Jornalista e professor da ECA-USP, Eugênio Bucci escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Pantanal é pop, Pantanal é agro, mas não é tudo


Uma novela é só uma novela e não dará conta de responder que mudanças históricas estarão por trás das transformações do signo daquele lugar.

Por Eugênio Bucci

Eugênio pronuncia palavras sonoras e precisas para retratar o pai de Zé – e Zé se abespinha. Aos seus ouvidos, aquela história na voz de Eugênio faz alusões que ferem a figura de seu pai idolatrado. Seu coração crispa. Para Zé, o pai é um ente intocável, que existe num plano acima dos mortais. Sim, seu pai deixou a vida, mas não chegou a entrar na morte. Filho dedicado, concebe o pai (isso mesmo, o filho concebe o pai) como um totem que se move além da vista, capaz de agir – invisível, mas real – sobre o destino de seus descendentes. Tomado por tão grande devoção, Zé não compreende as palavras de Eugênio e as repele, agressivo e casmurro. Depois, terá tempo de perceber que, em nome de seu zelo filial e vaidoso, rechaçou nada menos que a verdade – mas, no primeiro momento, seu impulso é rechaçar o que não lhe soa bem.

Estamos em Pantanal, a nova novela de horário nobre da Rede Globo de Televisão. A cena descrita no parágrafo acima foi ao ar na terça-feira. Eugênio, o violeiro interpretado por Almir Sater, canta uma bela moda que fala sobre um velho peão que sumiu sem deixar rastros. Zé Leôncio (Renato Góes), filho do peão de nome Juventino, que desapareceu feito sombra por este mundão de marruás, fica ofendido ao ouvir a cantiga. Detesta a sensação de ver o pai numa narrativa que fuja ao seu controle de herdeiro. Emburrado, fica de pé num repente e se retira da roda de viola.

Mais tarde, algumas cenas depois, Zé vai se arrepender da própria rispidez. Comovido, vai retornar ao cantador, a quem pedirá bis. Nessa hora os dois contracenam sozinhos, a bordo de uma chalana atracada. Os acordes preenchem a vastidão alagada, a câmera sai voando (ah, os drones) e o melodrama cumpre seu ciclo. O intervalo comercial se aproxima. Tudo parece bem, tudo está calmo e os sons se afinam.

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Algo ali, porém, continua arranhando os olhos e os ouvidos da gente. Na nova trama ficcional da Globo, há signos que não se reconciliam de jeito nenhum. Não é apenas a figura paterna que vira objeto de disputa entre o canto do violeiro e a veneração mistificadora do filho; outros signos, muitos outros, não encontram termos de convivência harmônica. Assim, com seus cenários ambientados num paraíso turístico de tuiuiús, sucuris, onças, jacarés e galãs que fingem tocar berrante, Pantanal nos apresenta, voluntariamente ou não, uma trama de guerra entre signos. Nas frestas dessa signagem atritada, entrevemos as feridas em carne viva de um Brasil cindido, que não mais se reconhece em sua própria história.

Pantanal é um remake. Sua primeira versão foi ao ar há 32 anos, pela extinta TV Manchete, num sucesso instantâneo e consistente. Escrita por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Jayme Monjardim, a trama arrebatou a audiência com sua alma hippie. Sua mensagem era meio ecológica, meio bicho-grilo, meio poncho-e-conga, meio chá de cogumelo. Em 1990, a região do Pantanal era um lugar idílico, atravessado pelo velho trem que se arrastava rumo a Santa Cruz de la Sierra.

