Jornalista, escritor (Prêmio Jabuti 2000 e 2005; Prêmio APCA 2004) e professor aposentado da Universidade de Brasília, Flávio Tavares escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|A data que nunca podemos esquecer


Em abril de 1964 começava o longo período marcado pela derrubada da frágil democracia brasileira implantada pela Constituição de 1946

Por Flávio Tavares
Atualização:

Existem datas que, pelos malefícios ou maldades provocados, jamais podem ser esquecidas. Uma delas é o 1.º de abril de 1964, que instituiu uma ditadura que durou 21 anos e completou 60 anos há poucos dias.

Não pretendo substituir-me à ampla e minuciosa rememoração daqueles acontecimentos publicada dias atrás por este jornal, mas relembrar certos períodos e fatos ocorridos ou que eu próprio presenciei. Eu era jornalista em Brasília e recordo com nitidez a sessão do Congresso Nacional em que o senador-presidente, sem qualquer debate, declarou “vaga” a Presidência da República – numa sessão em plena madrugada e que durou no máximo dez minutos. O pretexto invocado fora uma carta ao Congresso em que o então chefe da Casa Civil informava que o presidente da República iria transferir o governo para Porto Alegre, “em vista dos últimos acontecimentos militares”.

Consumava-se, assim, a tentativa de dar aparência legal ao levante militar iniciado em 31 de março em Minas Gerais, pelo general Mourão Filho. Era o começo de um longo período, marcado pela derrubada da frágil democracia na qual vivia o Brasil e implantada pela Constituição de 1946, após a destituição de Getúlio Vargas no ano anterior.

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Daí em diante, ocorreram atos nefastos ao longo de mais de duas décadas. Começaram com prisões a esmo e a cassação de mandatos parlamentares ou a tortura como método de interrogatório dos presos políticos, e logo a censura na imprensa, rádio e televisão. Tudo se fazia por meio dos “Atos Institucionais” impostos pelos comandos do Exército, da Marinha e Aeronáutica. Era o início da ditadura militar, que se ampliou com o Ato Institucional número 2, ao extinguir os partidos políticos e anular a projetada eleição presidencial de 1965.

Os golpistas protestavam contra as “reformas de base”, especialmente contra a reforma agrária e a reforma financeira e fiscal, que eles apresentavam como a “comunização do País” e o início da “extinção da propriedade privada”. O pretexto fora o comício de 13 de março no Rio de Janeiro, em que o presidente João Goulart anunciou a estatização das refinarias privadas e a desapropriação das áreas rurais não cultivadas junto das rodovias federais.

Dias antes, em São Paulo, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade reuniu dezenas de milhares de pessoas (encabeçadas por dona Leonor de Barros, esposa do então governador Adhemar de Barros) para protestar contra o governo federal. Já pré-candidato à Presidência da República, o governador paulista era conhecido pelo lema “rouba, mas faz”.

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A pregação do sacerdote irlandês-americano Patrick Peyton, vindo ao Brasil para preparar a marcha, mostrava a escondida influência estrangeira nos acontecimentos.

Anos depois do golpe, a historiadora Phyllis Parker descobriu, nos arquivos da CIA e do Departamento de Estado, a Operação Brother Sam, que descrevia a participação americana no golpe. Naqueles tempos, em pleno auge da guerra fria, a paranoia anticomunista dominava os Estados Unidos e o mundo Ocidental. Em meu livro 1964 – O Golpe, exponho parte daquela documentação, que agora não cabe detalhar.

Mostro aqui, no entanto, um fato que define a raiz do movimento golpista. A esquadra americana partiu da base naval de Norfolk, com o porta-aviões Forrestal à frente, com destino a Santos, para intervir no Brasil. Indago: o porta-aviões não indicaria até um eventual bombardeio aéreo?

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Dia 2 de abril, a esquadra recebeu ordem de voltar, pois o presidente João Goulart tinha desistido de resistir e o movimento golpista já havia triunfado.

