O economista José Serra escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|O conflito da desoneração da folha


No novo mundo digital, proteger o emprego é um compromisso com a coesão social. A questão da desoneração é a ponta do iceberg. É melhor enfrentar a realidade que ela mostra

Por José Serra
Atualização:

Há mais de dez anos a economia brasileira convive com uma autêntica batalha entre o governo e os setores econômicos que têm expressivo peso da força de trabalho em seus custos. O motivo poderia parecer até banal: empresários querem pagar menos tributos contra a sanha arrecadadora da burocracia pública.

Mas a questão é muito mais complexa do que parece. O conflito em torno da desoneração da folha – que substitui, desde 2012, a contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento de 17 setores por um porcentual do faturamento – vai muito além das posições no Congresso Nacional e da recente incursão no Supremo Tribunal Federal (STF).

Para compreender o problema, temos de adicionar outros contendores: o financiamento da Previdência Social e o déficit público são os mais evidentes. Ater-se apenas a estes dois aspectos, no entanto, impede que a dimensão econômica do problema seja compreendida, qual seja o contraste entre duas economias completamente distintas, a dos anos 70 e a da terceira década do século 21.

continua após a publicidade

Inicialmente, vale a pena recuperar a correta montagem da Previdência Social brasileira. Num regime de caixa em que as contribuições do trabalhador ativo suprem os recursos para pagamento de aposentadorias dos inativos e de seus pensionistas, a contribuição previdenciária de empregados e empregadores era de mais ou menos um terço para os primeiros e dois terços para as empresas. A base de cálculo era o salário, no desconto na fonte do salário do trabalhador, e, no caso das empresas, a folha salarial global.

Pontue-se aqui que a economia brasileira era muito fechada ao comércio exterior, inclusive com barreiras às importações de diversos produtos, o que viabilizava que o custo das elevadas contribuições de previdência fosse repassado aos preços de bens e serviços. No caso das exportações, custos mais altos com contribuição sobre folha podiam ser compensados com uma taxa de câmbio mais favorável, ou seja, desvalorizada.

Tanto o Brasil quanto a economia mundial mudaram muito nestes últimos 50 anos. Dois movimentos ocorreram nas receitas e despesas públicas. De um lado, a Previdência Social foi se transformando num sistema de seguridade, abandonando a vinculação estrita entre contribuição e benefício para garantir uma renda de um salário mínimo a todo aposentado e pensionista. Justo, mas, como salário saltou para um novo patamar em termos de poder de compra, o sistema ficou muito mais caro.

continua após a publicidade

De outro lado, custos maiores levaram à ampliação dos encargos previdenciários na busca de financiamento. O maior exemplo, a extinção do teto do salário de contribuição no cálculo da participação do empregador sobre sua folha salarial.

As mudanças mais importantes ocorreram, no entanto, na economia. O Brasil de hoje tem muito menos barreiras comerciais e os produtores nacionais concorrem com produtos de países onde as empresas enfrentam encargos sociais baixos. Ou seja, para as empresas, a luta ficou mais difícil no mercado interno e ganhou contornos de inviabilidade na concorrência em mercados externos. Diversos negócios intensivos em mão de obra, como a indústria de calçados, simplesmente migraram suas plantas para produzir no exterior.

As mudanças neste século, entretanto, são ainda mais profundas com a automação da indústria e a economia digital. Há uma grande tendência em trocar pessoas por máquinas, seja por uma questão de produtividade, seja pelo controle de qualidade na produção de bens e serviços. E esta tendência de automação fica exacerbada na presença de altos custos sobre os salários. Logicamente, é muito atrativo trocar um trabalhador e seus custos trabalhistas e encargos por uma máquina. Mais: parte do custo da máquina será recuperada na forma de desoneração tributária do investimento.

continua após a publicidade

É preciso compreender que as empresas de todos os setores econômicos tinham alta participação do salário em seus custos, o que gerava uma distribuição abrangente do ônus de financiar a Previdência Social. O mundo de hoje não é assim, diversos setores têm compromissos salariais reduzidíssimos diante do seu faturamento. Há empresas que não têm intervenção humana em suas plantas produtivas. Manter a lógica de financiamento antiga apenas transfere aos setores que ainda empregam de maneira expressiva um ônus que apenas produz seu definhamento.

O esgotamento do padrão de financiamento da Previdência já é visível nas suas contas, pois uma parcela importante dos seus recursos vem do Tesouro para cobrir o “rombo”. Na verdade, vem da tributação de bens e serviços, pelo PIS/Cofins, e do lucro, pelo Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPF) e pela Contribuição Sobre o Lucro Líquido (CSLL).

