Tradutor e ensaísta, Luiz Sérgio Henriques escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|A paz imprevisível


O pogrom de outubro e a tragédia de Gaza evidenciam que, no caso destes dois grandes povos, só fanáticos ainda creem haver terra a tomar e guerra a vencer

Por Luiz Sérgio Henriques

Nada pior para um conflito como o que ora transcorre em Israel e em Gaza, carregado de dimensões simbólicas milenares, do que ser capturado pela lógica pedestre das guerras de cultura, tão raivosas quanto superficiais. Israel nelas aparece, monoliticamente, como o representante do imperialismo ocidental, um apêndice estranho e indesejado na região, contra quem toda e qualquer revolta se justifica, mesmo quando, como em 7 de outubro, pisoteia valores mínimos da civilização e reacende temores ancestrais de perseguição e aniquilamento. Pela mesma lógica, inversamente, o Hamas identifica-se com todo um povo e surge como protagonista de um tardio combate anticolonial, em torno do qual devem se juntar automaticamente os condenados da Terra.

Postas assim as coisas, cada um de nós não tem muito mais a fazer senão se afundar nas respectivas câmaras de eco e repetir indefinidamente as próprias verdades até que um dia, quem sabe, sobrevenha o cansaço e reapareça a necessidade de buscar alguma outra “causa justa”. Perdem-se nuances, omitem-se elementos significativos de um complexo consenso em construção, inclusive nos círculos dirigentes do Ocidente.

Por aqui, aliás, há bons sinais. Certamente, tarda uma decidida ação de paz pelos Estados Unidos, a potência capaz de conter ou influenciar Israel e, ao mesmo tempo, dialogar com o mundo árabe, suas ruas expressivas e seus dirigentes mais sensatos. No entanto, neste momento de trevas, tem sido animador ver o amadurecimento definitivo da ideia dos dois Estados, alicerçada não só numa necessária visão pragmática, como também no reconhecimento formal do direito à terra tanto por judeus quanto por palestinos.

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Tem mais de um grão de verdade a proposição do presidente Biden segundo a qual, neste “ponto de inflexão da História”, há um contraponto entre democracias e autocracias. Trata-se, porém, de uma verdade parcial, provisória, até pelo fato de que, como o próprio Biden sabe em primeiríssima mão, as democracias permanecem assediadas internamente por atores disruptivos com capacidade para produzir fissuras em consolidadas tradições constitucionais. E, por ironia, nem mesmo a democracia israelense está livre deste assédio. Um político como Benjamin Netanyahu, não por acaso, é fator interno de restrição das liberdades e fator externo de guerras e invasões, ainda que nesta última circunstância tenha os extremistas palestinos como sócios dedicados.

De fato, com algumas exceções, como perto de nós a Venezuela, têm vindo da extrema direita global as ameaças mais graves aos regimes democrático-constitucionais que costumávamos considerar quase um fato da natureza. O culto do homem forte e providencial ressurgiu como a novidade em reação à globalização dos mercados feita de modo veloz e anárquico em algumas poucas décadas. O rótulo “nacional-populismo” define bem a situação recentemente criada: nativismo ideológico, fechamento de fronteiras econômicas, proteção real ou meramente demagógica aos trabalhadores locais, em troca de concentração de poder e asfixia dos pesos e contrapesos de uma democracia cada vez mais difícil.

Netanyahu é a manifestação israelense deste movimento reacionário global. Antes de 7 de outubro, havia um número impressionante de cidadãos nas ruas e praças de Israel, em manifestações que perduraram por meses a fio em defesa do Poder Judiciário. Por certo, a esquerda em sentido estrito, minoritária desde que a perspectiva de paz se enfraquecera, não tinha o controle dos protestos, dominados por preocupações com o destino de uma instituição absolutamente decisiva. E neles não estavam os árabes israelenses. Não importa muito, brotava ali o germe da renovação e da esperança, o repúdio de massas contra o autocrata em formação. Este germe e este repúdio se viram paralisados com o conflito, que, neste preciso sentido, responde ao nacionalismo agressivo de Netanyahu e seus aliados de extrema direita, particularmente os que representam a ocupação ilegal na Cisjordânia.

