Dez Mandamentos tem o propósito indigno de urdir a mensagem de que as autoridades cumprem desígnios divinos. O que pode haver de mais antimoderno?

9 – Amaldiçoarás pensamentos e desejos.

Nada que não seja a obediência tem status de virtude na EBC. O pensamento foi declarado uma ameaça. O desejo, perdição – a não ser o do chefe.

10 – Não amarás a ninguém, mas adorarás a ti mesmo.

Na novela, um Moisés fake. Fora dela, um imitador barato. Cidadãos fanatizados acreditam na liberdade de levar o contágio uns aos outros. Julgam-se livres para matar e morrer. Adoram quem os condenou a parar de respirar. Não amam ninguém. Não sabem o que é amor.

JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

1 – Profanarás o Estado laico.

A maior notícia da temporada não tem que ver com sepultamentos noturnos extenuantes ou com reuniões angustiantes entre empresários e o presidente da República. A maior notícia é que entrou em cartaz na TV Brasil – emissora da Empresa Brasil de Comunicações, a EBC, vinculada ao governo federal – a novela Os Dez Mandamentos, produzida e já exaustivamente exibida pela TV Record. Segundo foi noticiado, a EBC pagou R$ 3,2 milhões pelos direitos de sua nova atração. Com isso vem abaixo qualquer aparência de laicidade que pudesse ainda resistir na comunicação pública da União. É verdade que a TV Cultura, de São Paulo, exibe desde sempre a missa dominical de Aparecida, mas Os Dez Mandamentos chegam à TV Brasil para explodir com todos os limites. Se a TV Cultura tem uma face de coroinha, a EBC é agora um canal escancaradamente missionário, com préstimos do dízimo do erário.

2 – Transformarás a política em fanatismo.

A mistificadora novela na TV governamental pode ser vista como um curso de formação (e de deformação) política. Nela se encena a regressão do neopentecostalismo a uma forma religiosa pré-cristã, decalcada no monoteísmo judaico. O objetivo não é espiritual. Não se trata de expandir os horizontes da fé. Trata-se apenas de catequizar as massas para convertê-las às maravilhas da autocracia.

Moisés, na trama da Record, é um líder acima de todos porque está em linha direta com Deus, alegadamente acima de tudo. Em vez de dialogar, ordena. Sua liderança exige obediência, em lugar de raciocínio. Ele não tem aliados, mas fiéis. A novela reduz a fanatismo o que há de política no Velho Testamento.

3 – Xingarás a ciência de bruxaria.

Na cosmogonia fraudulenta da novela em reprise na EBC, só a renúncia à razão pode salvar os aflitos. Somente os milagres produzem soluções – e os milagres não são acessíveis à compreensão humana. Quem busca de entender os mistérios da natureza por meio da experiência e da crítica atenta contra o sagrado. Melhor morrer cumprindo as ordens do profeta do que buscar a cura pela inteligência. A ciência é um tipo de feitiçaria e seus praticantes são apóstatas, assim como a democracia é uma tentação demoníaca.

4 – Invocarás o nome de Deus em vão, sim, Senhor.

O mandatário maior fica autorizado a, mesmo sem crer, imitar Moisés, agindo como se tivesse parte com aquilo que está acima de tudo e de todos. Assim aglomerará crédulos ao seu redor, enquanto outros se amontoarão em seu nome. Primeiro, vivos. Depois, mortos.

5 – Não te compadecerás dos que padecem no abandono.

Dizendo de outro modo: verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder. O anjo da morte na porta do teu próximo avivará tua vaidade.

6 – Não honrarás a verdade dos fatos.

O site da TV Brasil promete sensações indescritíveis, gozosas, fáceis e falsas: “A novela Os Dez Mandamentos é repleta de conflitos familiares, intrigas, luta pelo poder, traições, inveja, ódio, paixões proibidas e amores impossíveis, em tramas recheadas de muita emoção”. Eis a que se reduz o nome de Moisés na programação da emissora estatal. A propaganda, em tempos de asfixia generalizada, é de perder o fôlego. Enquanto isso, fora do site da TV Brasil, proliferam as garantias de que tudo não passará de uma “gripezinha”, sob aplausos excitados. O discurso do Planalto leva os desinformados a crer que a moléstia que os consome não passa de um embuste armado por jornalistas, cientistas, comunistas, professores, intelectuais e artistas, todos em conluio. Fechar o comércio é fazer o jogo dos covardes, diz alguém. Os autoproclamados corajosos exultam.

7 – Matarás.

Ele se olha no espelho e se vê mito. Crê ter sido predestinado a livrar o Brasil da praga do comunismo. Está acima do certo e do errado. O que é a morte de alguém, ainda que famoso, diante de tão grandiosa missão? No stalinismo, tudo era permitido em nome da classe. No nazismo, tudo era imperativo em nome da raça, incluído o genocídio: os que morreram nos campos de extermínio eram a doença, eram um vírus maligno. Ele repete: morrer faz parte. Está convicto: se todos vamos morrer um dia, que partam antes os fracos e os maricas.

8 – Conspurcarás todas as profecias.

Trazida para a TV Brasil, altar de todos os falsos testemunhos, a novela Os Dez Mandamentos tem o propósito indigno de urdir a mensagem de que as autoridades cumprem desígnios divinos. O que pode haver de mais antimoderno?

9 – Amaldiçoarás pensamentos e desejos.

Nada que não seja a obediência tem status de virtude na EBC. O pensamento foi declarado uma ameaça. O desejo, perdição – a não ser o do chefe.

10 – Não amarás a ninguém, mas adorarás a ti mesmo.

Na novela, um Moisés fake. Fora dela, um imitador barato. Cidadãos fanatizados acreditam na liberdade de levar o contágio uns aos outros. Julgam-se livres para matar e morrer. Adoram quem os condenou a parar de respirar. Não amam ninguém. Não sabem o que é amor.

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