Agora, em 2022, os estereótipos se inverteram. O Pantanal é um charco poluído e mastigado pelo agronegócio. O arquétipo do peão, que já evocou sintonia com a natureza (o peão estava para o mato mais ou menos como o surfista está para o mar), representa hoje a pecuária mais sanguinolenta e maquinizada. O peão de 2022 vai a bordo de caminhonetes que derrapam no pasto vomitando óleo diesel; sua turma são as falanges apinhadas em botas texanas, que odeiam os ambientalistas e votam em Jair Bolsonaro. Em 1990, os protagonistas de Pantanal eram tacitamente de esquerda, muito embora latifundiários. Agora, os mesmos protagonistas correm o risco bastante considerável de despontar como ícones de direita, muito embora apolíticos.

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Quando Zé Leôncio se irrita com Eugênio e lhe volta as costas, a nova acepção do termo “Pantanal” entra em conflito com a anterior. Almir Sater é um ator sobrevivente; esteve no elenco pioneiro da TV Manchete e ressurge agora como um híbrido de instrumentista requintado e guia espiritual de segunda, com falas de autoajuda. Renato Góes, que vive o Zé Leôncio, é seu contrário: por mais que se esforce, não sabe ouvir o que não seja o seu próprio eco.

O Pantanal mudou de sentido, exatamente como aconteceu com Santos e Acapulco. A imagem de figuras públicas também vira de ponta-cabeça, o que se viu com Volodmir Zelenski. Eleito presidente da Ucrânia em 2019, o ex-comediante era esnobado como se não passasse de um palhaço, e agora recebe aplausos mundo afora como um estadista sábio e corajoso. Também os vocábulos mais prosaicos – principalmente eles – sofrem drásticas alterações semânticas. O sociólogo e linguista francês Antoine Meillet (1866-1936) pesquisou essas metamorfoses e demonstrou que “fatos históricos e sociais agem e reagem para transformar o sentido das palavras”.

Que mudanças históricas estarão por trás das transformações do signo do Pantanal? Que mudanças virão? Uma novela é só uma novela, não dará conta de responder, mas os discursos já estão em convulsão aberta neste país.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Eugênio pronuncia palavras sonoras e precisas para retratar o pai de Zé – e Zé se abespinha. Aos seus ouvidos, aquela história na voz de Eugênio faz alusões que ferem a figura de seu pai idolatrado. Seu coração crispa. Para Zé, o pai é um ente intocável, que existe num plano acima dos mortais. Sim, seu pai deixou a vida, mas não chegou a entrar na morte. Filho dedicado, concebe o pai (isso mesmo, o filho concebe o pai) como um totem que se move além da vista, capaz de agir – invisível, mas real – sobre o destino de seus descendentes. Tomado por tão grande devoção, Zé não compreende as palavras de Eugênio e as repele, agressivo e casmurro. Depois, terá tempo de perceber que, em nome de seu zelo filial e vaidoso, rechaçou nada menos que a verdade – mas, no primeiro momento, seu impulso é rechaçar o que não lhe soa bem.

Estamos em Pantanal, a nova novela de horário nobre da Rede Globo de Televisão. A cena descrita no parágrafo acima foi ao ar na terça-feira. Eugênio, o violeiro interpretado por Almir Sater, canta uma bela moda que fala sobre um velho peão que sumiu sem deixar rastros. Zé Leôncio (Renato Góes), filho do peão de nome Juventino, que desapareceu feito sombra por este mundão de marruás, fica ofendido ao ouvir a cantiga. Detesta a sensação de ver o pai numa narrativa que fuja ao seu controle de herdeiro. Emburrado, fica de pé num repente e se retira da roda de viola.

Mais tarde, algumas cenas depois, Zé vai se arrepender da própria rispidez. Comovido, vai retornar ao cantador, a quem pedirá bis. Nessa hora os dois contracenam sozinhos, a bordo de uma chalana atracada. Os acordes preenchem a vastidão alagada, a câmera sai voando (ah, os drones) e o melodrama cumpre seu ciclo. O intervalo comercial se aproxima. Tudo parece bem, tudo está calmo e os sons se afinam.

