Jornalista e professor da ECA-USP, Eugênio Bucci escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Um rastro de tinta seca


Francis Bacon deforma suas figuras, mas ele as deforma para libertá-las, como a dizer que quem as deforma de verdade é o poder

Por Eugênio Bucci

A maior manifestação política que acontece na cidade não marcha pelas ruas, não trava o trânsito, não grita a céu aberto e não transpira sob o sol. O principal protesto público desta metrópole se acomodou candidamente dentro de um museu. Não, não se trata de uma ocupação ou de um acampamento em repartição pública – trata-se de uma simples exposição de quadros: a primeira mostra individual no Brasil do irlandês Francis Bacon (1909-1992).

Estamos no primeiro andar do Masp. Entre quatro paredes, perfilam-se as pinturas, disciplinadas e quietas. Tudo muito pacífico, tudo muito ordeiro. O público visitante não faz arruaça. Em vez disso, trafega pacato e mudo pelos vãos contemplativos. Não há corre-corre. Não há bomba de gás lacrimogêneo. A iluminação suave imprime no ambiente uma calmaria atemporal.

Fora isso, a exposição é pura tormenta. Quando você pisar no primeiro pavimento do Masp, vai sentir que o chão lhe falta. Num sopro repentino, o mundo conhecido desaparece. Os conceitos que se imaginavam pétreos se retorcem na sua frente e explodem purulentos, lançando escamas sulfurosas para além dos domínios da Avenida Paulista. Os signos consagrados, aqueles nos quais ninguém via problema nenhum, começam a se despedaçar como nacos de costela sob cutelo do açougueiro. Tormenta, tormenta sem trégua. Estiletes imateriais vazam de um golpe os olhos de quem passa.

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A ideia de que a única missão da arte é ferir os olhos não vem de hoje. Em 1929, o curta-metragem Um Cão Andaluz, de Luis Buñuel e Salvador Dalí, sintetizou essa pretensão na forma de uma arrepiante metáfora: um bisturi lanceta a córnea e a íris de uma mulher passiva. A cena se converteu num dos símbolos mais incisivos da proposta estética do surrealismo. Quando autêntica, a navalha criadora mergulha pelas pupilas adentro e abre as portas da percepção – muito diferente do facão do entretenimento, que mutila o nervo ótico das plateias à medida que as entorpece.

Francis Bacon, que gostava de Picasso, não cega ninguém. Ao contrário, é hoje o fio agudo que rompe as amarras do olhar. Suas imagens – você não vai acreditar – parecem se mover inquietas dentro das molduras duras. A gente olha, elas estão de um jeito. Olha de novo, e elas trocaram de lugar. Levante cromático. Sensualidade militante e bela, sem dúvida. Mas será só isso?

A curadoria magistral de Adriano Pedrosa e Laura Cosendey joga ênfase na identidade queer do pintor, chamando atenção para os relacionamentos “intensos e turbulentos” que ele manteve com dois amantes, Peter Lacy e George Dyer. Contudo, o fenômeno mais desestabilizador desse conjunto de trabalhos não se resume a namoros subversivos. O ponto perturbador das 23 obras expostas está no modo como elas descarnam as relações de poder. Bacon pinta contra o poder, jamais a favor. Acima do amor reprimido e da luxúria indômita, seu tema é a insurreição necessária. Ele retrata não uma comunidade restrita, mas a humanidade inteira.

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A um metro de distância das pinturas, a gente detecta in loco o gesto que picha os tolos ideais de formosura. Sim, Bacon deforma suas figuras, mas ele as deforma para libertá-las, como a dizer que quem as deforma de verdade é o poder. Elas surgem, então, com as feições borradas e, indefinidas, escapam da vigilância da autoridade. Turvadas, maceradas, esmerilhadas, não se entregam. Suas faces parecem vísceras e suas vísceras parecem alma. Aí você entende: o sujeito do nosso tempo não passa de um rastro espesso de tinta encaroçada, mas tem sede de viver. A opressão o cerca, mas não pode detê-lo.