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Guerras cumprem a função clássica de unir momentaneamente a população em torno da salvação nacional e de abafar o normal dissenso democrático que, de outro modo, se desenvolveria e teria o potencial de dar bons frutos. Na espessa névoa que logo produzem, prevalecem profissões de fé e alinhamentos pavlovianos, como se Israel só tivesse amigos à direita, a Palestina à esquerda. E como se um país inteiro se reduzisse à guerra ao terror e o outro, em formação, limitasse suas formas de luta e resistência a explosões bárbaras.

O caminho da paz, surpreendente e imprevisível, é um daqueles que só se fazem ao caminhar – e a História está mais cheia deles do que parece. Como muitos autores têm lembrado, a Guerra do Yom Kippur, em 1973, levaria ao acordo entre Begin e Al Sadat; e à Intifada de 1987 se seguiriam os Acordos de Oslo entre Rabin e Arafat. O pogrom de outubro e a tragédia cotidiana de Gaza escancaram a evidência de que, no caso destes dois grandes povos, só fanáticos ainda acreditam haver terra a tomar e guerra a vencer.

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TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL

Nada pior para um conflito como o que ora transcorre em Israel e em Gaza, carregado de dimensões simbólicas milenares, do que ser capturado pela lógica pedestre das guerras de cultura, tão raivosas quanto superficiais. Israel nelas aparece, monoliticamente, como o representante do imperialismo ocidental, um apêndice estranho e indesejado na região, contra quem toda e qualquer revolta se justifica, mesmo quando, como em 7 de outubro, pisoteia valores mínimos da civilização e reacende temores ancestrais de perseguição e aniquilamento. Pela mesma lógica, inversamente, o Hamas identifica-se com todo um povo e surge como protagonista de um tardio combate anticolonial, em torno do qual devem se juntar automaticamente os condenados da Terra.

Postas assim as coisas, cada um de nós não tem muito mais a fazer senão se afundar nas respectivas câmaras de eco e repetir indefinidamente as próprias verdades até que um dia, quem sabe, sobrevenha o cansaço e reapareça a necessidade de buscar alguma outra “causa justa”. Perdem-se nuances, omitem-se elementos significativos de um complexo consenso em construção, inclusive nos círculos dirigentes do Ocidente.

Por aqui, aliás, há bons sinais. Certamente, tarda uma decidida ação de paz pelos Estados Unidos, a potência capaz de conter ou influenciar Israel e, ao mesmo tempo, dialogar com o mundo árabe, suas ruas expressivas e seus dirigentes mais sensatos. No entanto, neste momento de trevas, tem sido animador ver o amadurecimento definitivo da ideia dos dois Estados, alicerçada não só numa necessária visão pragmática, como também no reconhecimento formal do direito à terra tanto por judeus quanto por palestinos.

Tem mais de um grão de verdade a proposição do presidente Biden segundo a qual, neste “ponto de inflexão da História”, há um contraponto entre democracias e autocracias. Trata-se, porém, de uma verdade parcial, provisória, até pelo fato de que, como o próprio Biden sabe em primeiríssima mão, as democracias permanecem assediadas internamente por atores disruptivos com capacidade para produzir fissuras em consolidadas tradições constitucionais. E, por ironia, nem mesmo a democracia israelense está livre deste assédio. Um político como Benjamin Netanyahu, não por acaso, é fator interno de restrição das liberdades e fator externo de guerras e invasões, ainda que nesta última circunstância tenha os extremistas palestinos como sócios dedicados.

De fato, com algumas exceções, como perto de nós a Venezuela, têm vindo da extrema direita global as ameaças mais graves aos regimes democrático-constitucionais que costumávamos considerar quase um fato da natureza. O culto do homem forte e providencial ressurgiu como a novidade em reação à globalização dos mercados feita de modo veloz e anárquico em algumas poucas décadas. O rótulo “nacional-populismo” define bem a situação recentemente criada: nativismo ideológico, fechamento de fronteiras econômicas, proteção real ou meramente demagógica aos trabalhadores locais, em troca de concentração de poder e asfixia dos pesos e contrapesos de uma democracia cada vez mais difícil.