Algo ali, porém, continua arranhando os olhos e os ouvidos da gente. Na nova trama ficcional da Globo, há signos que não se reconciliam de jeito nenhum. Não é apenas a figura paterna que vira objeto de disputa entre o canto do violeiro e a veneração mistificadora do filho; outros signos, muitos outros, não encontram termos de convivência harmônica. Assim, com seus cenários ambientados num paraíso turístico de tuiuiús, sucuris, onças, jacarés e galãs que fingem tocar berrante, Pantanal nos apresenta, voluntariamente ou não, uma trama de guerra entre signos. Nas frestas dessa signagem atritada, entrevemos as feridas em carne viva de um Brasil cindido, que não mais se reconhece em sua própria história.

Pantanal é um remake. Sua primeira versão foi ao ar há 32 anos, pela extinta TV Manchete, num sucesso instantâneo e consistente. Escrita por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Jayme Monjardim, a trama arrebatou a audiência com sua alma hippie. Sua mensagem era meio ecológica, meio bicho-grilo, meio poncho-e-conga, meio chá de cogumelo. Em 1990, a região do Pantanal era um lugar idílico, atravessado pelo velho trem que se arrastava rumo a Santa Cruz de la Sierra.

Agora, em 2022, os estereótipos se inverteram. O Pantanal é um charco poluído e mastigado pelo agronegócio. O arquétipo do peão, que já evocou sintonia com a natureza (o peão estava para o mato mais ou menos como o surfista está para o mar), representa hoje a pecuária mais sanguinolenta e maquinizada. O peão de 2022 vai a bordo de caminhonetes que derrapam no pasto vomitando óleo diesel; sua turma são as falanges apinhadas em botas texanas, que odeiam os ambientalistas e votam em Jair Bolsonaro. Em 1990, os protagonistas de Pantanal eram tacitamente de esquerda, muito embora latifundiários. Agora, os mesmos protagonistas correm o risco bastante considerável de despontar como ícones de direita, muito embora apolíticos.

Quando Zé Leôncio se irrita com Eugênio e lhe volta as costas, a nova acepção do termo “Pantanal” entra em conflito com a anterior. Almir Sater é um ator sobrevivente; esteve no elenco pioneiro da TV Manchete e ressurge agora como um híbrido de instrumentista requintado e guia espiritual de segunda, com falas de autoajuda. Renato Góes, que vive o Zé Leôncio, é seu contrário: por mais que se esforce, não sabe ouvir o que não seja o seu próprio eco.

O Pantanal mudou de sentido, exatamente como aconteceu com Santos e Acapulco. A imagem de figuras públicas também vira de ponta-cabeça, o que se viu com Volodmir Zelenski. Eleito presidente da Ucrânia em 2019, o ex-comediante era esnobado como se não passasse de um palhaço, e agora recebe aplausos mundo afora como um estadista sábio e corajoso. Também os vocábulos mais prosaicos – principalmente eles – sofrem drásticas alterações semânticas. O sociólogo e linguista francês Antoine Meillet (1866-1936) pesquisou essas metamorfoses e demonstrou que “fatos históricos e sociais agem e reagem para transformar o sentido das palavras”.

Que mudanças históricas estarão por trás das transformações do signo do Pantanal? Que mudanças virão? Uma novela é só uma novela, não dará conta de responder, mas os discursos já estão em convulsão aberta neste país.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Eugênio pronuncia palavras sonoras e precisas para retratar o pai de Zé – e Zé se abespinha. Aos seus ouvidos, aquela história na voz de Eugênio faz alusões que ferem a figura de seu pai idolatrado. Seu coração crispa. Para Zé, o pai é um ente intocável, que existe num plano acima dos mortais. Sim, seu pai deixou a vida, mas não chegou a entrar na morte. Filho dedicado, concebe o pai (isso mesmo, o filho concebe o pai) como um totem que se move além da vista, capaz de agir – invisível, mas real – sobre o destino de seus descendentes. Tomado por tão grande devoção, Zé não compreende as palavras de Eugênio e as repele, agressivo e casmurro. Depois, terá tempo de perceber que, em nome de seu zelo filial e vaidoso, rechaçou nada menos que a verdade – mas, no primeiro momento, seu impulso é rechaçar o que não lhe soa bem.