Meses antes do golpe, o embaixador Lincoln Gordon (em reunião com o então presidente John Kennedy) tinha logrado substituir o adido militar dos EUA no Brasil pelo coronel Vernon Walters, que falava perfeitamente nosso idioma pois fora oficial de enlace dos EUA com as tropas do Brasil durante a 2.ª Guerra na Itália. Lá, fez-se íntimo do então coronel Castello Branco, seu colega no lado brasileiro.

Castello Branco foi o primeiro ditador, eleito pelo Congresso como candidato único numa verdadeira simulação em que o voto era cantado publicamente sob ameaça de cassação do mandato. Até o ex-presidente e então senador Juscelino Kubitschek votou em Castello, que, meses depois, cassou seu mandato parlamentar.

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Desde a consolidação do golpe, incorporou-se ao nosso idioma o não usual verbo “cassar”, nunca com o sentido de “caçar” animais ou criminosos, mas de terminar com mandatos parlamentares ou suspender direitos políticos ao longo de dez anos.

O golpe no Brasil serviu de modelo para que em diferentes países da América do Sul ocorressem movimentos militares semelhantes, em que as Forças Armadas assumiram o poder político e aplicaram todo horror possível. Os mais notórios golpes de Estado ocorreram no Chile e na Argentina e, logo, se estenderam a outras nações.

Por tudo isso (além de outros detalhes), os 60 anos do golpe militar não podem ser esquecidos e são uma data a sempre lembrar.

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JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Existem datas que, pelos malefícios ou maldades provocados, jamais podem ser esquecidas. Uma delas é o 1.º de abril de 1964, que instituiu uma ditadura que durou 21 anos e completou 60 anos há poucos dias.

Não pretendo substituir-me à ampla e minuciosa rememoração daqueles acontecimentos publicada dias atrás por este jornal, mas relembrar certos períodos e fatos ocorridos ou que eu próprio presenciei. Eu era jornalista em Brasília e recordo com nitidez a sessão do Congresso Nacional em que o senador-presidente, sem qualquer debate, declarou “vaga” a Presidência da República – numa sessão em plena madrugada e que durou no máximo dez minutos. O pretexto invocado fora uma carta ao Congresso em que o então chefe da Casa Civil informava que o presidente da República iria transferir o governo para Porto Alegre, “em vista dos últimos acontecimentos militares”.

Consumava-se, assim, a tentativa de dar aparência legal ao levante militar iniciado em 31 de março em Minas Gerais, pelo general Mourão Filho. Era o começo de um longo período, marcado pela derrubada da frágil democracia na qual vivia o Brasil e implantada pela Constituição de 1946, após a destituição de Getúlio Vargas no ano anterior.

Daí em diante, ocorreram atos nefastos ao longo de mais de duas décadas. Começaram com prisões a esmo e a cassação de mandatos parlamentares ou a tortura como método de interrogatório dos presos políticos, e logo a censura na imprensa, rádio e televisão. Tudo se fazia por meio dos “Atos Institucionais” impostos pelos comandos do Exército, da Marinha e Aeronáutica. Era o início da ditadura militar, que se ampliou com o Ato Institucional número 2, ao extinguir os partidos políticos e anular a projetada eleição presidencial de 1965.

Os golpistas protestavam contra as “reformas de base”, especialmente contra a reforma agrária e a reforma financeira e fiscal, que eles apresentavam como a “comunização do País” e o início da “extinção da propriedade privada”. O pretexto fora o comício de 13 de março no Rio de Janeiro, em que o presidente João Goulart anunciou a estatização das refinarias privadas e a desapropriação das áreas rurais não cultivadas junto das rodovias federais.

Dias antes, em São Paulo, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade reuniu dezenas de milhares de pessoas (encabeçadas por dona Leonor de Barros, esposa do então governador Adhemar de Barros) para protestar contra o governo federal. Já pré-candidato à Presidência da República, o governador paulista era conhecido pelo lema “rouba, mas faz”.

