Jornalista, escritor (Prêmio Jabuti 2000 e 2005; Prêmio APCA 2004) e professor aposentado da Universidade de Brasília, Flávio Tavares escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|O Dia de Finados que estendemos ao infinito


Seguimos nos portando como quem guarda a garrafa térmica na geladeira para conservar a água quente

Por Flávio Tavares

Na véspera do Dia de Finados é imprescindível falar da vida e não da morte. Morrer faz parte da existência. É um fim em si mesmo, definido popularmente pelo velho refrão de que “para morrer, basta estar vivo”. No entanto, estamos acelerando a morte da vida no planeta com o descuido contínuo que faz surgir a crise climática atual. As mudanças climáticas são antigas, não surgiram nas últimas décadas. Talvez tenham até alguns séculos, desde quando na “idade da pedra” se acenderam as primeiras fogueiras. Incrementaram-se e cresceram, porém, com a “Revolução Industrial”, que nos facilitou o viver no dia a dia, mas terminou por nos tirar muito mais do que, agora, nos proporciona em bem-estar.

Só nas últimas décadas, porém, a ciência e os cientistas descobriram as “mudanças climáticas” como um fenômeno provocado por nosso desleixo para com a vida no planeta. Passamos a conhecer o “efeito estufa” como o verdadeiro vilão da vida, sempre à espreita para nos destruir gradativamente. É ele o responsável pela seca na Amazônia (onde, antes, chovia todos os dias) tanto quanto pelas enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul. Ou até pela ventania e temporais que afetaram o abastecimento de energia elétrica em São Paulo. Surge a pergunta: a natureza será má? Ou a maldade está em nós mesmos como conjunto da sociedade ao não responsabilizar os governantes por deixarem de adotar as medidas pelas quais são responsáveis?

Aí está o Acordo de Paris, assinado pelos governos de 195 países, mas que, na prática, deixou de ser um compromisso e se tornou quase um mero documento burocrático. O Brasil é o sexto maior emissor de gases de efeito estufa do mundo e, por isso, deve apresentar medidas concretas na próxima reunião climática a realizar-se no Azerbaijão. Nada ou muito pouco, porém, se faz aqui com o que se chama de “Contribuição Nacionalmente Determinadas” (ou NDC na sigla em inglês de Nationally Determined Contributions) para alinhar esforços e atingir a meta de limitar o aumento da temperatura global a 1,5 grau centígrado em comparação com os níveis pré-industriais, sem que isso afete a economia e o desenvolvimento.

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Quais as medidas práticas para deter o efeito estufa e obter emissões zero até a metade deste século? O mundo está chegando à beira do colapso. No entanto, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas afirma que “ainda há tempo” de “mudar a rota” e estabilizar o aumento da temperatura em 1,5 grau centígrado, evitando o colapso. Em 2023, o aquecimento variou de 2,1 graus a 2,8 graus centígrados. Seguimos, porém, nos portando como quem guarda a garrafa térmica na geladeira para conservar a água quente…

Tratando ainda de preservação ambiental, surge a água como problema fundamental a resolver. Em São Paulo e cidades menores ao longo do Brasil, seguimos lavando calçadas e automóveis com água tratada, num desperdício que podemos chamar de criminoso. O problema se agiganta com um número que esquecemos: 47,6% da população do Brasil não tem acesso à água tratada nem à coleta de esgoto. E apenas 46% dos esgotos são tratados.

Assim, tudo se degrada, da saúde dos habitantes ao ecossistema aquático. Não é preciso nem sequer buscar exemplos lá fora para demonstrar o quase horror. Junto à maior cidade do Brasil, a Represa Billings (que vai completar cem anos em 2025) é o mais importante reservatório paulistano de água. No entanto, a maioria das moradias junto à represa não tem acesso adequado a esgoto e nem sequer à água tratada. Os detritos e resíduos, a começar pelas fezes, são lançados na própria represa que, por outro lado, irá tratar essa água que vai abastecer os paulistanos. Qual a explicação disso?