Estamos em Pantanal, a nova novela de horário nobre da Rede Globo de Televisão. A cena descrita no parágrafo acima foi ao ar na terça-feira. Eugênio, o violeiro interpretado por Almir Sater, canta uma bela moda que fala sobre um velho peão que sumiu sem deixar rastros. Zé Leôncio (Renato Góes), filho do peão de nome Juventino, que desapareceu feito sombra por este mundão de marruás, fica ofendido ao ouvir a cantiga. Detesta a sensação de ver o pai numa narrativa que fuja ao seu controle de herdeiro. Emburrado, fica de pé num repente e se retira da roda de viola.

Mais tarde, algumas cenas depois, Zé vai se arrepender da própria rispidez. Comovido, vai retornar ao cantador, a quem pedirá bis. Nessa hora os dois contracenam sozinhos, a bordo de uma chalana atracada. Os acordes preenchem a vastidão alagada, a câmera sai voando (ah, os drones) e o melodrama cumpre seu ciclo. O intervalo comercial se aproxima. Tudo parece bem, tudo está calmo e os sons se afinam.

Algo ali, porém, continua arranhando os olhos e os ouvidos da gente. Na nova trama ficcional da Globo, há signos que não se reconciliam de jeito nenhum. Não é apenas a figura paterna que vira objeto de disputa entre o canto do violeiro e a veneração mistificadora do filho; outros signos, muitos outros, não encontram termos de convivência harmônica. Assim, com seus cenários ambientados num paraíso turístico de tuiuiús, sucuris, onças, jacarés e galãs que fingem tocar berrante, Pantanal nos apresenta, voluntariamente ou não, uma trama de guerra entre signos. Nas frestas dessa signagem atritada, entrevemos as feridas em carne viva de um Brasil cindido, que não mais se reconhece em sua própria história.

Pantanal é um remake. Sua primeira versão foi ao ar há 32 anos, pela extinta TV Manchete, num sucesso instantâneo e consistente. Escrita por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Jayme Monjardim, a trama arrebatou a audiência com sua alma hippie. Sua mensagem era meio ecológica, meio bicho-grilo, meio poncho-e-conga, meio chá de cogumelo. Em 1990, a região do Pantanal era um lugar idílico, atravessado pelo velho trem que se arrastava rumo a Santa Cruz de la Sierra.

Agora, em 2022, os estereótipos se inverteram. O Pantanal é um charco poluído e mastigado pelo agronegócio. O arquétipo do peão, que já evocou sintonia com a natureza (o peão estava para o mato mais ou menos como o surfista está para o mar), representa hoje a pecuária mais sanguinolenta e maquinizada. O peão de 2022 vai a bordo de caminhonetes que derrapam no pasto vomitando óleo diesel; sua turma são as falanges apinhadas em botas texanas, que odeiam os ambientalistas e votam em Jair Bolsonaro. Em 1990, os protagonistas de Pantanal eram tacitamente de esquerda, muito embora latifundiários. Agora, os mesmos protagonistas correm o risco bastante considerável de despontar como ícones de direita, muito embora apolíticos.

Quando Zé Leôncio se irrita com Eugênio e lhe volta as costas, a nova acepção do termo “Pantanal” entra em conflito com a anterior. Almir Sater é um ator sobrevivente; esteve no elenco pioneiro da TV Manchete e ressurge agora como um híbrido de instrumentista requintado e guia espiritual de segunda, com falas de autoajuda. Renato Góes, que vive o Zé Leôncio, é seu contrário: por mais que se esforce, não sabe ouvir o que não seja o seu próprio eco.

