Tradutor e ensaísta, Luiz Sérgio Henriques escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Uma fábula da esquerda


Olhando os efeitos em torno de nós, mais certo é incluir aventuras como a de Chávez e Maduro entre as que desgraçadamente desonraram o conceito de socialismo

Por Luiz Sérgio Henriques

Por mais equivocado que seja falar da existência de uma só esquerda, no singular, certamente há um fundo comum de casos e histórias ao qual se pode recorrer para iluminar escolhas que diferentes agrupamentos fizeram ao longo do tempo. Uma dessas histórias, ocorrida ainda no início dos anos 1990 e guardada desde então no fundo do baú, tem como personagens ninguém menos do que Fidel Castro, ícone da vertente revolucionária, e Salomão Malina, o último secretário do PCB, expoente da “moderação na adversidade” e da defesa de mudanças graduais, inclusive para a saída negociada de regimes de exceção.

Malina tinha a mão direita semiamputada por causa de um incidente na clandestinidade, em que vivera durante parte considerável da vida. Era a mão que usava para incomodar opinadores politicamente inconvenientes, tal como Fidel em visita ao Brasil. As intervenções do eterno combatente tinham como alvo o reformismo, afinal malogrado, de Mikhail Gorbachev – e os reformistas em geral. O interlocutor que visivelmente preferia era o petista Luiz Inácio Lula da Silva, como se um e outro não se dessem conta do abismo intransponível entre o mito cubano e a realidade brasileira. Para encurtar a fábula, Malina, ainda por cima militar multicondecorado por feitos na 2.ª Guerra, estendeu a Fidel a parte da mão que lhe restava. Não era menos bravo do que o outro, “apenas” tinha visão diferente da política e dos seus procedimentos, segundo o relato de Carlos Marchi no primeiro volume sobre os cem anos do Partidão (Longa Jornada Até a Democracia, Brasília, 2022).

Nos anos que se seguiram, a Fidel juntou-se o venezuelano Hugo Chávez, incendiando a imaginação pouco realista de parte da esquerda latino-americana e até global. A tentativa era a de atualizar o paradigma revolucionário dos anos 60 do século 20, retirando-o do contexto exclusivamente militarista e inserindo-o na perspectiva de aprofundamento da democracia “burguesa”. De fato, houve por algum tempo a percepção de que a “revolução bolivariana”, sustentada na renda petrolífera particularmente propícia, podia se espalhar, se não em todos, pelo menos nos países mais pobres e desiguais do continente, a exemplo da Bolívia e do Equador.

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Pouco qualificada, a tática de aprofundamento democrático encontraria seu desenho mais definitivo na sistemática convocação de assembleias constituintes logo em seguida à eleição de um presidente de vocação autoritária. Tratava-se, para o novo ocupante do Executivo, de paulatinamente submeter as instâncias do Legislativo e do Judiciário ao seu arbítrio, cancelando a separação dos Poderes e esvaziando as agências de controle republicano. Para efetivar a agenda maximalista, um item indispensável para os novos donos do poder era a aprovação do mecanismo de reeleições sucessivas, sem limitação de nenhum tipo. E, como em todos os casos de “revolução pelo alto”, a cargo de condottieri carismáticos, punham-se em ação mecanismos de controle social que vinculavam diretamente homem providencial e massas fanatizadas.

Os testemunhos mais isentos de que dispomos dão conta de que, no vazio de representação assim criado, implantou-se a fantasia da democracia direta – e implantou-se, contraditoriamente, de cima para baixo. O pluralismo natural da sociedade, nervo da vida política, passaria a ser substituído pelo simulacro das polarizações dilaceradoras, recurso antipolítico por excelência. Os sucessivos confrontos eleitorais, travados num campo crescentemente desigual, teriam a marca da manipulação plebiscitária em que desde sempre se especializaram os autoritários. Diante dessa suposta intensificação dos confrontos, só os deliberadamente cegos, que sempre os há, puderam repetidamente afirmar, por exemplo, que na Venezuela chavista e regimes congêneres existia “democracia até demais”.

A ambição revolucionária dos bolivarianos esteve presente, ainda, no rótulo imaginado pelo sociólogo alemão Heinz Dieterich. Com o experimento chavista, radicalizado por Nicolás Maduro, estaríamos diante do “socialismo do século 21″. O eixo das grandes transformações se deslocaria para a América Latina, suposição que uma vez mais tomava a nuvem por Juno. Mais certo teria sido inserir toda a ala extrema da onda rosa daquele início de século no “momento populista” que, à direita e à esquerda, se mostraria sistematicamente incapaz de recombinar os elementos de liberalismo e de democracia que, juntos, constituem o núcleo político das boas sociedades modernas.

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Olhando os efeitos em torno de nós, aqui e agora, mais certo ainda é incluir aventuras como a de Chávez e Maduro entre as que desgraçadamente desonraram o conceito de socialismo, longe de reconstruí-lo e torná-lo uma alternativa, entre outras, para tratar os problemas que nos assediam. Instaurado o caos e dada a impossibilidade de nele viver indefinidamente, a coisa a fazer é evocar a figura ideal dos adeptos da moderação e das soluções pacíficas, isolando o tirano e sua claque para que possa prevalecer, ao fim e ao cabo, a vontade da maioria.