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Dir-se-á que a desordenada urbanização das áreas junto à represa é responsável por esse duplo problema que, por sua vez, foi provocado pela migração de famílias vindas do Nordeste e de outras regiões do Brasil em busca de trabalho. Ainda que essa migração verdadeiramente tenha ocorrido (e que São Paulo tenha até o apelido de “maior cidade do Nordeste”), só a cegueira e inação dos governantes pode explicar tudo isso.

Há outras situações a mostrar que o horror se estende. A tragédia de Mariana, em Minas Gerais, onde uma barragem da Samarco se rompeu em 2015, matou 19 pessoas e devastou com lama tóxica (que chegou ao Rio Doce) uma área equivalente a 13 mil piscinas olímpicas, só poucos dias atrás teve o que se chamou de “solução”, após nove anos. De fato, essa “solução” é monetária ou indenizatória e não recupera por si só as regiões devastadas nem ressuscita os mortos, obviamente. O valor total das indenizações chega a R$ 170 bilhões, e o acordo se fez dias depois de um tribunal iniciar em Londres o julgamento do mesmo episódio, já que a Samarco (geradora do rompimento) é empresa de capital inglês e australiano, além da brasileira Vale.

Por tudo isso, indago agora: não estaremos estendendo ao infinito o Dia de Finados?

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JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Na véspera do Dia de Finados é imprescindível falar da vida e não da morte. Morrer faz parte da existência. É um fim em si mesmo, definido popularmente pelo velho refrão de que “para morrer, basta estar vivo”. No entanto, estamos acelerando a morte da vida no planeta com o descuido contínuo que faz surgir a crise climática atual. As mudanças climáticas são antigas, não surgiram nas últimas décadas. Talvez tenham até alguns séculos, desde quando na “idade da pedra” se acenderam as primeiras fogueiras. Incrementaram-se e cresceram, porém, com a “Revolução Industrial”, que nos facilitou o viver no dia a dia, mas terminou por nos tirar muito mais do que, agora, nos proporciona em bem-estar.

Só nas últimas décadas, porém, a ciência e os cientistas descobriram as “mudanças climáticas” como um fenômeno provocado por nosso desleixo para com a vida no planeta. Passamos a conhecer o “efeito estufa” como o verdadeiro vilão da vida, sempre à espreita para nos destruir gradativamente. É ele o responsável pela seca na Amazônia (onde, antes, chovia todos os dias) tanto quanto pelas enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul. Ou até pela ventania e temporais que afetaram o abastecimento de energia elétrica em São Paulo. Surge a pergunta: a natureza será má? Ou a maldade está em nós mesmos como conjunto da sociedade ao não responsabilizar os governantes por deixarem de adotar as medidas pelas quais são responsáveis?

Aí está o Acordo de Paris, assinado pelos governos de 195 países, mas que, na prática, deixou de ser um compromisso e se tornou quase um mero documento burocrático. O Brasil é o sexto maior emissor de gases de efeito estufa do mundo e, por isso, deve apresentar medidas concretas na próxima reunião climática a realizar-se no Azerbaijão. Nada ou muito pouco, porém, se faz aqui com o que se chama de “Contribuição Nacionalmente Determinadas” (ou NDC na sigla em inglês de Nationally Determined Contributions) para alinhar esforços e atingir a meta de limitar o aumento da temperatura global a 1,5 grau centígrado em comparação com os níveis pré-industriais, sem que isso afete a economia e o desenvolvimento.

Quais as medidas práticas para deter o efeito estufa e obter emissões zero até a metade deste século? O mundo está chegando à beira do colapso. No entanto, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas afirma que “ainda há tempo” de “mudar a rota” e estabilizar o aumento da temperatura em 1,5 grau centígrado, evitando o colapso. Em 2023, o aquecimento variou de 2,1 graus a 2,8 graus centígrados. Seguimos, porém, nos portando como quem guarda a garrafa térmica na geladeira para conservar a água quente…

Tratando ainda de preservação ambiental, surge a água como problema fundamental a resolver. Em São Paulo e cidades menores ao longo do Brasil, seguimos lavando calçadas e automóveis com água tratada, num desperdício que podemos chamar de criminoso. O problema se agiganta com um número que esquecemos: 47,6% da população do Brasil não tem acesso à água tratada nem à coleta de esgoto. E apenas 46% dos esgotos são tratados.

