Eis que chega o dia ideal para considerar o lugar da natureza em nossa consciência. Por muitos milênios, a observação da vida ao redor, a leitura do livro do mundo, foi o guia maior para o conhecimento humano. Esse papel de guia central era reconhecido inclusive por homens do livro, pessoas que dominavam a escrita e o conhecimento racional. Era a chamada lumen naturae.
Ainda do Renascimento, Paracelso a definia: “O firmamento é a luz natural, a estrela que há no homem. O homem extrai dela o alimento, à semelhança do alimento que extrai da terra, para a qual ele nasceu; assim também deve nascer para essa estrela”.
Esse caráter de nascimento duplo, material e espiritual, na vida intelectual da escrita, foi um acréscimo cristão à definição da natureza como mestra. Antes disso, o conhecimento derivado das lições dadas pelos ciclos naturais era expresso por ritos, especialmente os ligados aos temas da morte e do renascimento.
Uma versão egípcia: Osíris é Deus de dia; entra à noite no ventre materno, volta para a mãe, é esquartejado, envolto na árvore, para renascer com o sol. Pela manhã, Ísis é mãe; à tarde, irmã-esposa; à noite, novamente, a mãe que recebe o morto em seu colo. Ainda hoje, ecos de mitos como este estão presentes nas palavras de uso diário: o sol nasce, o dia morre.
São ecos muito distantes, como notou Carl Jung: “Os animais têm pouca consciência, mas muitos impulsos e reações que apontam para a existência de uma psique; os povos originários fazem coisas cujo significado lhes é desconhecido. Mas perguntar ao homem de hoje sobre a árvore de Natal seria vão, já que as pessoas não têm a mínima noção do sentido desse costume”.
Esta perda de capacidade de explicar hábitos seria a tradução de uma queda do conhecimento contemporâneo sobre o mundo natural: “Por que seria o homem o único ser vivente ao qual faltam instintos específicos, ou cuja psique não revele vestígios de sua evolução? Se igualarmos psique e consciência, sucumbimos facilmente ao erro de considerar a consciência uma tábula rasa, totalmente vazia no nascimento e só mais tarde se formando com o que fosse apreendido pela experiência individual. Mas psique é mais que consciência”.
Uma boa metáfora para o problema de recuperar o potencial de conhecimento necessário para lidar com a natureza, na consciência atual, está num provérbio polonês que Theodor Adorno cita inicialmente em Minima Moralia, mas transforma em tema central de sua obra “Abre-te Sésamo! Quero sair!”.
Ele escrevia depois da bomba atômica, à luz de um sol negro que não é a natural, explosão que teria marcado a perda radical de consciência da natureza pelo homem. Um tempo no qual nem mesmo o antigo arranjo de Paracelso fazia sentido. Esse arranjo, uma espécie de saída de compromisso, foi estabelecido pelos primeiros cristãos.
Eles tinham uma Palavra para pregar. Uma voz tão organizada como possível, já que nos primeiros séculos os Evangelhos eram escritos de muitas maneiras, cada igreja local fazendo suas versões. Não bastasse isso, a Palavra deveria ser pregada universalmente, para todos os povos da Terra. Isso obrigava a encontrar formas linguísticas que fossem capazes de traduzir o sentido dos Evangelhos para pessoas com as mais diferentes culturas e línguas.
Essas pesadas exigências muitas vezes eram resolvidas com as adaptações possíveis. O solstício de inverno do Hemisfério Norte, na noite de 21 de dezembro, era uma das datas nas quais natureza e conhecimento se juntavam. Era o dia mais curto do ano. Deste dia em diante, os dias voltavam a crescer, o sol e sua luz voltavam a dominar. Momento ideal para um ritual marcador do ciclo morte/renascimento. Milhares de povos tinham, cada um, suas versões.
Depois de alguns séculos de idas e vindas, estabeleceu-se o sincretismo. O Cristo que morre e renasce na eternidade ganhou uma data anual de nascimento e aniversário. Dia de Natal. Luz da natureza e luz do espírito coincidiram, num único arranjo – que foi se apagando até se tornar hábito e data de consumo, o Sésamo no qual estamos presos.
A natureza exuberante, mais a formação muito peculiar do Brasil, permitiram algo que é, no mínimo, um tesouro cultural planetário para religar consciência e natureza. Xamãs dos povos originários, que ainda retiram seus conhecimentos intelectuais no contato com a natureza, estão conseguindo o milagre de expressar em livros – isto é, na palavra escrita na Língua Portuguesa – um caminho para que possamos recuperar a possibilidade de trazer a natureza de volta para nossa consciência.
Refiro-me especialmente a Davi Kopenawa Yanomami, com o seu monumental A Queda do Céu – um recado muito preciso sobre um caminho para fora do Sésamo. Ailton Krenak, em versões igualmente potentes – com a vantagem de serem sintéticas – é outro que tem muito o que falar sobre o tema.
Trefegar por esta via, recriar em forma nova a consciência da natureza, reverenciar o conhecimento milenar com tecnologia, extrair caminhos para levar a humanidade de volta ao equilíbrio com a vida que nos envolve – e criar um futuro – é hoje uma possibilidade talvez singular da formação social brasileira. Nela ainda há diálogo entre firmamento e estrela. Esse diálogo é fonte talvez única para dar forma a um caminho universal. O cidadão brasileiro que lê, se conseguir entender o recado, tem a chave para formular algo que precisa renascer em toda a humanidade.
Um Feliz Natal.
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ESCRITOR, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS (ABL)