O Pantanal mudou de sentido, exatamente como aconteceu com Santos e Acapulco. A imagem de figuras públicas também vira de ponta-cabeça, o que se viu com Volodmir Zelenski. Eleito presidente da Ucrânia em 2019, o ex-comediante era esnobado como se não passasse de um palhaço, e agora recebe aplausos mundo afora como um estadista sábio e corajoso. Também os vocábulos mais prosaicos – principalmente eles – sofrem drásticas alterações semânticas. O sociólogo e linguista francês Antoine Meillet (1866-1936) pesquisou essas metamorfoses e demonstrou que “fatos históricos e sociais agem e reagem para transformar o sentido das palavras”.

Que mudanças históricas estarão por trás das transformações do signo do Pantanal? Que mudanças virão? Uma novela é só uma novela, não dará conta de responder, mas os discursos já estão em convulsão aberta neste país.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Eugênio pronuncia palavras sonoras e precisas para retratar o pai de Zé – e Zé se abespinha. Aos seus ouvidos, aquela história na voz de Eugênio faz alusões que ferem a figura de seu pai idolatrado. Seu coração crispa. Para Zé, o pai é um ente intocável, que existe num plano acima dos mortais. Sim, seu pai deixou a vida, mas não chegou a entrar na morte. Filho dedicado, concebe o pai (isso mesmo, o filho concebe o pai) como um totem que se move além da vista, capaz de agir – invisível, mas real – sobre o destino de seus descendentes. Tomado por tão grande devoção, Zé não compreende as palavras de Eugênio e as repele, agressivo e casmurro. Depois, terá tempo de perceber que, em nome de seu zelo filial e vaidoso, rechaçou nada menos que a verdade – mas, no primeiro momento, seu impulso é rechaçar o que não lhe soa bem.

Estamos em Pantanal, a nova novela de horário nobre da Rede Globo de Televisão. A cena descrita no parágrafo acima foi ao ar na terça-feira. Eugênio, o violeiro interpretado por Almir Sater, canta uma bela moda que fala sobre um velho peão que sumiu sem deixar rastros. Zé Leôncio (Renato Góes), filho do peão de nome Juventino, que desapareceu feito sombra por este mundão de marruás, fica ofendido ao ouvir a cantiga. Detesta a sensação de ver o pai numa narrativa que fuja ao seu controle de herdeiro. Emburrado, fica de pé num repente e se retira da roda de viola.

Mais tarde, algumas cenas depois, Zé vai se arrepender da própria rispidez. Comovido, vai retornar ao cantador, a quem pedirá bis. Nessa hora os dois contracenam sozinhos, a bordo de uma chalana atracada. Os acordes preenchem a vastidão alagada, a câmera sai voando (ah, os drones) e o melodrama cumpre seu ciclo. O intervalo comercial se aproxima. Tudo parece bem, tudo está calmo e os sons se afinam.

Algo ali, porém, continua arranhando os olhos e os ouvidos da gente. Na nova trama ficcional da Globo, há signos que não se reconciliam de jeito nenhum. Não é apenas a figura paterna que vira objeto de disputa entre o canto do violeiro e a veneração mistificadora do filho; outros signos, muitos outros, não encontram termos de convivência harmônica. Assim, com seus cenários ambientados num paraíso turístico de tuiuiús, sucuris, onças, jacarés e galãs que fingem tocar berrante, Pantanal nos apresenta, voluntariamente ou não, uma trama de guerra entre signos. Nas frestas dessa signagem atritada, entrevemos as feridas em carne viva de um Brasil cindido, que não mais se reconhece em sua própria história.

Pantanal é um remake. Sua primeira versão foi ao ar há 32 anos, pela extinta TV Manchete, num sucesso instantâneo e consistente. Escrita por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Jayme Monjardim, a trama arrebatou a audiência com sua alma hippie. Sua mensagem era meio ecológica, meio bicho-grilo, meio poncho-e-conga, meio chá de cogumelo. Em 1990, a região do Pantanal era um lugar idílico, atravessado pelo velho trem que se arrastava rumo a Santa Cruz de la Sierra.