Assim, tudo se degrada, da saúde dos habitantes ao ecossistema aquático. Não é preciso nem sequer buscar exemplos lá fora para demonstrar o quase horror. Junto à maior cidade do Brasil, a Represa Billings (que vai completar cem anos em 2025) é o mais importante reservatório paulistano de água. No entanto, a maioria das moradias junto à represa não tem acesso adequado a esgoto e nem sequer à água tratada. Os detritos e resíduos, a começar pelas fezes, são lançados na própria represa que, por outro lado, irá tratar essa água que vai abastecer os paulistanos. Qual a explicação disso?

Dir-se-á que a desordenada urbanização das áreas junto à represa é responsável por esse duplo problema que, por sua vez, foi provocado pela migração de famílias vindas do Nordeste e de outras regiões do Brasil em busca de trabalho. Ainda que essa migração verdadeiramente tenha ocorrido (e que São Paulo tenha até o apelido de “maior cidade do Nordeste”), só a cegueira e inação dos governantes pode explicar tudo isso.

Há outras situações a mostrar que o horror se estende. A tragédia de Mariana, em Minas Gerais, onde uma barragem da Samarco se rompeu em 2015, matou 19 pessoas e devastou com lama tóxica (que chegou ao Rio Doce) uma área equivalente a 13 mil piscinas olímpicas, só poucos dias atrás teve o que se chamou de “solução”, após nove anos. De fato, essa “solução” é monetária ou indenizatória e não recupera por si só as regiões devastadas nem ressuscita os mortos, obviamente. O valor total das indenizações chega a R$ 170 bilhões, e o acordo se fez dias depois de um tribunal iniciar em Londres o julgamento do mesmo episódio, já que a Samarco (geradora do rompimento) é empresa de capital inglês e australiano, além da brasileira Vale.

Por tudo isso, indago agora: não estaremos estendendo ao infinito o Dia de Finados?

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JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Na véspera do Dia de Finados é imprescindível falar da vida e não da morte. Morrer faz parte da existência. É um fim em si mesmo, definido popularmente pelo velho refrão de que “para morrer, basta estar vivo”. No entanto, estamos acelerando a morte da vida no planeta com o descuido contínuo que faz surgir a crise climática atual. As mudanças climáticas são antigas, não surgiram nas últimas décadas. Talvez tenham até alguns séculos, desde quando na “idade da pedra” se acenderam as primeiras fogueiras. Incrementaram-se e cresceram, porém, com a “Revolução Industrial”, que nos facilitou o viver no dia a dia, mas terminou por nos tirar muito mais do que, agora, nos proporciona em bem-estar.

Só nas últimas décadas, porém, a ciência e os cientistas descobriram as “mudanças climáticas” como um fenômeno provocado por nosso desleixo para com a vida no planeta. Passamos a conhecer o “efeito estufa” como o verdadeiro vilão da vida, sempre à espreita para nos destruir gradativamente. É ele o responsável pela seca na Amazônia (onde, antes, chovia todos os dias) tanto quanto pelas enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul. Ou até pela ventania e temporais que afetaram o abastecimento de energia elétrica em São Paulo. Surge a pergunta: a natureza será má? Ou a maldade está em nós mesmos como conjunto da sociedade ao não responsabilizar os governantes por deixarem de adotar as medidas pelas quais são responsáveis?

Aí está o Acordo de Paris, assinado pelos governos de 195 países, mas que, na prática, deixou de ser um compromisso e se tornou quase um mero documento burocrático. O Brasil é o sexto maior emissor de gases de efeito estufa do mundo e, por isso, deve apresentar medidas concretas na próxima reunião climática a realizar-se no Azerbaijão. Nada ou muito pouco, porém, se faz aqui com o que se chama de “Contribuição Nacionalmente Determinadas” (ou NDC na sigla em inglês de Nationally Determined Contributions) para alinhar esforços e atingir a meta de limitar o aumento da temperatura global a 1,5 grau centígrado em comparação com os níveis pré-industriais, sem que isso afete a economia e o desenvolvimento.