Em várias das telas, linhas retilíneas riscam formas geométricas exatas – um cômodo abstrato, um cubo vazio, um nicho oco. Essas formas entram em contradição com os corpos em transe passional. Aqueles fios imperturbáveis que se cruzam em ângulos retos parecem representar o projeto inútil de enquadrar a natureza – e não consegue nem mesmo amainar a força misteriosa da carne. A lei luminescente e euclidiana perfura o espaço, mas o real lhe escapa, em furiosa desobediência.

Em 1990, o longa-metragem Jacob’s Ladder (Alucinações do Passado, no título brasileiro), de Adrian Lyne, adotou as criações horripilantes do artista irlandês como paradigma de sua linguagem cinematográfica. Nesse filme, que trata da morte e dos apavoramentos que a acompanham, Lyne prova que Francis Bacon consolidou o mais completo dicionário plástico da barbárie, com uma semiótica desestruturante e, ao mesmo tempo, emancipadora. Não, Bacon não nos legou um testemunho excêntrico de uma sexualidade particular ou atípica – ele nos deu de presente um inventário universal da condição humana em sua luta contra o matadouro. Ele nos mostrou o ser que se bate contra o poder insensível.

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Os pincéis machucam a pele da hipocrisia e retiram a areia de cima do desejo em guerra contra o mando. São os pincéis de um arqueólogo lasso que deixam arranhões inscritos na tela, desvelando as feridas do viver. Quando você cruzar a porta do primeiro andar do Masp, saberá: essas feridas descansam, esquecidas e mitigadas, no fundo de suas retinas domesticadas.

*

JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

A maior manifestação política que acontece na cidade não marcha pelas ruas, não trava o trânsito, não grita a céu aberto e não transpira sob o sol. O principal protesto público desta metrópole se acomodou candidamente dentro de um museu. Não, não se trata de uma ocupação ou de um acampamento em repartição pública – trata-se de uma simples exposição de quadros: a primeira mostra individual no Brasil do irlandês Francis Bacon (1909-1992).

Estamos no primeiro andar do Masp. Entre quatro paredes, perfilam-se as pinturas, disciplinadas e quietas. Tudo muito pacífico, tudo muito ordeiro. O público visitante não faz arruaça. Em vez disso, trafega pacato e mudo pelos vãos contemplativos. Não há corre-corre. Não há bomba de gás lacrimogêneo. A iluminação suave imprime no ambiente uma calmaria atemporal.

Fora isso, a exposição é pura tormenta. Quando você pisar no primeiro pavimento do Masp, vai sentir que o chão lhe falta. Num sopro repentino, o mundo conhecido desaparece. Os conceitos que se imaginavam pétreos se retorcem na sua frente e explodem purulentos, lançando escamas sulfurosas para além dos domínios da Avenida Paulista. Os signos consagrados, aqueles nos quais ninguém via problema nenhum, começam a se despedaçar como nacos de costela sob cutelo do açougueiro. Tormenta, tormenta sem trégua. Estiletes imateriais vazam de um golpe os olhos de quem passa.

A ideia de que a única missão da arte é ferir os olhos não vem de hoje. Em 1929, o curta-metragem Um Cão Andaluz, de Luis Buñuel e Salvador Dalí, sintetizou essa pretensão na forma de uma arrepiante metáfora: um bisturi lanceta a córnea e a íris de uma mulher passiva. A cena se converteu num dos símbolos mais incisivos da proposta estética do surrealismo. Quando autêntica, a navalha criadora mergulha pelas pupilas adentro e abre as portas da percepção – muito diferente do facão do entretenimento, que mutila o nervo ótico das plateias à medida que as entorpece.

Francis Bacon, que gostava de Picasso, não cega ninguém. Ao contrário, é hoje o fio agudo que rompe as amarras do olhar. Suas imagens – você não vai acreditar – parecem se mover inquietas dentro das molduras duras. A gente olha, elas estão de um jeito. Olha de novo, e elas trocaram de lugar. Levante cromático. Sensualidade militante e bela, sem dúvida. Mas será só isso?