Netanyahu é a manifestação israelense deste movimento reacionário global. Antes de 7 de outubro, havia um número impressionante de cidadãos nas ruas e praças de Israel, em manifestações que perduraram por meses a fio em defesa do Poder Judiciário. Por certo, a esquerda em sentido estrito, minoritária desde que a perspectiva de paz se enfraquecera, não tinha o controle dos protestos, dominados por preocupações com o destino de uma instituição absolutamente decisiva. E neles não estavam os árabes israelenses. Não importa muito, brotava ali o germe da renovação e da esperança, o repúdio de massas contra o autocrata em formação. Este germe e este repúdio se viram paralisados com o conflito, que, neste preciso sentido, responde ao nacionalismo agressivo de Netanyahu e seus aliados de extrema direita, particularmente os que representam a ocupação ilegal na Cisjordânia.

Guerras cumprem a função clássica de unir momentaneamente a população em torno da salvação nacional e de abafar o normal dissenso democrático que, de outro modo, se desenvolveria e teria o potencial de dar bons frutos. Na espessa névoa que logo produzem, prevalecem profissões de fé e alinhamentos pavlovianos, como se Israel só tivesse amigos à direita, a Palestina à esquerda. E como se um país inteiro se reduzisse à guerra ao terror e o outro, em formação, limitasse suas formas de luta e resistência a explosões bárbaras.

O caminho da paz, surpreendente e imprevisível, é um daqueles que só se fazem ao caminhar – e a História está mais cheia deles do que parece. Como muitos autores têm lembrado, a Guerra do Yom Kippur, em 1973, levaria ao acordo entre Begin e Al Sadat; e à Intifada de 1987 se seguiriam os Acordos de Oslo entre Rabin e Arafat. O pogrom de outubro e a tragédia cotidiana de Gaza escancaram a evidência de que, no caso destes dois grandes povos, só fanáticos ainda acreditam haver terra a tomar e guerra a vencer.

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TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL

Nada pior para um conflito como o que ora transcorre em Israel e em Gaza, carregado de dimensões simbólicas milenares, do que ser capturado pela lógica pedestre das guerras de cultura, tão raivosas quanto superficiais. Israel nelas aparece, monoliticamente, como o representante do imperialismo ocidental, um apêndice estranho e indesejado na região, contra quem toda e qualquer revolta se justifica, mesmo quando, como em 7 de outubro, pisoteia valores mínimos da civilização e reacende temores ancestrais de perseguição e aniquilamento. Pela mesma lógica, inversamente, o Hamas identifica-se com todo um povo e surge como protagonista de um tardio combate anticolonial, em torno do qual devem se juntar automaticamente os condenados da Terra.

Postas assim as coisas, cada um de nós não tem muito mais a fazer senão se afundar nas respectivas câmaras de eco e repetir indefinidamente as próprias verdades até que um dia, quem sabe, sobrevenha o cansaço e reapareça a necessidade de buscar alguma outra “causa justa”. Perdem-se nuances, omitem-se elementos significativos de um complexo consenso em construção, inclusive nos círculos dirigentes do Ocidente.

Por aqui, aliás, há bons sinais. Certamente, tarda uma decidida ação de paz pelos Estados Unidos, a potência capaz de conter ou influenciar Israel e, ao mesmo tempo, dialogar com o mundo árabe, suas ruas expressivas e seus dirigentes mais sensatos. No entanto, neste momento de trevas, tem sido animador ver o amadurecimento definitivo da ideia dos dois Estados, alicerçada não só numa necessária visão pragmática, como também no reconhecimento formal do direito à terra tanto por judeus quanto por palestinos.

Tem mais de um grão de verdade a proposição do presidente Biden segundo a qual, neste “ponto de inflexão da História”, há um contraponto entre democracias e autocracias. Trata-se, porém, de uma verdade parcial, provisória, até pelo fato de que, como o próprio Biden sabe em primeiríssima mão, as democracias permanecem assediadas internamente por atores disruptivos com capacidade para produzir fissuras em consolidadas tradições constitucionais. E, por ironia, nem mesmo a democracia israelense está livre deste assédio. Um político como Benjamin Netanyahu, não por acaso, é fator interno de restrição das liberdades e fator externo de guerras e invasões, ainda que nesta última circunstância tenha os extremistas palestinos como sócios dedicados.