Agora, em 2022, os estereótipos se inverteram. O Pantanal é um charco poluído e mastigado pelo agronegócio. O arquétipo do peão, que já evocou sintonia com a natureza (o peão estava para o mato mais ou menos como o surfista está para o mar), representa hoje a pecuária mais sanguinolenta e maquinizada. O peão de 2022 vai a bordo de caminhonetes que derrapam no pasto vomitando óleo diesel; sua turma são as falanges apinhadas em botas texanas, que odeiam os ambientalistas e votam em Jair Bolsonaro. Em 1990, os protagonistas de Pantanal eram tacitamente de esquerda, muito embora latifundiários. Agora, os mesmos protagonistas correm o risco bastante considerável de despontar como ícones de direita, muito embora apolíticos.

Quando Zé Leôncio se irrita com Eugênio e lhe volta as costas, a nova acepção do termo “Pantanal” entra em conflito com a anterior. Almir Sater é um ator sobrevivente; esteve no elenco pioneiro da TV Manchete e ressurge agora como um híbrido de instrumentista requintado e guia espiritual de segunda, com falas de autoajuda. Renato Góes, que vive o Zé Leôncio, é seu contrário: por mais que se esforce, não sabe ouvir o que não seja o seu próprio eco.

O Pantanal mudou de sentido, exatamente como aconteceu com Santos e Acapulco. A imagem de figuras públicas também vira de ponta-cabeça, o que se viu com Volodmir Zelenski. Eleito presidente da Ucrânia em 2019, o ex-comediante era esnobado como se não passasse de um palhaço, e agora recebe aplausos mundo afora como um estadista sábio e corajoso. Também os vocábulos mais prosaicos – principalmente eles – sofrem drásticas alterações semânticas. O sociólogo e linguista francês Antoine Meillet (1866-1936) pesquisou essas metamorfoses e demonstrou que “fatos históricos e sociais agem e reagem para transformar o sentido das palavras”.

Que mudanças históricas estarão por trás das transformações do signo do Pantanal? Que mudanças virão? Uma novela é só uma novela, não dará conta de responder, mas os discursos já estão em convulsão aberta neste país.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Eugênio pronuncia palavras sonoras e precisas para retratar o pai de Zé – e Zé se abespinha. Aos seus ouvidos, aquela história na voz de Eugênio faz alusões que ferem a figura de seu pai idolatrado. Seu coração crispa. Para Zé, o pai é um ente intocável, que existe num plano acima dos mortais. Sim, seu pai deixou a vida, mas não chegou a entrar na morte. Filho dedicado, concebe o pai (isso mesmo, o filho concebe o pai) como um totem que se move além da vista, capaz de agir – invisível, mas real – sobre o destino de seus descendentes. Tomado por tão grande devoção, Zé não compreende as palavras de Eugênio e as repele, agressivo e casmurro. Depois, terá tempo de perceber que, em nome de seu zelo filial e vaidoso, rechaçou nada menos que a verdade – mas, no primeiro momento, seu impulso é rechaçar o que não lhe soa bem.

Estamos em Pantanal, a nova novela de horário nobre da Rede Globo de Televisão. A cena descrita no parágrafo acima foi ao ar na terça-feira. Eugênio, o violeiro interpretado por Almir Sater, canta uma bela moda que fala sobre um velho peão que sumiu sem deixar rastros. Zé Leôncio (Renato Góes), filho do peão de nome Juventino, que desapareceu feito sombra por este mundão de marruás, fica ofendido ao ouvir a cantiga. Detesta a sensação de ver o pai numa narrativa que fuja ao seu controle de herdeiro. Emburrado, fica de pé num repente e se retira da roda de viola.