Quais as medidas práticas para deter o efeito estufa e obter emissões zero até a metade deste século? O mundo está chegando à beira do colapso. No entanto, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas afirma que “ainda há tempo” de “mudar a rota” e estabilizar o aumento da temperatura em 1,5 grau centígrado, evitando o colapso. Em 2023, o aquecimento variou de 2,1 graus a 2,8 graus centígrados. Seguimos, porém, nos portando como quem guarda a garrafa térmica na geladeira para conservar a água quente…

Tratando ainda de preservação ambiental, surge a água como problema fundamental a resolver. Em São Paulo e cidades menores ao longo do Brasil, seguimos lavando calçadas e automóveis com água tratada, num desperdício que podemos chamar de criminoso. O problema se agiganta com um número que esquecemos: 47,6% da população do Brasil não tem acesso à água tratada nem à coleta de esgoto. E apenas 46% dos esgotos são tratados.

Assim, tudo se degrada, da saúde dos habitantes ao ecossistema aquático. Não é preciso nem sequer buscar exemplos lá fora para demonstrar o quase horror. Junto à maior cidade do Brasil, a Represa Billings (que vai completar cem anos em 2025) é o mais importante reservatório paulistano de água. No entanto, a maioria das moradias junto à represa não tem acesso adequado a esgoto e nem sequer à água tratada. Os detritos e resíduos, a começar pelas fezes, são lançados na própria represa que, por outro lado, irá tratar essa água que vai abastecer os paulistanos. Qual a explicação disso?

Dir-se-á que a desordenada urbanização das áreas junto à represa é responsável por esse duplo problema que, por sua vez, foi provocado pela migração de famílias vindas do Nordeste e de outras regiões do Brasil em busca de trabalho. Ainda que essa migração verdadeiramente tenha ocorrido (e que São Paulo tenha até o apelido de “maior cidade do Nordeste”), só a cegueira e inação dos governantes pode explicar tudo isso.

Há outras situações a mostrar que o horror se estende. A tragédia de Mariana, em Minas Gerais, onde uma barragem da Samarco se rompeu em 2015, matou 19 pessoas e devastou com lama tóxica (que chegou ao Rio Doce) uma área equivalente a 13 mil piscinas olímpicas, só poucos dias atrás teve o que se chamou de “solução”, após nove anos. De fato, essa “solução” é monetária ou indenizatória e não recupera por si só as regiões devastadas nem ressuscita os mortos, obviamente. O valor total das indenizações chega a R$ 170 bilhões, e o acordo se fez dias depois de um tribunal iniciar em Londres o julgamento do mesmo episódio, já que a Samarco (geradora do rompimento) é empresa de capital inglês e australiano, além da brasileira Vale.

Por tudo isso, indago agora: não estaremos estendendo ao infinito o Dia de Finados?

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JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Na véspera do Dia de Finados é imprescindível falar da vida e não da morte. Morrer faz parte da existência. É um fim em si mesmo, definido popularmente pelo velho refrão de que “para morrer, basta estar vivo”. No entanto, estamos acelerando a morte da vida no planeta com o descuido contínuo que faz surgir a crise climática atual. As mudanças climáticas são antigas, não surgiram nas últimas décadas. Talvez tenham até alguns séculos, desde quando na “idade da pedra” se acenderam as primeiras fogueiras. Incrementaram-se e cresceram, porém, com a “Revolução Industrial”, que nos facilitou o viver no dia a dia, mas terminou por nos tirar muito mais do que, agora, nos proporciona em bem-estar.