A curadoria magistral de Adriano Pedrosa e Laura Cosendey joga ênfase na identidade queer do pintor, chamando atenção para os relacionamentos “intensos e turbulentos” que ele manteve com dois amantes, Peter Lacy e George Dyer. Contudo, o fenômeno mais desestabilizador desse conjunto de trabalhos não se resume a namoros subversivos. O ponto perturbador das 23 obras expostas está no modo como elas descarnam as relações de poder. Bacon pinta contra o poder, jamais a favor. Acima do amor reprimido e da luxúria indômita, seu tema é a insurreição necessária. Ele retrata não uma comunidade restrita, mas a humanidade inteira.

A um metro de distância das pinturas, a gente detecta in loco o gesto que picha os tolos ideais de formosura. Sim, Bacon deforma suas figuras, mas ele as deforma para libertá-las, como a dizer que quem as deforma de verdade é o poder. Elas surgem, então, com as feições borradas e, indefinidas, escapam da vigilância da autoridade. Turvadas, maceradas, esmerilhadas, não se entregam. Suas faces parecem vísceras e suas vísceras parecem alma. Aí você entende: o sujeito do nosso tempo não passa de um rastro espesso de tinta encaroçada, mas tem sede de viver. A opressão o cerca, mas não pode detê-lo.

Em várias das telas, linhas retilíneas riscam formas geométricas exatas – um cômodo abstrato, um cubo vazio, um nicho oco. Essas formas entram em contradição com os corpos em transe passional. Aqueles fios imperturbáveis que se cruzam em ângulos retos parecem representar o projeto inútil de enquadrar a natureza – e não consegue nem mesmo amainar a força misteriosa da carne. A lei luminescente e euclidiana perfura o espaço, mas o real lhe escapa, em furiosa desobediência.

Em 1990, o longa-metragem Jacob’s Ladder (Alucinações do Passado, no título brasileiro), de Adrian Lyne, adotou as criações horripilantes do artista irlandês como paradigma de sua linguagem cinematográfica. Nesse filme, que trata da morte e dos apavoramentos que a acompanham, Lyne prova que Francis Bacon consolidou o mais completo dicionário plástico da barbárie, com uma semiótica desestruturante e, ao mesmo tempo, emancipadora. Não, Bacon não nos legou um testemunho excêntrico de uma sexualidade particular ou atípica – ele nos deu de presente um inventário universal da condição humana em sua luta contra o matadouro. Ele nos mostrou o ser que se bate contra o poder insensível.

Os pincéis machucam a pele da hipocrisia e retiram a areia de cima do desejo em guerra contra o mando. São os pincéis de um arqueólogo lasso que deixam arranhões inscritos na tela, desvelando as feridas do viver. Quando você cruzar a porta do primeiro andar do Masp, saberá: essas feridas descansam, esquecidas e mitigadas, no fundo de suas retinas domesticadas.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

A maior manifestação política que acontece na cidade não marcha pelas ruas, não trava o trânsito, não grita a céu aberto e não transpira sob o sol. O principal protesto público desta metrópole se acomodou candidamente dentro de um museu. Não, não se trata de uma ocupação ou de um acampamento em repartição pública – trata-se de uma simples exposição de quadros: a primeira mostra individual no Brasil do irlandês Francis Bacon (1909-1992).

Estamos no primeiro andar do Masp. Entre quatro paredes, perfilam-se as pinturas, disciplinadas e quietas. Tudo muito pacífico, tudo muito ordeiro. O público visitante não faz arruaça. Em vez disso, trafega pacato e mudo pelos vãos contemplativos. Não há corre-corre. Não há bomba de gás lacrimogêneo. A iluminação suave imprime no ambiente uma calmaria atemporal.

Fora isso, a exposição é pura tormenta. Quando você pisar no primeiro pavimento do Masp, vai sentir que o chão lhe falta. Num sopro repentino, o mundo conhecido desaparece. Os conceitos que se imaginavam pétreos se retorcem na sua frente e explodem purulentos, lançando escamas sulfurosas para além dos domínios da Avenida Paulista. Os signos consagrados, aqueles nos quais ninguém via problema nenhum, começam a se despedaçar como nacos de costela sob cutelo do açougueiro. Tormenta, tormenta sem trégua. Estiletes imateriais vazam de um golpe os olhos de quem passa.