A pregação do sacerdote irlandês-americano Patrick Peyton, vindo ao Brasil para preparar a marcha, mostrava a escondida influência estrangeira nos acontecimentos.

Anos depois do golpe, a historiadora Phyllis Parker descobriu, nos arquivos da CIA e do Departamento de Estado, a Operação Brother Sam, que descrevia a participação americana no golpe. Naqueles tempos, em pleno auge da guerra fria, a paranoia anticomunista dominava os Estados Unidos e o mundo Ocidental. Em meu livro 1964 – O Golpe, exponho parte daquela documentação, que agora não cabe detalhar.

Mostro aqui, no entanto, um fato que define a raiz do movimento golpista. A esquadra americana partiu da base naval de Norfolk, com o porta-aviões Forrestal à frente, com destino a Santos, para intervir no Brasil. Indago: o porta-aviões não indicaria até um eventual bombardeio aéreo?

Dia 2 de abril, a esquadra recebeu ordem de voltar, pois o presidente João Goulart tinha desistido de resistir e o movimento golpista já havia triunfado.

Meses antes do golpe, o embaixador Lincoln Gordon (em reunião com o então presidente John Kennedy) tinha logrado substituir o adido militar dos EUA no Brasil pelo coronel Vernon Walters, que falava perfeitamente nosso idioma pois fora oficial de enlace dos EUA com as tropas do Brasil durante a 2.ª Guerra na Itália. Lá, fez-se íntimo do então coronel Castello Branco, seu colega no lado brasileiro.

Castello Branco foi o primeiro ditador, eleito pelo Congresso como candidato único numa verdadeira simulação em que o voto era cantado publicamente sob ameaça de cassação do mandato. Até o ex-presidente e então senador Juscelino Kubitschek votou em Castello, que, meses depois, cassou seu mandato parlamentar.

Desde a consolidação do golpe, incorporou-se ao nosso idioma o não usual verbo “cassar”, nunca com o sentido de “caçar” animais ou criminosos, mas de terminar com mandatos parlamentares ou suspender direitos políticos ao longo de dez anos.

O golpe no Brasil serviu de modelo para que em diferentes países da América do Sul ocorressem movimentos militares semelhantes, em que as Forças Armadas assumiram o poder político e aplicaram todo horror possível. Os mais notórios golpes de Estado ocorreram no Chile e na Argentina e, logo, se estenderam a outras nações.

Por tudo isso (além de outros detalhes), os 60 anos do golpe militar não podem ser esquecidos e são uma data a sempre lembrar.

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JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Existem datas que, pelos malefícios ou maldades provocados, jamais podem ser esquecidas. Uma delas é o 1.º de abril de 1964, que instituiu uma ditadura que durou 21 anos e completou 60 anos há poucos dias.

Não pretendo substituir-me à ampla e minuciosa rememoração daqueles acontecimentos publicada dias atrás por este jornal, mas relembrar certos períodos e fatos ocorridos ou que eu próprio presenciei. Eu era jornalista em Brasília e recordo com nitidez a sessão do Congresso Nacional em que o senador-presidente, sem qualquer debate, declarou “vaga” a Presidência da República – numa sessão em plena madrugada e que durou no máximo dez minutos. O pretexto invocado fora uma carta ao Congresso em que o então chefe da Casa Civil informava que o presidente da República iria transferir o governo para Porto Alegre, “em vista dos últimos acontecimentos militares”.

Consumava-se, assim, a tentativa de dar aparência legal ao levante militar iniciado em 31 de março em Minas Gerais, pelo general Mourão Filho. Era o começo de um longo período, marcado pela derrubada da frágil democracia na qual vivia o Brasil e implantada pela Constituição de 1946, após a destituição de Getúlio Vargas no ano anterior.