De fato, com algumas exceções, como perto de nós a Venezuela, têm vindo da extrema direita global as ameaças mais graves aos regimes democrático-constitucionais que costumávamos considerar quase um fato da natureza. O culto do homem forte e providencial ressurgiu como a novidade em reação à globalização dos mercados feita de modo veloz e anárquico em algumas poucas décadas. O rótulo “nacional-populismo” define bem a situação recentemente criada: nativismo ideológico, fechamento de fronteiras econômicas, proteção real ou meramente demagógica aos trabalhadores locais, em troca de concentração de poder e asfixia dos pesos e contrapesos de uma democracia cada vez mais difícil.

Netanyahu é a manifestação israelense deste movimento reacionário global. Antes de 7 de outubro, havia um número impressionante de cidadãos nas ruas e praças de Israel, em manifestações que perduraram por meses a fio em defesa do Poder Judiciário. Por certo, a esquerda em sentido estrito, minoritária desde que a perspectiva de paz se enfraquecera, não tinha o controle dos protestos, dominados por preocupações com o destino de uma instituição absolutamente decisiva. E neles não estavam os árabes israelenses. Não importa muito, brotava ali o germe da renovação e da esperança, o repúdio de massas contra o autocrata em formação. Este germe e este repúdio se viram paralisados com o conflito, que, neste preciso sentido, responde ao nacionalismo agressivo de Netanyahu e seus aliados de extrema direita, particularmente os que representam a ocupação ilegal na Cisjordânia.

Guerras cumprem a função clássica de unir momentaneamente a população em torno da salvação nacional e de abafar o normal dissenso democrático que, de outro modo, se desenvolveria e teria o potencial de dar bons frutos. Na espessa névoa que logo produzem, prevalecem profissões de fé e alinhamentos pavlovianos, como se Israel só tivesse amigos à direita, a Palestina à esquerda. E como se um país inteiro se reduzisse à guerra ao terror e o outro, em formação, limitasse suas formas de luta e resistência a explosões bárbaras.

O caminho da paz, surpreendente e imprevisível, é um daqueles que só se fazem ao caminhar – e a História está mais cheia deles do que parece. Como muitos autores têm lembrado, a Guerra do Yom Kippur, em 1973, levaria ao acordo entre Begin e Al Sadat; e à Intifada de 1987 se seguiriam os Acordos de Oslo entre Rabin e Arafat. O pogrom de outubro e a tragédia cotidiana de Gaza escancaram a evidência de que, no caso destes dois grandes povos, só fanáticos ainda acreditam haver terra a tomar e guerra a vencer.

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TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL

Nada pior para um conflito como o que ora transcorre em Israel e em Gaza, carregado de dimensões simbólicas milenares, do que ser capturado pela lógica pedestre das guerras de cultura, tão raivosas quanto superficiais. Israel nelas aparece, monoliticamente, como o representante do imperialismo ocidental, um apêndice estranho e indesejado na região, contra quem toda e qualquer revolta se justifica, mesmo quando, como em 7 de outubro, pisoteia valores mínimos da civilização e reacende temores ancestrais de perseguição e aniquilamento. Pela mesma lógica, inversamente, o Hamas identifica-se com todo um povo e surge como protagonista de um tardio combate anticolonial, em torno do qual devem se juntar automaticamente os condenados da Terra.

Postas assim as coisas, cada um de nós não tem muito mais a fazer senão se afundar nas respectivas câmaras de eco e repetir indefinidamente as próprias verdades até que um dia, quem sabe, sobrevenha o cansaço e reapareça a necessidade de buscar alguma outra “causa justa”. Perdem-se nuances, omitem-se elementos significativos de um complexo consenso em construção, inclusive nos círculos dirigentes do Ocidente.

Por aqui, aliás, há bons sinais. Certamente, tarda uma decidida ação de paz pelos Estados Unidos, a potência capaz de conter ou influenciar Israel e, ao mesmo tempo, dialogar com o mundo árabe, suas ruas expressivas e seus dirigentes mais sensatos. No entanto, neste momento de trevas, tem sido animador ver o amadurecimento definitivo da ideia dos dois Estados, alicerçada não só numa necessária visão pragmática, como também no reconhecimento formal do direito à terra tanto por judeus quanto por palestinos.