*

TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL

Por mais equivocado que seja falar da existência de uma só esquerda, no singular, certamente há um fundo comum de casos e histórias ao qual se pode recorrer para iluminar escolhas que diferentes agrupamentos fizeram ao longo do tempo. Uma dessas histórias, ocorrida ainda no início dos anos 1990 e guardada desde então no fundo do baú, tem como personagens ninguém menos do que Fidel Castro, ícone da vertente revolucionária, e Salomão Malina, o último secretário do PCB, expoente da “moderação na adversidade” e da defesa de mudanças graduais, inclusive para a saída negociada de regimes de exceção.

Malina tinha a mão direita semiamputada por causa de um incidente na clandestinidade, em que vivera durante parte considerável da vida. Era a mão que usava para incomodar opinadores politicamente inconvenientes, tal como Fidel em visita ao Brasil. As intervenções do eterno combatente tinham como alvo o reformismo, afinal malogrado, de Mikhail Gorbachev – e os reformistas em geral. O interlocutor que visivelmente preferia era o petista Luiz Inácio Lula da Silva, como se um e outro não se dessem conta do abismo intransponível entre o mito cubano e a realidade brasileira. Para encurtar a fábula, Malina, ainda por cima militar multicondecorado por feitos na 2.ª Guerra, estendeu a Fidel a parte da mão que lhe restava. Não era menos bravo do que o outro, “apenas” tinha visão diferente da política e dos seus procedimentos, segundo o relato de Carlos Marchi no primeiro volume sobre os cem anos do Partidão (Longa Jornada Até a Democracia, Brasília, 2022).

Nos anos que se seguiram, a Fidel juntou-se o venezuelano Hugo Chávez, incendiando a imaginação pouco realista de parte da esquerda latino-americana e até global. A tentativa era a de atualizar o paradigma revolucionário dos anos 60 do século 20, retirando-o do contexto exclusivamente militarista e inserindo-o na perspectiva de aprofundamento da democracia “burguesa”. De fato, houve por algum tempo a percepção de que a “revolução bolivariana”, sustentada na renda petrolífera particularmente propícia, podia se espalhar, se não em todos, pelo menos nos países mais pobres e desiguais do continente, a exemplo da Bolívia e do Equador.

Pouco qualificada, a tática de aprofundamento democrático encontraria seu desenho mais definitivo na sistemática convocação de assembleias constituintes logo em seguida à eleição de um presidente de vocação autoritária. Tratava-se, para o novo ocupante do Executivo, de paulatinamente submeter as instâncias do Legislativo e do Judiciário ao seu arbítrio, cancelando a separação dos Poderes e esvaziando as agências de controle republicano. Para efetivar a agenda maximalista, um item indispensável para os novos donos do poder era a aprovação do mecanismo de reeleições sucessivas, sem limitação de nenhum tipo. E, como em todos os casos de “revolução pelo alto”, a cargo de condottieri carismáticos, punham-se em ação mecanismos de controle social que vinculavam diretamente homem providencial e massas fanatizadas.

Os testemunhos mais isentos de que dispomos dão conta de que, no vazio de representação assim criado, implantou-se a fantasia da democracia direta – e implantou-se, contraditoriamente, de cima para baixo. O pluralismo natural da sociedade, nervo da vida política, passaria a ser substituído pelo simulacro das polarizações dilaceradoras, recurso antipolítico por excelência. Os sucessivos confrontos eleitorais, travados num campo crescentemente desigual, teriam a marca da manipulação plebiscitária em que desde sempre se especializaram os autoritários. Diante dessa suposta intensificação dos confrontos, só os deliberadamente cegos, que sempre os há, puderam repetidamente afirmar, por exemplo, que na Venezuela chavista e regimes congêneres existia “democracia até demais”.

A ambição revolucionária dos bolivarianos esteve presente, ainda, no rótulo imaginado pelo sociólogo alemão Heinz Dieterich. Com o experimento chavista, radicalizado por Nicolás Maduro, estaríamos diante do “socialismo do século 21″. O eixo das grandes transformações se deslocaria para a América Latina, suposição que uma vez mais tomava a nuvem por Juno. Mais certo teria sido inserir toda a ala extrema da onda rosa daquele início de século no “momento populista” que, à direita e à esquerda, se mostraria sistematicamente incapaz de recombinar os elementos de liberalismo e de democracia que, juntos, constituem o núcleo político das boas sociedades modernas.

Olhando os efeitos em torno de nós, aqui e agora, mais certo ainda é incluir aventuras como a de Chávez e Maduro entre as que desgraçadamente desonraram o conceito de socialismo, longe de reconstruí-lo e torná-lo uma alternativa, entre outras, para tratar os problemas que nos assediam. Instaurado o caos e dada a impossibilidade de nele viver indefinidamente, a coisa a fazer é evocar a figura ideal dos adeptos da moderação e das soluções pacíficas, isolando o tirano e sua claque para que possa prevalecer, ao fim e ao cabo, a vontade da maioria.

