Quando Jair Bolsonaro – o mito – assumiu o poder, não era difícil prognosticar sua trajetória de instabilidade institucional, que redundou no colapso prematuro de seu mandato. Vários fatores contribuíram para esse processo de corrosão do que muitos previam como o início de uma era do bolsonarismo.
</DC>Faltava-lhe uma base partidária suficiente para garantir maioria congressual ou, pelo menos, formar uma coalizão confiável e minimamente programática para viabilizar seus objetivos. Mais que isso, faltava-lhe ânimo e estímulo para negociar com base em concessões mútuas. Sua relação com o mundo político era um jogo de soma zero radical, ou ganho tudo ou não cedo nada.
Seus primeiros movimentos no governo foram marcados por revogaços e tentativas de governar por decreto. Hoje está claro que ambos, revogaços e decretaços, além, é claro, de serem tentativas do tipo “se colar, colou”, eram parte integrante da campanha continuada. Hoje, também está claro que a campanha permanente se revelou a verdadeira essência de seu governo.
Suas promessas de instaurar uma revolução liberal, com reforma tributária, da administração pública, da política externa e do comércio exterior, um programa completo de privatizações e uma cruzada teocrática, tiveram o mesmo destino. Ou seja, foram abandonadas por falta de apoio do Congresso ou esbarraram nas lutas internas resultantes da heterogeneidade entre seus fiéis seguidores.
O ex-presidente parece ter se cansado de dar de cabeça no muro institucional e terceirizou o governo pelo resto do mandato presidencial. Ficou assim traçado o trajeto que o conduziria a abandonar precocemente a Presidência e retirar-se do País.
Como tenho comentado, neste mesmo espaço, ao longo dos últimos anos, a polarização da competição eleitoral em 2018 não espelhava uma pretensa polarização da sociedade. No caso da sociedade, o objetivo de uma estratégia deliberada de duas candidaturas que pleiteavam visões radicalmente opostas da convivência social e política do Brasil – cada uma transfigurada em seu próprio mito – e que vedavam qualquer manifestação de alternativa moderada independente.
De um lado, Fernando Haddad, porta-voz de um Luiz Inácio Lula da Silva ungido por Deus, com a missão de ser o mártir da honestidade, da verdadeira democracia, da ressurreição da Nação, do equilíbrio fiscal com crescimento econômico, da erradicação da fome e da miséria. De outro, Bolsonaro, um soldado insubordinado, igualmente ungido por Deus para exercer o poder absoluto, impor a democracia das “quatro linhas”, porventura traçadas por ele mesmo.
A estratégia da campanha continuada e da polarização permanente se estendeu durante todo o mandato de Bolsonaro e se radicalizou na campanha eleitoral de 2022. De um lado, ameaças bolsonaristas de golpe, via anulação do pleito. Do lado petista, acusações de lesa-pátria para quem ousasse não declarar voto em Lula.
A estratégia era comum, mas a tática lulista foi mais bem-sucedida. Permitiu-lhe, com promessas de pacificação e austeridade fiscal, seduzir os votos de centro, sem os quais sua derrota nas urnas seria inevitável. Bolsonaro, ao contrário, como diria Ulysses Guimarães, ciscava para fora: não apenas nada fez para atrair o eleitor moderado, mas o tratou com repúdio e ameaças contra seus ideais mais caros. Além disso, sua tática de beneficiar apenas seus fiéis seguidores impediu que agregasse novos eleitorados.
A vitória de Lula provocou alívio generalizado de uma população exausta com uma campanha radicalizada, carregada de ódio e de ameaças. As lideranças mundiais, que Lula sabe cativar como ninguém, a imprensa estrangeira, tudo contribuiu para que a opinião pública se sentisse novamente livre de um destino de pária.
Durou pouco. Rapidamente Lula desperdiçou seu capital político antes de assumir o poder. Sua equipe de transição mostrou, mais uma vez, que Lula não deseja nem fingir que tem um projeto de governo, enquanto as facções do petismo têm – e formam pequenas minorias de veto que impedem qualquer tentativa de consenso intra e extrapartidário. Não me lembro de ter visto um presidente trocar orçamentos ministeriais por apoio congressual praticamente em praça pública. O mensalão, pelo menos, foi discreto.
Mas o ambiente de uma diplomação conturbada e a expectativa de um confronto na posse foram ofuscados pelo show de panem et circenses na Praça dos Três Poderes, e o petismo passou uma borracha e um novo Lula estava assumindo plenos poderes e voltaríamos a ter governo, o que deixamos de ter desde 31 de outubro.
Reiterando o que disse sobre Bolsonaro, os primeiros movimentos do governo Lula foram marcados por revogaços e tentativas de governar por decreto. Hoje está claro que ambas as maneiras são parte integrante da campanha continuada e da polarização permanente.
O assalto de domingo aos três Poderes é uma pequena amostra da falta de um governo, isto é, de uma liderança comprometida com um projeto de governo, apoiado em uma equipe com capacidade governativa e uma maioria estável e confiável.