Tem mais de um grão de verdade a proposição do presidente Biden segundo a qual, neste “ponto de inflexão da História”, há um contraponto entre democracias e autocracias. Trata-se, porém, de uma verdade parcial, provisória, até pelo fato de que, como o próprio Biden sabe em primeiríssima mão, as democracias permanecem assediadas internamente por atores disruptivos com capacidade para produzir fissuras em consolidadas tradições constitucionais. E, por ironia, nem mesmo a democracia israelense está livre deste assédio. Um político como Benjamin Netanyahu, não por acaso, é fator interno de restrição das liberdades e fator externo de guerras e invasões, ainda que nesta última circunstância tenha os extremistas palestinos como sócios dedicados.

De fato, com algumas exceções, como perto de nós a Venezuela, têm vindo da extrema direita global as ameaças mais graves aos regimes democrático-constitucionais que costumávamos considerar quase um fato da natureza. O culto do homem forte e providencial ressurgiu como a novidade em reação à globalização dos mercados feita de modo veloz e anárquico em algumas poucas décadas. O rótulo “nacional-populismo” define bem a situação recentemente criada: nativismo ideológico, fechamento de fronteiras econômicas, proteção real ou meramente demagógica aos trabalhadores locais, em troca de concentração de poder e asfixia dos pesos e contrapesos de uma democracia cada vez mais difícil.

Netanyahu é a manifestação israelense deste movimento reacionário global. Antes de 7 de outubro, havia um número impressionante de cidadãos nas ruas e praças de Israel, em manifestações que perduraram por meses a fio em defesa do Poder Judiciário. Por certo, a esquerda em sentido estrito, minoritária desde que a perspectiva de paz se enfraquecera, não tinha o controle dos protestos, dominados por preocupações com o destino de uma instituição absolutamente decisiva. E neles não estavam os árabes israelenses. Não importa muito, brotava ali o germe da renovação e da esperança, o repúdio de massas contra o autocrata em formação. Este germe e este repúdio se viram paralisados com o conflito, que, neste preciso sentido, responde ao nacionalismo agressivo de Netanyahu e seus aliados de extrema direita, particularmente os que representam a ocupação ilegal na Cisjordânia.

Guerras cumprem a função clássica de unir momentaneamente a população em torno da salvação nacional e de abafar o normal dissenso democrático que, de outro modo, se desenvolveria e teria o potencial de dar bons frutos. Na espessa névoa que logo produzem, prevalecem profissões de fé e alinhamentos pavlovianos, como se Israel só tivesse amigos à direita, a Palestina à esquerda. E como se um país inteiro se reduzisse à guerra ao terror e o outro, em formação, limitasse suas formas de luta e resistência a explosões bárbaras.

O caminho da paz, surpreendente e imprevisível, é um daqueles que só se fazem ao caminhar – e a História está mais cheia deles do que parece. Como muitos autores têm lembrado, a Guerra do Yom Kippur, em 1973, levaria ao acordo entre Begin e Al Sadat; e à Intifada de 1987 se seguiriam os Acordos de Oslo entre Rabin e Arafat. O pogrom de outubro e a tragédia cotidiana de Gaza escancaram a evidência de que, no caso destes dois grandes povos, só fanáticos ainda acreditam haver terra a tomar e guerra a vencer.

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TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL

Nada pior para um conflito como o que ora transcorre em Israel e em Gaza, carregado de dimensões simbólicas milenares, do que ser capturado pela lógica pedestre das guerras de cultura, tão raivosas quanto superficiais. Israel nelas aparece, monoliticamente, como o representante do imperialismo ocidental, um apêndice estranho e indesejado na região, contra quem toda e qualquer revolta se justifica, mesmo quando, como em 7 de outubro, pisoteia valores mínimos da civilização e reacende temores ancestrais de perseguição e aniquilamento. Pela mesma lógica, inversamente, o Hamas identifica-se com todo um povo e surge como protagonista de um tardio combate anticolonial, em torno do qual devem se juntar automaticamente os condenados da Terra.