Daí em diante, ocorreram atos nefastos ao longo de mais de duas décadas. Começaram com prisões a esmo e a cassação de mandatos parlamentares ou a tortura como método de interrogatório dos presos políticos, e logo a censura na imprensa, rádio e televisão. Tudo se fazia por meio dos “Atos Institucionais” impostos pelos comandos do Exército, da Marinha e Aeronáutica. Era o início da ditadura militar, que se ampliou com o Ato Institucional número 2, ao extinguir os partidos políticos e anular a projetada eleição presidencial de 1965.

Os golpistas protestavam contra as “reformas de base”, especialmente contra a reforma agrária e a reforma financeira e fiscal, que eles apresentavam como a “comunização do País” e o início da “extinção da propriedade privada”. O pretexto fora o comício de 13 de março no Rio de Janeiro, em que o presidente João Goulart anunciou a estatização das refinarias privadas e a desapropriação das áreas rurais não cultivadas junto das rodovias federais.

Dias antes, em São Paulo, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade reuniu dezenas de milhares de pessoas (encabeçadas por dona Leonor de Barros, esposa do então governador Adhemar de Barros) para protestar contra o governo federal. Já pré-candidato à Presidência da República, o governador paulista era conhecido pelo lema “rouba, mas faz”.

A pregação do sacerdote irlandês-americano Patrick Peyton, vindo ao Brasil para preparar a marcha, mostrava a escondida influência estrangeira nos acontecimentos.

Anos depois do golpe, a historiadora Phyllis Parker descobriu, nos arquivos da CIA e do Departamento de Estado, a Operação Brother Sam, que descrevia a participação americana no golpe. Naqueles tempos, em pleno auge da guerra fria, a paranoia anticomunista dominava os Estados Unidos e o mundo Ocidental. Em meu livro 1964 – O Golpe, exponho parte daquela documentação, que agora não cabe detalhar.

Mostro aqui, no entanto, um fato que define a raiz do movimento golpista. A esquadra americana partiu da base naval de Norfolk, com o porta-aviões Forrestal à frente, com destino a Santos, para intervir no Brasil. Indago: o porta-aviões não indicaria até um eventual bombardeio aéreo?

Dia 2 de abril, a esquadra recebeu ordem de voltar, pois o presidente João Goulart tinha desistido de resistir e o movimento golpista já havia triunfado.

Meses antes do golpe, o embaixador Lincoln Gordon (em reunião com o então presidente John Kennedy) tinha logrado substituir o adido militar dos EUA no Brasil pelo coronel Vernon Walters, que falava perfeitamente nosso idioma pois fora oficial de enlace dos EUA com as tropas do Brasil durante a 2.ª Guerra na Itália. Lá, fez-se íntimo do então coronel Castello Branco, seu colega no lado brasileiro.

Castello Branco foi o primeiro ditador, eleito pelo Congresso como candidato único numa verdadeira simulação em que o voto era cantado publicamente sob ameaça de cassação do mandato. Até o ex-presidente e então senador Juscelino Kubitschek votou em Castello, que, meses depois, cassou seu mandato parlamentar.

Desde a consolidação do golpe, incorporou-se ao nosso idioma o não usual verbo “cassar”, nunca com o sentido de “caçar” animais ou criminosos, mas de terminar com mandatos parlamentares ou suspender direitos políticos ao longo de dez anos.

O golpe no Brasil serviu de modelo para que em diferentes países da América do Sul ocorressem movimentos militares semelhantes, em que as Forças Armadas assumiram o poder político e aplicaram todo horror possível. Os mais notórios golpes de Estado ocorreram no Chile e na Argentina e, logo, se estenderam a outras nações.

Por tudo isso (além de outros detalhes), os 60 anos do golpe militar não podem ser esquecidos e são uma data a sempre lembrar.

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JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

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Jornalista, escritor (Prêmio Jabuti 2000 e 2005; Prêmio APCA 2004) e professor aposentado da Universidade de Brasília, Flávio Tavares escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

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