Neste novo mundo digital, proteger o emprego é um compromisso com a coesão social. O conflito da desoneração é uma contenda por recursos fadada ao costumeiro toma lá, dá cá. Mas ela é a ponta do iceberg. Seria melhor enfrentar a realidade que ela mostra.

continua após a publicidade

*

ECONOMISTA

Há mais de dez anos a economia brasileira convive com uma autêntica batalha entre o governo e os setores econômicos que têm expressivo peso da força de trabalho em seus custos. O motivo poderia parecer até banal: empresários querem pagar menos tributos contra a sanha arrecadadora da burocracia pública.

Mas a questão é muito mais complexa do que parece. O conflito em torno da desoneração da folha – que substitui, desde 2012, a contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento de 17 setores por um porcentual do faturamento – vai muito além das posições no Congresso Nacional e da recente incursão no Supremo Tribunal Federal (STF).

Para compreender o problema, temos de adicionar outros contendores: o financiamento da Previdência Social e o déficit público são os mais evidentes. Ater-se apenas a estes dois aspectos, no entanto, impede que a dimensão econômica do problema seja compreendida, qual seja o contraste entre duas economias completamente distintas, a dos anos 70 e a da terceira década do século 21.

Inicialmente, vale a pena recuperar a correta montagem da Previdência Social brasileira. Num regime de caixa em que as contribuições do trabalhador ativo suprem os recursos para pagamento de aposentadorias dos inativos e de seus pensionistas, a contribuição previdenciária de empregados e empregadores era de mais ou menos um terço para os primeiros e dois terços para as empresas. A base de cálculo era o salário, no desconto na fonte do salário do trabalhador, e, no caso das empresas, a folha salarial global.

Pontue-se aqui que a economia brasileira era muito fechada ao comércio exterior, inclusive com barreiras às importações de diversos produtos, o que viabilizava que o custo das elevadas contribuições de previdência fosse repassado aos preços de bens e serviços. No caso das exportações, custos mais altos com contribuição sobre folha podiam ser compensados com uma taxa de câmbio mais favorável, ou seja, desvalorizada.

Tanto o Brasil quanto a economia mundial mudaram muito nestes últimos 50 anos. Dois movimentos ocorreram nas receitas e despesas públicas. De um lado, a Previdência Social foi se transformando num sistema de seguridade, abandonando a vinculação estrita entre contribuição e benefício para garantir uma renda de um salário mínimo a todo aposentado e pensionista. Justo, mas, como salário saltou para um novo patamar em termos de poder de compra, o sistema ficou muito mais caro.

De outro lado, custos maiores levaram à ampliação dos encargos previdenciários na busca de financiamento. O maior exemplo, a extinção do teto do salário de contribuição no cálculo da participação do empregador sobre sua folha salarial.

As mudanças mais importantes ocorreram, no entanto, na economia. O Brasil de hoje tem muito menos barreiras comerciais e os produtores nacionais concorrem com produtos de países onde as empresas enfrentam encargos sociais baixos. Ou seja, para as empresas, a luta ficou mais difícil no mercado interno e ganhou contornos de inviabilidade na concorrência em mercados externos. Diversos negócios intensivos em mão de obra, como a indústria de calçados, simplesmente migraram suas plantas para produzir no exterior.

As mudanças neste século, entretanto, são ainda mais profundas com a automação da indústria e a economia digital. Há uma grande tendência em trocar pessoas por máquinas, seja por uma questão de produtividade, seja pelo controle de qualidade na produção de bens e serviços. E esta tendência de automação fica exacerbada na presença de altos custos sobre os salários. Logicamente, é muito atrativo trocar um trabalhador e seus custos trabalhistas e encargos por uma máquina. Mais: parte do custo da máquina será recuperada na forma de desoneração tributária do investimento.

É preciso compreender que as empresas de todos os setores econômicos tinham alta participação do salário em seus custos, o que gerava uma distribuição abrangente do ônus de financiar a Previdência Social. O mundo de hoje não é assim, diversos setores têm compromissos salariais reduzidíssimos diante do seu faturamento. Há empresas que não têm intervenção humana em suas plantas produtivas. Manter a lógica de financiamento antiga apenas transfere aos setores que ainda empregam de maneira expressiva um ônus que apenas produz seu definhamento.

O esgotamento do padrão de financiamento da Previdência já é visível nas suas contas, pois uma parcela importante dos seus recursos vem do Tesouro para cobrir o “rombo”. Na verdade, vem da tributação de bens e serviços, pelo PIS/Cofins, e do lucro, pelo Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPF) e pela Contribuição Sobre o Lucro Líquido (CSLL).

Neste novo mundo digital, proteger o emprego é um compromisso com a coesão social. O conflito da desoneração é uma contenda por recursos fadada ao costumeiro toma lá, dá cá. Mas ela é a ponta do iceberg. Seria melhor enfrentar a realidade que ela mostra.