Postas assim as coisas, cada um de nós não tem muito mais a fazer senão se afundar nas respectivas câmaras de eco e repetir indefinidamente as próprias verdades até que um dia, quem sabe, sobrevenha o cansaço e reapareça a necessidade de buscar alguma outra “causa justa”. Perdem-se nuances, omitem-se elementos significativos de um complexo consenso em construção, inclusive nos círculos dirigentes do Ocidente.

Por aqui, aliás, há bons sinais. Certamente, tarda uma decidida ação de paz pelos Estados Unidos, a potência capaz de conter ou influenciar Israel e, ao mesmo tempo, dialogar com o mundo árabe, suas ruas expressivas e seus dirigentes mais sensatos. No entanto, neste momento de trevas, tem sido animador ver o amadurecimento definitivo da ideia dos dois Estados, alicerçada não só numa necessária visão pragmática, como também no reconhecimento formal do direito à terra tanto por judeus quanto por palestinos.

Tem mais de um grão de verdade a proposição do presidente Biden segundo a qual, neste “ponto de inflexão da História”, há um contraponto entre democracias e autocracias. Trata-se, porém, de uma verdade parcial, provisória, até pelo fato de que, como o próprio Biden sabe em primeiríssima mão, as democracias permanecem assediadas internamente por atores disruptivos com capacidade para produzir fissuras em consolidadas tradições constitucionais. E, por ironia, nem mesmo a democracia israelense está livre deste assédio. Um político como Benjamin Netanyahu, não por acaso, é fator interno de restrição das liberdades e fator externo de guerras e invasões, ainda que nesta última circunstância tenha os extremistas palestinos como sócios dedicados.

De fato, com algumas exceções, como perto de nós a Venezuela, têm vindo da extrema direita global as ameaças mais graves aos regimes democrático-constitucionais que costumávamos considerar quase um fato da natureza. O culto do homem forte e providencial ressurgiu como a novidade em reação à globalização dos mercados feita de modo veloz e anárquico em algumas poucas décadas. O rótulo “nacional-populismo” define bem a situação recentemente criada: nativismo ideológico, fechamento de fronteiras econômicas, proteção real ou meramente demagógica aos trabalhadores locais, em troca de concentração de poder e asfixia dos pesos e contrapesos de uma democracia cada vez mais difícil.

Netanyahu é a manifestação israelense deste movimento reacionário global. Antes de 7 de outubro, havia um número impressionante de cidadãos nas ruas e praças de Israel, em manifestações que perduraram por meses a fio em defesa do Poder Judiciário. Por certo, a esquerda em sentido estrito, minoritária desde que a perspectiva de paz se enfraquecera, não tinha o controle dos protestos, dominados por preocupações com o destino de uma instituição absolutamente decisiva. E neles não estavam os árabes israelenses. Não importa muito, brotava ali o germe da renovação e da esperança, o repúdio de massas contra o autocrata em formação. Este germe e este repúdio se viram paralisados com o conflito, que, neste preciso sentido, responde ao nacionalismo agressivo de Netanyahu e seus aliados de extrema direita, particularmente os que representam a ocupação ilegal na Cisjordânia.

Guerras cumprem a função clássica de unir momentaneamente a população em torno da salvação nacional e de abafar o normal dissenso democrático que, de outro modo, se desenvolveria e teria o potencial de dar bons frutos. Na espessa névoa que logo produzem, prevalecem profissões de fé e alinhamentos pavlovianos, como se Israel só tivesse amigos à direita, a Palestina à esquerda. E como se um país inteiro se reduzisse à guerra ao terror e o outro, em formação, limitasse suas formas de luta e resistência a explosões bárbaras.

O caminho da paz, surpreendente e imprevisível, é um daqueles que só se fazem ao caminhar – e a História está mais cheia deles do que parece. Como muitos autores têm lembrado, a Guerra do Yom Kippur, em 1973, levaria ao acordo entre Begin e Al Sadat; e à Intifada de 1987 se seguiriam os Acordos de Oslo entre Rabin e Arafat. O pogrom de outubro e a tragédia cotidiana de Gaza escancaram a evidência de que, no caso destes dois grandes povos, só fanáticos ainda acreditam haver terra a tomar e guerra a vencer.

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