O Ministério da Saúde registrou 363 mortes de indígenas yanomamis em 2023, numa quantidade de óbitos superior ao número oficial do ano anterior, quando foram apontadas 343 mortes. A divulgação foi acompanhada por três relativizações: técnicos do ministério alegam que os números na gestão de Jair Bolsonaro estavam subnotificados; o governo ainda credita parte das deficiências atuais à herança deixada pelo antecessor; e um inquérito em curso pode vir a identificar mortes e doenças não notificadas em anos anteriores e corrigir dissonâncias. Com ou sem tais ressalvas, o número divulgado agora reafirma uma certeza já deixada em janeiro, quando a tragédia humanitária dos yanomamis completou um ano: o governo Lula fracassou até agora na tentativa de salvar os indígenas da emergência sanitária. E, mais grave, não há qualquer indício de que os erros cometidos até aqui estejam sendo corrigidos de fato.
Ao apagão na estatística e no combate aos crimes ambientais do governo anterior, a gestão de Lula respondeu com apagão de eficiência. Não há justificativa aceitável para que a crise humanitária que atinge o povo yanomami esteja maior, e não menor, do que um ano atrás – mesmo que se reconheçam os limites de uma resposta de curto prazo a anos acumulados de problemas naquela região, que envolve o envenenamento das águas e do solo, a intoxicação de pessoas, a propagação da malária, a proliferação de casos crônicos de desnutrição e as invasões e assassinatos promovidos por criminosos vinculados ao garimpo ilegal, que fez aumentar os índices de violência, degradação ambiental e doenças por contaminação do mercúrio nos rios. Sua solução exigiria muito mais.
Em janeiro de 2023, poucos dias depois de tomar posse como presidente, Lula da Silva foi surpreendido com a notícia daquilo que organizações já alertavam havia uma década: os yanomamis sofriam com desassistência sanitária, malária, pneumonia, desnutrição severa, doenças sexualmente transmissíveis e mortes, resultado de anos e anos de interferência indevida de não indígenas em seu território, localizado entre os Estados de Roraima e Amazonas, e no sul da Venezuela. Tudo isso agravado por um local de difícil acesso e pelo abandono do Estado numa terra dominada pelo ecossistema de crimes ambientais.
À época, foi decretada emergência em saúde pública e montou-se uma força-tarefa envolvendo seis ministérios, as Forças Armadas e a Polícia Federal, além de órgãos como a Funai, o Ibama e a Secretaria Especial de Saúde Indígena. Seguindo o DNA palanqueiro do lulopetismo, o presidente não hesitou em apontar culpados externos do passado e fazer promessas de redenção para o futuro próximo. Há cerca de um mês, no aniversário do primeiro ano da crise, Lula da Silva reafirmou intenções, enviou uma equipe de ministros ao local e apresentou denúncias como se estivesse iniciando a tarefa.
O tamanho da tragédia em curso, porém, não aceita a conjugação entre oportunismo político e soberba. A soma de equívocos do governo começou com a ausência de uma instância de coordenação das ações emergenciais com real poder sobre as diferentes pastas e órgãos envolvidos no trabalho. Também faltou estudo logístico eficiente para planejar o envio de insumos e profissionais de saúde, e milhões de reais foram consumidos em cestas básicas lançadas sobre aldeias e clareiras sem muito critério. O resultado se vê nos números e na tentativa de transferência de culpa e responsabilidade. O esvaziado Ministério dos Povos Indígenas, por exemplo, divulgou em janeiro uma resolução na qual culpa a “negligência” do Ministério da Defesa pela situação dos yanomamis. Também afirmou que o problema é o garimpo ilegal, e não mais a fome. Já militares têm evitado responder, ao mesmo tempo que são acusados de omissão na segurança diante da proliferação do garimpo ilegal.
A conta tem sido paga com a vida e com os direitos mais elementares dos indígenas, historicamente tratados como cidadãos de segunda classe. Uma trágica ironia para aqueles cujo nome, na origem, segundo a expressão yanõmami thëpë, significa “seres humanos”.