Mais tarde, algumas cenas depois, Zé vai se arrepender da própria rispidez. Comovido, vai retornar ao cantador, a quem pedirá bis. Nessa hora os dois contracenam sozinhos, a bordo de uma chalana atracada. Os acordes preenchem a vastidão alagada, a câmera sai voando (ah, os drones) e o melodrama cumpre seu ciclo. O intervalo comercial se aproxima. Tudo parece bem, tudo está calmo e os sons se afinam.

Algo ali, porém, continua arranhando os olhos e os ouvidos da gente. Na nova trama ficcional da Globo, há signos que não se reconciliam de jeito nenhum. Não é apenas a figura paterna que vira objeto de disputa entre o canto do violeiro e a veneração mistificadora do filho; outros signos, muitos outros, não encontram termos de convivência harmônica. Assim, com seus cenários ambientados num paraíso turístico de tuiuiús, sucuris, onças, jacarés e galãs que fingem tocar berrante, Pantanal nos apresenta, voluntariamente ou não, uma trama de guerra entre signos. Nas frestas dessa signagem atritada, entrevemos as feridas em carne viva de um Brasil cindido, que não mais se reconhece em sua própria história.

Pantanal é um remake. Sua primeira versão foi ao ar há 32 anos, pela extinta TV Manchete, num sucesso instantâneo e consistente. Escrita por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Jayme Monjardim, a trama arrebatou a audiência com sua alma hippie. Sua mensagem era meio ecológica, meio bicho-grilo, meio poncho-e-conga, meio chá de cogumelo. Em 1990, a região do Pantanal era um lugar idílico, atravessado pelo velho trem que se arrastava rumo a Santa Cruz de la Sierra.

Agora, em 2022, os estereótipos se inverteram. O Pantanal é um charco poluído e mastigado pelo agronegócio. O arquétipo do peão, que já evocou sintonia com a natureza (o peão estava para o mato mais ou menos como o surfista está para o mar), representa hoje a pecuária mais sanguinolenta e maquinizada. O peão de 2022 vai a bordo de caminhonetes que derrapam no pasto vomitando óleo diesel; sua turma são as falanges apinhadas em botas texanas, que odeiam os ambientalistas e votam em Jair Bolsonaro. Em 1990, os protagonistas de Pantanal eram tacitamente de esquerda, muito embora latifundiários. Agora, os mesmos protagonistas correm o risco bastante considerável de despontar como ícones de direita, muito embora apolíticos.

Quando Zé Leôncio se irrita com Eugênio e lhe volta as costas, a nova acepção do termo “Pantanal” entra em conflito com a anterior. Almir Sater é um ator sobrevivente; esteve no elenco pioneiro da TV Manchete e ressurge agora como um híbrido de instrumentista requintado e guia espiritual de segunda, com falas de autoajuda. Renato Góes, que vive o Zé Leôncio, é seu contrário: por mais que se esforce, não sabe ouvir o que não seja o seu próprio eco.

O Pantanal mudou de sentido, exatamente como aconteceu com Santos e Acapulco. A imagem de figuras públicas também vira de ponta-cabeça, o que se viu com Volodmir Zelenski. Eleito presidente da Ucrânia em 2019, o ex-comediante era esnobado como se não passasse de um palhaço, e agora recebe aplausos mundo afora como um estadista sábio e corajoso. Também os vocábulos mais prosaicos – principalmente eles – sofrem drásticas alterações semânticas. O sociólogo e linguista francês Antoine Meillet (1866-1936) pesquisou essas metamorfoses e demonstrou que “fatos históricos e sociais agem e reagem para transformar o sentido das palavras”.

Que mudanças históricas estarão por trás das transformações do signo do Pantanal? Que mudanças virão? Uma novela é só uma novela, não dará conta de responder, mas os discursos já estão em convulsão aberta neste país.

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