*

ECONOMISTA

Há mais de dez anos a economia brasileira convive com uma autêntica batalha entre o governo e os setores econômicos que têm expressivo peso da força de trabalho em seus custos. O motivo poderia parecer até banal: empresários querem pagar menos tributos contra a sanha arrecadadora da burocracia pública.

Mas a questão é muito mais complexa do que parece. O conflito em torno da desoneração da folha – que substitui, desde 2012, a contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento de 17 setores por um porcentual do faturamento – vai muito além das posições no Congresso Nacional e da recente incursão no Supremo Tribunal Federal (STF).

Para compreender o problema, temos de adicionar outros contendores: o financiamento da Previdência Social e o déficit público são os mais evidentes. Ater-se apenas a estes dois aspectos, no entanto, impede que a dimensão econômica do problema seja compreendida, qual seja o contraste entre duas economias completamente distintas, a dos anos 70 e a da terceira década do século 21.

Inicialmente, vale a pena recuperar a correta montagem da Previdência Social brasileira. Num regime de caixa em que as contribuições do trabalhador ativo suprem os recursos para pagamento de aposentadorias dos inativos e de seus pensionistas, a contribuição previdenciária de empregados e empregadores era de mais ou menos um terço para os primeiros e dois terços para as empresas. A base de cálculo era o salário, no desconto na fonte do salário do trabalhador, e, no caso das empresas, a folha salarial global.

Pontue-se aqui que a economia brasileira era muito fechada ao comércio exterior, inclusive com barreiras às importações de diversos produtos, o que viabilizava que o custo das elevadas contribuições de previdência fosse repassado aos preços de bens e serviços. No caso das exportações, custos mais altos com contribuição sobre folha podiam ser compensados com uma taxa de câmbio mais favorável, ou seja, desvalorizada.

Tanto o Brasil quanto a economia mundial mudaram muito nestes últimos 50 anos. Dois movimentos ocorreram nas receitas e despesas públicas. De um lado, a Previdência Social foi se transformando num sistema de seguridade, abandonando a vinculação estrita entre contribuição e benefício para garantir uma renda de um salário mínimo a todo aposentado e pensionista. Justo, mas, como salário saltou para um novo patamar em termos de poder de compra, o sistema ficou muito mais caro.

De outro lado, custos maiores levaram à ampliação dos encargos previdenciários na busca de financiamento. O maior exemplo, a extinção do teto do salário de contribuição no cálculo da participação do empregador sobre sua folha salarial.

As mudanças mais importantes ocorreram, no entanto, na economia. O Brasil de hoje tem muito menos barreiras comerciais e os produtores nacionais concorrem com produtos de países onde as empresas enfrentam encargos sociais baixos. Ou seja, para as empresas, a luta ficou mais difícil no mercado interno e ganhou contornos de inviabilidade na concorrência em mercados externos. Diversos negócios intensivos em mão de obra, como a indústria de calçados, simplesmente migraram suas plantas para produzir no exterior.

As mudanças neste século, entretanto, são ainda mais profundas com a automação da indústria e a economia digital. Há uma grande tendência em trocar pessoas por máquinas, seja por uma questão de produtividade, seja pelo controle de qualidade na produção de bens e serviços. E esta tendência de automação fica exacerbada na presença de altos custos sobre os salários. Logicamente, é muito atrativo trocar um trabalhador e seus custos trabalhistas e encargos por uma máquina. Mais: parte do custo da máquina será recuperada na forma de desoneração tributária do investimento.

É preciso compreender que as empresas de todos os setores econômicos tinham alta participação do salário em seus custos, o que gerava uma distribuição abrangente do ônus de financiar a Previdência Social. O mundo de hoje não é assim, diversos setores têm compromissos salariais reduzidíssimos diante do seu faturamento. Há empresas que não têm intervenção humana em suas plantas produtivas. Manter a lógica de financiamento antiga apenas transfere aos setores que ainda empregam de maneira expressiva um ônus que apenas produz seu definhamento.

O esgotamento do padrão de financiamento da Previdência já é visível nas suas contas, pois uma parcela importante dos seus recursos vem do Tesouro para cobrir o “rombo”. Na verdade, vem da tributação de bens e serviços, pelo PIS/Cofins, e do lucro, pelo Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPF) e pela Contribuição Sobre o Lucro Líquido (CSLL).

Neste novo mundo digital, proteger o emprego é um compromisso com a coesão social. O conflito da desoneração é uma contenda por recursos fadada ao costumeiro toma lá, dá cá. Mas ela é a ponta do iceberg. Seria melhor enfrentar a realidade que ela mostra.

*

ECONOMISTA

Opinião por José Serra

Economista

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.