Só nas últimas décadas, porém, a ciência e os cientistas descobriram as “mudanças climáticas” como um fenômeno provocado por nosso desleixo para com a vida no planeta. Passamos a conhecer o “efeito estufa” como o verdadeiro vilão da vida, sempre à espreita para nos destruir gradativamente. É ele o responsável pela seca na Amazônia (onde, antes, chovia todos os dias) tanto quanto pelas enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul. Ou até pela ventania e temporais que afetaram o abastecimento de energia elétrica em São Paulo. Surge a pergunta: a natureza será má? Ou a maldade está em nós mesmos como conjunto da sociedade ao não responsabilizar os governantes por deixarem de adotar as medidas pelas quais são responsáveis?

Aí está o Acordo de Paris, assinado pelos governos de 195 países, mas que, na prática, deixou de ser um compromisso e se tornou quase um mero documento burocrático. O Brasil é o sexto maior emissor de gases de efeito estufa do mundo e, por isso, deve apresentar medidas concretas na próxima reunião climática a realizar-se no Azerbaijão. Nada ou muito pouco, porém, se faz aqui com o que se chama de “Contribuição Nacionalmente Determinadas” (ou NDC na sigla em inglês de Nationally Determined Contributions) para alinhar esforços e atingir a meta de limitar o aumento da temperatura global a 1,5 grau centígrado em comparação com os níveis pré-industriais, sem que isso afete a economia e o desenvolvimento.

Quais as medidas práticas para deter o efeito estufa e obter emissões zero até a metade deste século? O mundo está chegando à beira do colapso. No entanto, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas afirma que “ainda há tempo” de “mudar a rota” e estabilizar o aumento da temperatura em 1,5 grau centígrado, evitando o colapso. Em 2023, o aquecimento variou de 2,1 graus a 2,8 graus centígrados. Seguimos, porém, nos portando como quem guarda a garrafa térmica na geladeira para conservar a água quente…

Tratando ainda de preservação ambiental, surge a água como problema fundamental a resolver. Em São Paulo e cidades menores ao longo do Brasil, seguimos lavando calçadas e automóveis com água tratada, num desperdício que podemos chamar de criminoso. O problema se agiganta com um número que esquecemos: 47,6% da população do Brasil não tem acesso à água tratada nem à coleta de esgoto. E apenas 46% dos esgotos são tratados.

Assim, tudo se degrada, da saúde dos habitantes ao ecossistema aquático. Não é preciso nem sequer buscar exemplos lá fora para demonstrar o quase horror. Junto à maior cidade do Brasil, a Represa Billings (que vai completar cem anos em 2025) é o mais importante reservatório paulistano de água. No entanto, a maioria das moradias junto à represa não tem acesso adequado a esgoto e nem sequer à água tratada. Os detritos e resíduos, a começar pelas fezes, são lançados na própria represa que, por outro lado, irá tratar essa água que vai abastecer os paulistanos. Qual a explicação disso?

Dir-se-á que a desordenada urbanização das áreas junto à represa é responsável por esse duplo problema que, por sua vez, foi provocado pela migração de famílias vindas do Nordeste e de outras regiões do Brasil em busca de trabalho. Ainda que essa migração verdadeiramente tenha ocorrido (e que São Paulo tenha até o apelido de “maior cidade do Nordeste”), só a cegueira e inação dos governantes pode explicar tudo isso.

Há outras situações a mostrar que o horror se estende. A tragédia de Mariana, em Minas Gerais, onde uma barragem da Samarco se rompeu em 2015, matou 19 pessoas e devastou com lama tóxica (que chegou ao Rio Doce) uma área equivalente a 13 mil piscinas olímpicas, só poucos dias atrás teve o que se chamou de “solução”, após nove anos. De fato, essa “solução” é monetária ou indenizatória e não recupera por si só as regiões devastadas nem ressuscita os mortos, obviamente. O valor total das indenizações chega a R$ 170 bilhões, e o acordo se fez dias depois de um tribunal iniciar em Londres o julgamento do mesmo episódio, já que a Samarco (geradora do rompimento) é empresa de capital inglês e australiano, além da brasileira Vale.

Por tudo isso, indago agora: não estaremos estendendo ao infinito o Dia de Finados?

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JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

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