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TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL

Por mais equivocado que seja falar da existência de uma só esquerda, no singular, certamente há um fundo comum de casos e histórias ao qual se pode recorrer para iluminar escolhas que diferentes agrupamentos fizeram ao longo do tempo. Uma dessas histórias, ocorrida ainda no início dos anos 1990 e guardada desde então no fundo do baú, tem como personagens ninguém menos do que Fidel Castro, ícone da vertente revolucionária, e Salomão Malina, o último secretário do PCB, expoente da “moderação na adversidade” e da defesa de mudanças graduais, inclusive para a saída negociada de regimes de exceção.

Malina tinha a mão direita semiamputada por causa de um incidente na clandestinidade, em que vivera durante parte considerável da vida. Era a mão que usava para incomodar opinadores politicamente inconvenientes, tal como Fidel em visita ao Brasil. As intervenções do eterno combatente tinham como alvo o reformismo, afinal malogrado, de Mikhail Gorbachev – e os reformistas em geral. O interlocutor que visivelmente preferia era o petista Luiz Inácio Lula da Silva, como se um e outro não se dessem conta do abismo intransponível entre o mito cubano e a realidade brasileira. Para encurtar a fábula, Malina, ainda por cima militar multicondecorado por feitos na 2.ª Guerra, estendeu a Fidel a parte da mão que lhe restava. Não era menos bravo do que o outro, “apenas” tinha visão diferente da política e dos seus procedimentos, segundo o relato de Carlos Marchi no primeiro volume sobre os cem anos do Partidão (Longa Jornada Até a Democracia, Brasília, 2022).

Nos anos que se seguiram, a Fidel juntou-se o venezuelano Hugo Chávez, incendiando a imaginação pouco realista de parte da esquerda latino-americana e até global. A tentativa era a de atualizar o paradigma revolucionário dos anos 60 do século 20, retirando-o do contexto exclusivamente militarista e inserindo-o na perspectiva de aprofundamento da democracia “burguesa”. De fato, houve por algum tempo a percepção de que a “revolução bolivariana”, sustentada na renda petrolífera particularmente propícia, podia se espalhar, se não em todos, pelo menos nos países mais pobres e desiguais do continente, a exemplo da Bolívia e do Equador.

Pouco qualificada, a tática de aprofundamento democrático encontraria seu desenho mais definitivo na sistemática convocação de assembleias constituintes logo em seguida à eleição de um presidente de vocação autoritária. Tratava-se, para o novo ocupante do Executivo, de paulatinamente submeter as instâncias do Legislativo e do Judiciário ao seu arbítrio, cancelando a separação dos Poderes e esvaziando as agências de controle republicano. Para efetivar a agenda maximalista, um item indispensável para os novos donos do poder era a aprovação do mecanismo de reeleições sucessivas, sem limitação de nenhum tipo. E, como em todos os casos de “revolução pelo alto”, a cargo de condottieri carismáticos, punham-se em ação mecanismos de controle social que vinculavam diretamente homem providencial e massas fanatizadas.

Os testemunhos mais isentos de que dispomos dão conta de que, no vazio de representação assim criado, implantou-se a fantasia da democracia direta – e implantou-se, contraditoriamente, de cima para baixo. O pluralismo natural da sociedade, nervo da vida política, passaria a ser substituído pelo simulacro das polarizações dilaceradoras, recurso antipolítico por excelência. Os sucessivos confrontos eleitorais, travados num campo crescentemente desigual, teriam a marca da manipulação plebiscitária em que desde sempre se especializaram os autoritários. Diante dessa suposta intensificação dos confrontos, só os deliberadamente cegos, que sempre os há, puderam repetidamente afirmar, por exemplo, que na Venezuela chavista e regimes congêneres existia “democracia até demais”.

A ambição revolucionária dos bolivarianos esteve presente, ainda, no rótulo imaginado pelo sociólogo alemão Heinz Dieterich. Com o experimento chavista, radicalizado por Nicolás Maduro, estaríamos diante do “socialismo do século 21″. O eixo das grandes transformações se deslocaria para a América Latina, suposição que uma vez mais tomava a nuvem por Juno. Mais certo teria sido inserir toda a ala extrema da onda rosa daquele início de século no “momento populista” que, à direita e à esquerda, se mostraria sistematicamente incapaz de recombinar os elementos de liberalismo e de democracia que, juntos, constituem o núcleo político das boas sociedades modernas.

Olhando os efeitos em torno de nós, aqui e agora, mais certo ainda é incluir aventuras como a de Chávez e Maduro entre as que desgraçadamente desonraram o conceito de socialismo, longe de reconstruí-lo e torná-lo uma alternativa, entre outras, para tratar os problemas que nos assediam. Instaurado o caos e dada a impossibilidade de nele viver indefinidamente, a coisa a fazer é evocar a figura ideal dos adeptos da moderação e das soluções pacíficas, isolando o tirano e sua claque para que possa prevalecer, ao fim e ao cabo, a vontade da maioria.

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Opinião por Luiz Sérgio Henriques

Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil

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