Estamos sendo invadidos por falsos democratas. Pessoas brutais, grosseiras e violentas, não há quem rejeite a qualificação, ainda que seja para rebaixá-la, simplificá-la e distorcê-la. “Ser democrata” é hoje uma autoatribuição generalizada.
O indivíduo democrata não se reduz a uma ou outra “virtude”. Defender a liberdade de expressão, por exemplo, tornou-se uma barafunda de significados, que flutuam nos interstícios de redes e organizações. Em nome dela, praticam-se barbaridades inomináveis. Embora a ideia seja preciosa para os direitos que devem prevalecer numa democracia, ela precisa ser bem compreendida, o que somente acontece quando vinculada a outras ideias.
Ninguém nasce democrata. Crianças e adolescentes podem ter um senso mais agudo de justiça e compartilhamento, podem ser generosos com os outros, mas nem por isso são desde logo democráticos. É verdade, porém, que quanto mais bem formadas (na família, na escola, nos grupos de vizinhança), maior será sua predisposição para abraçar a democracia. Como se costuma dizer, abraçar a democracia é uma construção socialmente determinada.
Antes de tudo, um democrata é alguém capaz de pensar para além de si próprio, ou seja, levar em conta o conjunto da vida social, seus ritmos e suas particularidades. Não precisa ser um “igualitarista”, mas deve considerar com generosidade as disparidades socioeconômicas, culturais e educacionais que separam os membros de uma sociedade. Precisa também assimilar os sinais do tempo e as mudanças epocais.
Esse modo de pensar significa pensar com a própria cabeça. Repetindo a máxima usada pelo filósofo Edgar Morin, é melhor ter a cabeça bem-feita do que a cabeça cheia, ideia particularmente importante hoje, dada a quantidade de mentiras e desinformações que nos atazanam a vida. Daí que um democrata é alguém politicamente educado, capaz de separar o joio do trigo, “ler” corretamente os fatos, assimilar os carecimentos dos demais membros da sociedade, enxergar os outros.
Isso o habilita a compreender criticamente a complexidade inerente à política, que não existe para atender de imediato a todas as expectativas e que, além do mais, tem sinuosidades e ambiguidades difíceis de serem entendidas. Ela sempre está associada à luta pelo poder, mas não se reduz a isso.
Um indivíduo civicamente “mal-educado” enxerga a política por um ângulo torto, rejeitando-a sempre que seus desejos não são atendidos. Ele também não aceita a necessidade do Estado, vendo-o tão somente como uma estrutura de poder tirânico, e não como um agente de organização e prestação de serviços. Termina, assim, por glorificar o mercado, o empreendedorismo, a privatização indiscriminada, a ausência de regulações.
O democrata é, portanto, alguém que se move pelas sendas complicadas da razão, recusando a manipulação das emoções que políticos e governantes fazem regularmente, sobretudo em períodos eleitorais. Ele também mantém no primeiro plano a transparência e a responsabilidade no trato das coisas públicas, sendo adversário de todas as formas de corrupção e malfeitos.
O democrata pode ser inflamado e defender suas ideias a ferro e fogo. Mas sua natureza é mais a serenidade, como argumentou certa vez Norberto Bobbio, no sentido de sempre tender para a ponderação, o diálogo e a argumentação, atitudes com as quais busca convencer, persuadir e dissuadir os que dele divergem.
Ser democrata não é ser de esquerda. Há vertentes de esquerda que não aceitam os procedimentos democráticos, estigmatizando-os como a expressão de formas “burguesas” de democracia. Mesmo quando privilegiam o social, tais vertentes tendem a ser voluntaristas, confiando na vontade “justa” das lideranças populares ou dos governantes que se apresentam como seus representantes. A esquerda se distingue por dar maior atenção ao progresso social, para cuja consecução a democracia é essencial.
Muitos conservadores seguem a democracia política como ideia. Liberais são democratas, sobretudo no campo dos procedimentos e da defesa das regras do jogo, dos direitos humanos e de políticas justas. Claro, há liberais e liberais, assim como as pessoas de esquerda não seguem a mesma cartilha. Mesmo à direita pode-se ter certa gradação e algumas inflexões democráticas.
Onde a democracia não viceja é no terreno da extrema direita, porque, nele, são plantados venenos e toxinas que se voltam para a destruição da democracia e a captura dos indivíduos mediante artifícios que fogem da razão, que exploram os egoísmos, as emoções à flor da pele, o ódio, a insatisfação, o medo e a insegurança. A extrema direita pode mobilizar a pátria, o nacionalismo, falar em proteção, questionar o sistema, mas será sempre uma postulação autoritária e antidemocrática.
Democratas não temem conflitos e lutas sociais. Querem-se partícipes delas. Sua diferença específica repousa no fato de que trabalham para dar às lutas um sentido gerador de consensos que, se bem organizados, podem pressionar os governos para que ajam em benefício de todos. Esse é seu maior trunfo.
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É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP