Como órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), instituído pela Lei 9.883/1999, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) tem uma atribuição específica e relevante para o País: fornecer ao presidente da República e aos ministros de Estado informações e análises estratégicas que possam instruir o primeiro escalão do governo federal no processo decisório.
À luz do interesse nacional, portanto, a Abin é um órgão fundamental na estrutura do Poder Executivo. O trabalho de seus servidores, se bem feito, garante que as decisões tomadas pelo presidente e seus auxiliares diretos – decisões que afetam não só a vida de 210 milhões de brasileiros, mas também a posição do Brasil em questões geopolíticas – estejam consubstanciadas pela verdade dos fatos e resultem de uma abrangente reflexão que leve em conta os pormenores de cada situação que demande a intervenção do Palácio do Planalto.
Como a imprensa tem revelado, essa Abin republicana parece ter deixado de existir. Hoje, não é seguro afirmar que a Abin seja um órgão que se preste exclusivamente ao estrito cumprimento de sua finalidade legal, agindo “com irrestrita observância dos direitos e garantias individuais, fidelidade às instituições e aos princípios éticos que regem os interesses e a segurança do Estado”, como determina o artigo 3.º, parágrafo único, da referida lei.
A Polícia Federal (PF) investiga a grave suspeita de que, durante o governo de Jair Bolsonaro, a Abin tenha sido transformada, como dissemos, num arremedo de SNI para servir aos interesses da família do ex-presidente, e não do País. No governo de Lula da Silva, por sua vez, não se tem presente a relação de confiança que há de haver entre os agentes que produzem informações sensíveis para a tomada de decisão e as autoridades que devem recebê-las, a começar pelo chefe de Estado e de governo.
No dia 30 passado, Lula demitiu o diretor-adjunto da Abin, Alessandro Moretti, o segundo na hierarquia do órgão. Sobre Moretti paira a suspeita de manter ligações com o ex-diretor da agência e deputado bolsonarista Alexandre Ramagem (PL-RJ), a fim de repassar-lhe informações sigilosas colhidas pela Abin sobre temas de interesse do clã Bolsonaro. Em meio a essa onda de paranoia e desconfiança, há quem defenda até a demissão do atual diretor da agência, Luiz Fernando Corrêa. Afinal, foi dele a decisão de nomear Moretti como seu diretor-adjunto.
Seja qual for o novo organograma da Abin, o fato é que, transcorrido mais de um ano do governo Lula, permanece o evidente descontrole do País sobre seu aparato de inteligência, como se seus membros pudessem agir como bem entendessem e devessem obedecer a ordens flagrantemente ilegais. É uma obviedade, mas vale ressaltar: num país democrático, agente de inteligência não é espião a serviço do governante de turno. Essa subversão até pode render bons roteiros de cinema. Na vida real, é uma afronta à democracia e à ordem constitucional, além de um risco para os cidadãos. Ora, se nem o presidente da República está tranquilo com a atuação da Abin – ou Lula não teria ordenado a demissão de seu diretor-adjunto –, nenhum cidadão tem razão para dormir em paz sabendo que seus direitos e garantias fundamentais podem ser violados.
O descontrole se manifesta em situações comezinhas. Na operação que cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços de Ramagem, a PF recolheu um notebook e um celular da Abin em posse do atual deputado, malgrado o fato de ele não fazer parte do órgão de inteligência desde março de 2022. Questionada pelo Estadão, a Abin afirmou que “não deu falta dos equipamentos”, pasme o leitor, e que nem sequer deveria tentar reavê-los após a demissão de Alexandre Ramagem, pois “a responsabilidade de devolver o material era do então diretor”. Ou seja, o órgão central do Sisbin admite não ter cuidado com ativos que podem carregar informações sensíveis que deveriam ser secretas. É uma perigosa esculhambação.