A ideia de que a única missão da arte é ferir os olhos não vem de hoje. Em 1929, o curta-metragem Um Cão Andaluz, de Luis Buñuel e Salvador Dalí, sintetizou essa pretensão na forma de uma arrepiante metáfora: um bisturi lanceta a córnea e a íris de uma mulher passiva. A cena se converteu num dos símbolos mais incisivos da proposta estética do surrealismo. Quando autêntica, a navalha criadora mergulha pelas pupilas adentro e abre as portas da percepção – muito diferente do facão do entretenimento, que mutila o nervo ótico das plateias à medida que as entorpece.

Francis Bacon, que gostava de Picasso, não cega ninguém. Ao contrário, é hoje o fio agudo que rompe as amarras do olhar. Suas imagens – você não vai acreditar – parecem se mover inquietas dentro das molduras duras. A gente olha, elas estão de um jeito. Olha de novo, e elas trocaram de lugar. Levante cromático. Sensualidade militante e bela, sem dúvida. Mas será só isso?

A curadoria magistral de Adriano Pedrosa e Laura Cosendey joga ênfase na identidade queer do pintor, chamando atenção para os relacionamentos “intensos e turbulentos” que ele manteve com dois amantes, Peter Lacy e George Dyer. Contudo, o fenômeno mais desestabilizador desse conjunto de trabalhos não se resume a namoros subversivos. O ponto perturbador das 23 obras expostas está no modo como elas descarnam as relações de poder. Bacon pinta contra o poder, jamais a favor. Acima do amor reprimido e da luxúria indômita, seu tema é a insurreição necessária. Ele retrata não uma comunidade restrita, mas a humanidade inteira.

A um metro de distância das pinturas, a gente detecta in loco o gesto que picha os tolos ideais de formosura. Sim, Bacon deforma suas figuras, mas ele as deforma para libertá-las, como a dizer que quem as deforma de verdade é o poder. Elas surgem, então, com as feições borradas e, indefinidas, escapam da vigilância da autoridade. Turvadas, maceradas, esmerilhadas, não se entregam. Suas faces parecem vísceras e suas vísceras parecem alma. Aí você entende: o sujeito do nosso tempo não passa de um rastro espesso de tinta encaroçada, mas tem sede de viver. A opressão o cerca, mas não pode detê-lo.

Em várias das telas, linhas retilíneas riscam formas geométricas exatas – um cômodo abstrato, um cubo vazio, um nicho oco. Essas formas entram em contradição com os corpos em transe passional. Aqueles fios imperturbáveis que se cruzam em ângulos retos parecem representar o projeto inútil de enquadrar a natureza – e não consegue nem mesmo amainar a força misteriosa da carne. A lei luminescente e euclidiana perfura o espaço, mas o real lhe escapa, em furiosa desobediência.

Em 1990, o longa-metragem Jacob’s Ladder (Alucinações do Passado, no título brasileiro), de Adrian Lyne, adotou as criações horripilantes do artista irlandês como paradigma de sua linguagem cinematográfica. Nesse filme, que trata da morte e dos apavoramentos que a acompanham, Lyne prova que Francis Bacon consolidou o mais completo dicionário plástico da barbárie, com uma semiótica desestruturante e, ao mesmo tempo, emancipadora. Não, Bacon não nos legou um testemunho excêntrico de uma sexualidade particular ou atípica – ele nos deu de presente um inventário universal da condição humana em sua luta contra o matadouro. Ele nos mostrou o ser que se bate contra o poder insensível.

Os pincéis machucam a pele da hipocrisia e retiram a areia de cima do desejo em guerra contra o mando. São os pincéis de um arqueólogo lasso que deixam arranhões inscritos na tela, desvelando as feridas do viver. Quando você cruzar a porta do primeiro andar do Masp, saberá: essas feridas descansam, esquecidas e mitigadas, no fundo de suas retinas domesticadas.

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